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Fernando de Pádua: Os meus colegas acusaram-me de querer protagonismo

O médico do lacinho, que gosta de se apresentar como "o homem do coração", fez 90 anos em Maio. A medicina preventiva é, desde sempre, a sua grande causa. Agora vai relançar a sua biografia, cuja primeira edição foi em 2005. No início, os médicos não gostaram da mensagem que trouxe da Universidade de Harvard, nos anos 1950.

Miguel Baltazar
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É "o homem do coração". Foi este o nome que deu à sua biografia, publicada em 2005. Agora o livro terá nova edição. O médico do lacinho fez 90 anos em Maio e quer contar o que se passou nos últimos 12. Fez da medicina preventiva a sua causa. E gaba-se de ser um exemplo vivo daquilo que ensina. Mas, no início, ficou a "pregar no deserto". Os médicos não gostaram da mensagem que trouxe da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos. Só mais tarde lhe deram razão. Diz que a saúde "é por demais importante para estar apenas nas mãos dos médicos". Por isso, cada qual deve cuidar da sua.



Qual é o segredo para chegar aos 90 anos com saúde e uma vida activa?

Eu passo a vida a dar o exemplo. Tenho explicado o que é levar uma vida simples e de trabalho. Mantermo-nos a trabalhar em coisas de que gostamos faz uma diferença brutal.

 

Mas, infelizmente, há muitas pessoas que trabalham em coisas que não gostam.

Mas olhe que hoje há menos. Existem cada vez mais oportunidades no trabalho e a iniciativa pessoal também conta imenso. Mas, na medicina, há algo que me desanima muito. As faculdades recebem alunos que não queriam, de facto, ir para medicina. Vão porque tiveram notas altas e falham a sua vida. Agora, a medicina deixou de ser atractiva, mas alguns pensam que vão ganhar muito dinheiro. Os alunos têm uma boa nota, então decidem ser médicos. Mas teriam mais jeito para serem gestores. Vão ser médicos frustrados. E, por outro lado, há pessoas que queriam ir para medicina, pelo carinho que têm pelos doentes, mas que não conseguiram entrar e vão ser infelizes toda a vida, porque essa era a sua paixão. Devia haver concursos para cada faculdade em vez de candidaturas ao ensino superior. Se a medicina estiver na moda, os que têm melhores notas tentam entrar lá, mesmo que não lhes interesse nada. Enquanto há alunos que querem ser médicos desde pequenos, mas não conseguem uma nota mínima. E seriam grandes médicos! 

 

Na sua opinião, o que é que devia mudar?

O modo de assumir um curso superior. A pessoa devia fazer admissão à faculdade que lhe interessa. Com provas específicas sobre essa matéria ou com uma entrevista para conhecer melhor a pessoa.

 

Actualmente, a selecção dos alunos não tem em conta a sua aptidão para a profissão, é isso?

É. A admissão é feita pelo exame, não é pela inteligência. Aquilo é só decorar. Decoram o que sabem que vai fazer parte da técnica de exame, em função dos exames dos anos anteriores. E esse aluno ganha porque sabe fazer o exame. Mas não tem jeito nenhum para ser médico.

 

Hoje fala-se muito na medicina preventiva. Eu falo nela desde que nasci!  

 

Qual é a grande lacuna, neste momento, na classe médica em Portugal?

A medicina deveria ser dedicada às pessoas. Temos de pensar nas pessoas, temos de falar com elas. Estamos a fazer uma medicina perfeita, informatizada, cheia de técnicas, quando às vezes o que as pessoas precisam é de uma palavra, precisam de apoio, precisam que o médico conheça a família. E, às vezes, faz-se uma medicina defensiva. Apostam nas técnicas, e nem é por gostarem demasiado delas, é porque têm medo que depois alguém diga: "Você não lhe fez uma TAC, não lhe fez isto, não lhe fez aquilo." E, com isso, temos uma medicina extraordinariamente cara. O vulgar dos portugueses precisa de um médico que converse com ele. Ao fazer isso, o médico pode descobrir, por exemplo, que aquilo que a pessoa tem é "burnout", está exausta, está no caminho errado, ou que a sua circunstância é muito pior do que a sua saúde.

 

Os utentes do Serviço Nacional de Saúde queixam-se da "falta de humanidade" dos médicos, de serem frios e de, muitas vezes, nem olharem para a cara dos doentes.

Com a minha idade, as pessoas já não me procuram muito. Querem um médico da idade da família. Mas, nos problemas complicados, muitas vezes vêm pedir-me uma última opinião. A primeira coisa que me dizem é: "Eu bem tenho explicado ao meu médico, mas ele nem olha para mim. Agora está sempre a olhar para o computador." O médico de família está carregado de informática e não tem tempo para se dar ao seu doente. Às vezes, é mais importante aconselhar o doente, ouvi-lo. Hoje fala-se muito na medicina preventiva. Eu falo nela desde que nasci! E há comportamentos que temos de aprender a mudar. Devemos ensinar às crianças os perigos do tabaco para elas nunca chegarem a fumar. Depois de fumar é que vem o sarilho todo. É errado lutar contra o tabaco começando pelo fumador. Temos de começar por criar não fumadores. Já sabem que aquilo faz mal. O doente precisa mais dos conselhos no que respeita à forma de organizar a sua vida, a alimentação, o trabalho e o lazer. Precisa mais disso do que esperar pelas doenças para tratá-las. Metade da minha vida tem sido dedicada a ensinar a tratar doentes graves e a outra a falar com as pessoas saudáveis e a dizer-lhes como devem agir para se manterem saudáveis.

 

Estudou nos anos 1950 na Universidade de Harvard, onde teve como professor Paul White, considerado o melhor cardiologista americano do século XX, que foi médico do Presidente Eisenhower. Quais foram as grandes lições que aprendeu com ele?

Ele disse uma frase que nunca mais me largou: "A doença ou a morte antes dos 80 anos é culpa do Homem, não é de Deus, não é da natureza." Nós fabricamos a nossa própria morte. Até há maneiras dramáticas de dizer isto. "Cada cigarro que fuma é um prego no seu caixão." Eu também fumei, porque no meu tempo não se sabia que o tabaco fazia mal. Quando se descobriu que fazia mal, tive de começar a dizer às pessoas: não fume. Tive de parar porque tinha de dar o exemplo aos meus doentes. Eu era cardiologista. Não podia estar a fumar!

 

Mas há muitos médicos que continuam a fumar.

Uma vez perguntei a uma pessoa da Organização Mundial de Saúde porque é que isso acontece. Ele respondeu: não seguem os caminhos para parar de fumar porque têm vergonha de falhar. Portanto, fumam às escondidas, mas continuam a fumar. 

 

Alguns não fumam às escondidas. Até vêm à porta dos hospitais fumar.

Isso é completamente criminoso. Exagerando na frase, mas é criminoso. O médico que fuma está a dar o exemplo ao doente. O doente pensa: não é tão mau como isso, senão o médico não fumaria. E nós, ao fumarmos, provocamos doença aos outros. Se o marido fuma e a mulher não, ela até pode vir a ter cancro do pulmão por causa disso. A mãe que está grávida e que fuma está a criar rapazinhos que vão fumar porque a nicotina que absorve anda no sangue e na placenta e passa para o bebé. Antes de nascer, já está viciado em nicotina.

 

Quando voltou dos Estados Unidos, quis começar a falar sobre prevenção. Isso não foi bem recebido, nomeadamente pela sua classe profissional.

Nos primeiros vinte anos, fazia prevenção quase às escondidas porque os colegas chegaram a acusar-me de querer protagonismo. "Lá porque veio da América, agora já fala e vem ensinar-nos..." Até os professores chegaram a dizer: "Ele está a fazer concurso para professor e já nos diz como é que devemos ensinar." É difícil olharmos à volta e sentirmo-nos criticados na nossa actividade. Mas eu sabia que aquilo resultava e não me calava. Por fim, tive de deixar de falar sobre o tema, porque continuava a sentir as críticas dos meus amigos e inimigos, tinha de fazer a minha carreira. Eu queria ser professor, não queria ser expulso pelos professores. E, aos 39 anos, já era professor catedrático da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Era o catedrático mais novo de todos no país. Já não podiam dizer que eu estava a querer subir mais. Já lá estava.

 

Nessa altura, começaram a ouvi-lo?

Eu comecei a falar mais. Não gerei logo aceitação. Lembro-me de duas coisas que permitiram uma mudança espectacular do ambiente à minha volta. Uma vez foi quando eu e o professor Pereira Miguel, que era o meu braço-direito, conseguimos trazer cá, com a ajuda da Organização Mundial de Saúde, três sábios mundiais na área da prevenção. A comunicação social tem sido a minha grande ajuda para levar o conhecimento às pessoas. Mais do que as aulas. Na altura, a televisão deu-me uma hora para entrevistar os senhores. Só havia um canal. Isto foi nos anos 1970, muito perto do 25 de Abril. Aqueles senhores foram falando em inglês a respeito de hipertensão, que era o tema mais forte nesse tempo. Eu e o professor Pereira Miguel íamos traduzindo em português coloquial. Foi uma lição de cátedra mundial que, em Portugal, foi ouvida por toda a gente. E quem foram os principais ouvintes? Os médicos. No dia seguinte, tudo mudou. Todos eles tiveram de dizer: "Tem razão." Então, nós invadimos a comunidade. E passámos a falar para toda a gente.

 

A saúde também tem de ser uma decisão das pessoas. (...) A saúde é por demais importante para estar apenas nas mãos dos médicos. 

 

As primeiras campanhas dirigidas à população foram feitas nos intervalos do antigo Jardim-Cinema.

Fizemos quase uma malandrice. O meu filho José Manuel, que é psiquiatra, desenhou uma caveira e umas tíbias que mostrámos num slide, durante o intervalo, para meter medo e dissemos: "Tome cuidado com o seu coração, no intervalo estamos a medir a tensão arterial."

 

Quem é que teve essa ideia de marketing?

O meu filho, ele sabia que aquilo assustava as pessoas. Então, começámos a ver que, em cada três pessoas, havia um hipertenso.

 

No fundo, isso permitiu-lhe também obter alguma informação estatística.

A partir dessa altura, começámos também a obter provas, em números, com a técnica da Organização Mundial de Saúde. O professor Pereira Miguel foi estudar algum tempo em Genebra, para aprender a trabalhar esses dados estatísticos. Não queríamos que nos dissessem que assustávamos as pessoas e que, por isso, é que elas tinham a tensão arterial alta. Chegaram a dizer-me isso! Mas eu estava a fazer o estudo populacional e havia 30% de hipertensos. Ainda andamos perto desses números, só que agora é uma tensão alta baixinha. Os acidentes vasculares cerebrais (AVC), nessa altura, eram a causa de morte número um em Portugal, nós éramos campeões do mundo. Nos trinta anos seguintes, esses números foram baixando e agora somos uns felizardos se comparados com esses tempos. Reduzimos talvez 60% a 70%.

 

Uma das suas grandes batalhas tem sido a da alimentação, nomeadamente, a redução do consumo de sal.

Já melhorámos, mas ainda falta percorrer caminho. Ainda temos uma média de consumo de 14 gramas de sal por dia. A própria Sociedade Portuguesa de Hipertensão achou que era aquilo que se podia pedir porque as pessoas podiam protestar e não comer. Têm sido fracos a pedir, no meu entender.

 

Fracos?

Fracos no que respeita a pedir à população que coma menos de 5 gramas de sal por dia.


 

Mas isso também tem que ver com a legislação. O Governo não deveria estar mais envolvido nesta batalha?

Está envolvido e o consumo de sal começou a diminuir. Mas ainda temos 14 gramas por quilo de pão, quando não deveríamos aceitar mais do que 5 gramas por dia de sal. Dizem que temos de ir devagar... Em Inglaterra, Graham MacGregor [professor de Medicina Cardiovascular] chamou a si a campanha do sal. Já veio duas vezes a Portugal para ter reuniões na Sociedade Portuguesa de Hipertensão. Ele já provou que um milhão de libras investido na prevenção resulta em poupanças de um bilião de libras. A medicina dos comportamentos, dos estilos de vida saudáveis, resulta. E paga-se [a si própria] de uma maneira espectacular. Mas a comunicação social, quando apanha coisas más [na área da saúde], assusta tanto as pessoas que o governo tem de ir a correr tapar aquele buraco. Essas medidas de emergência têm resultado naquele ano ou no seguinte. E o governo fica bem na fotografia. A prevenção gera resultados a quatro, seis, oito anos. Não tem o mesmo interesse porque não tem esse impacto mais imediato. E o governo pensa: vamos gastar dinheiro e depois quem vai beneficiar é o próximo governo...

 

Essa luta para a redução do consumo de sal e de açúcar também tem sido uma luta do director-geral da Saúde, Francisco George.

A Direcção-geral da Saúde tem ajudado sempre. No outro dia, o ministro da Saúde [Adalberto Campos Fernandes] foi a uma conferência e começou a sua intervenção dizendo: o Professor Pádua ganhou a batalha do sal, eu vou ganhar a batalha do açúcar.

 

Sente que há empenhamento político?

Neste momento, o Governo está envolvido em medidas para cortar o açúcar na alimentação porque há uma grande propaganda contra a diabetes.

 

Nas mudanças de hábitos alimentares, quem é que é mais resistente, os próprios consumidores ou a indústria alimentar?

A pessoa deve ter o conhecimento. O Estado não tem capacidade para actuar em todos os lados. Dizem que, quando vão para o matadouro, as vacas já vão cheias de água salgada. Ao darem-lhes água salgada, elas incham e chegam a aumentar o peso em 25%. Resultado: os produtores recebem dinheiro por 25% de água. Salazar, no seu tempo, lembrou-se de proteger os viticultores e disse: "Beber vinho é dar de comer a um milhão de portugueses." Isso veio nos jornais. Era propaganda governamental. Resultado: todos os taberneiros sentiram que estavam a ajudar os portugueses. "Então vamos lá pôr ovos cozidos com mais sal, o amendoim com mais sal, o presunto com mais sal", e as pessoas passaram a beber mais. Tínhamos cirroses do fígado que era uma coisa estúpida. Nas consultas, havia pessoas com barriga de água, tínhamos de as picar. Piquei tantas pessoas para tirar 10 ou 15 litros de água lá de dentro. Era cirrose alcoólica.

 

Estamos a fazer uma medicina perfeita, informatizada, cheia de técnicas, quando às vezes o que as pessoas precisam é de uma palavra. 

 

Portanto, a informação é fundamental.

Mas tem de ser uma informação digerida. Tem de ser explicada e, quando há uma pré-hipertensão ou uma pré-diabetes, o médico tem de perder tempo com isso. Nos anos 1980, houve um estudo em Rio Maior, o primeiro a nível mundial com uma população de uma freguesia inteira. Íamos com vários médicos – através da Fundação Portuguesa de Cardiologia, que eu dirigia – ensinar a comer sem sal, a ter geleiras em vez de salgadeiras, e as pessoas reduziram o consumo de sal. A Maria de Lourdes Modesto foi a nossa grande ajudante. Nós medíamos a tensão e ela falava na comida e no sal. Metade do sucesso deveu-se a ela! Nós hoje continuamos a comer como se precisássemos de muitas calorias e só precisamos de metade. Mantém-se a obesidade e a hipertensão, que é mais pequena, mas a percentagem é quase igual à de antigamente.

 

É a chamada doença da abundância.

Sim. Se a pessoa tiver colesterol elevado, tem ameaça de doença. Se a isto somar o tabaco, juntar o sal e o açúcar... Essas coisas todas juntas são a nossa perdição. Quando o médico fala com o seu doente e lhe explica as possíveis complicações, ele adere com muito mais facilidade. Uma das primeiras coisas que defendi neste país foi o tratamento dos trabalhadores saudáveis das empresas. Isso passa por falar com eles e saber se têm pré-diabetes, pré-colesterol, pré-hipertensão, e explicar-lhes que aquilo está a começar. Fizemos isso em dez empresas e vimos que 50% do pessoal tinha dois ou mais factores de risco e, muitas vezes, nem os conhecia. Na América, houve grandes empresas que fabricaram o seu próprio complexo gimnodesportivo. As pessoas iam todas fazer ginástica. Tinham piscina, máquinas para fazer exercício, comiam na cantina. As empresas disseram que, ao fim de cinco anos, recuperaram todo o investimento no complexo. As pessoas começaram a emagrecer, estavam mais saudáveis, mais bem-dispostas, faltavam menos por doença, deixavam de fumar e produziam mais. A Caixa Geral de Depósitos fez um grande ginásio na sede, mas depois não fez propaganda nenhuma. As pessoas chegaram a dizer­-me: professor, está ali o ginásio mas não vai lá ninguém. Não sei se se mantém assim, já não vou lá há muito tempo. 

 

Foi na comunicação social que ficou a ser conhecido dos portugueses.

O José Manuel Tudela, que estava na televisão (RTP), pediu-me [em 1972] para fazer uma série de seis lições sobre "o seu motor". Foi a grande mudança no nosso país. Ainda não havia médico de família, não existiam médicos na província, havia terras sem electricidade. Mas todo o país podia ouvir um professor da Faculdade de Medicina que, em termos de "tu cá tu lá", explicava as coisas. Em algumas terras, as pessoas compravam geradores para terem electricidade à hora do programa. Eu dizia: "Você não vê a pressão dos pneus do carro? Veja a sua também. Você não tem de meter uma gasolina boa? Se deitar açúcar na gasolina, deixa de trabalhar. Se você mete mais açúcar para dentro, deixa de trabalhar." Era linguagem "pão, pão, queijo, queijo". E foi nessa altura que começou a grande mudança.

 

Trouxe essa técnica de comunicar dos Estados Unidos?

Sim, era o que me dizia o tal professor Paul White. Ele insistia: falem com a comunicação social. A população tem o desejo de saber. E tem o direito de saber. Mas os médicos, aqui, diziam: ele quer é protagonismo.

 

A medicina deveria ser dedicada às pessoas. 

 

Quando chegou aos Estados Unidos, nos anos 1950, o que é que sentiu? Que tinha chegado a outro planeta?

Eu não vivi na América, eu vivi na América intelectual. Fui para Harvard com uma bolsa atribuída pela Fundação Rotária Internacional. Era um ano, num curso de pós-graduação de Cardiologia. Tínhamos 50 professores para 12 alunos bolseiros de todo o mundo. Uma vez, numa consulta, o doente explicava-se mal e eu também entendia mal o inglês e, ao fim de meia hora, percebi que ele era açoriano. (Risos) Passava as manhãs no hospital, as tardes noutro hospital e comecei a fazer a minha tese à noite. O que bebi da América foi intelectual e, como era bolseiro do Rotary, exigiram-me apenas que, quando acabasse a bolsa, voltasse para Portugal e visitasse os rotários de lá para falar do meu país.

 

Actualmente, Portugal está bem colocado nos "rankings" dos transplantes cardíacos. Foram transplantadas 850 pessoas desde 1986. Estamos em 12.º lugar na Europa, acima da Alemanha e do Reino Unido e com uma taxa de sucesso de 90%. Temos boas equipas em Portugal a trabalhar nesta área. Já somos um exemplo a nível internacional?

Os transplantes são necessários para quem atingiu o fim da picada. Mas os doentes precisam é de ser ajudados muito antes disso. O que nós queremos é não ter doentes. Uma vez que conseguimos, através da prevenção, evitar 30% ou 40% dos doentes cardíacos, temos de apostar nisso. Tem havido progressos extraordinários [na cardiologia]. Os portugueses vão lá fora e fazem boa figura. Temos médicos estupendos. Mas a saúde é por demais importante para estar apenas nas mãos dos médicos. Cada qual tem de cuidar da sua.

 

Quando era criança, já queria ser médico?

Não. Fui o melhor aluno do liceu, tinha uma bolsa de estudo e podia escolher. Resolvi: vou fazer exame para medicina em Junho e vou fazer também ao Técnico em Outubro. Consegui logo entrada na Faculdade de Medicina.


 

Mas não se arrependeu dessa escolha?

Não. Estou convencido de que, mesmo que fosse ignorante, era capaz de ser bom médico e a dar conselhos às pessoas. Tenho facilidade de comunicação. É um dom como outra coisa qualquer. Peço sempre aos colegas, em cada conferência onde estou, que não escrevam apenas nas nossas revistas científicas, que façam um comunicado lá para fora. Falem com os jornais. E era o que o Paul White dizia em Harvard: as universidades estão fechadas em castelos de marfim, têm de comunicar com o povo. A população tem direito de aprender sobre saúde.

 

E há um trabalho a ser feito nas escolas?

Começa a haver. E com os pais. Nesta altura, ser pai é mais difícil. Sobretudo ser mãe. Os pais já estavam habituados às mães ficarem em casa a cuidar dos filhos. Foi a minha sorte. A minha mulher era médica, adoeceu e teve de ser operada, não pôde continuar a carreira. Fazia medicina nas igrejas e depois tomava conta dos filhos em casa. Senão, eu não podia ter feito aquilo que fiz. Ela tomava conta dos filhos e eu tomava conta do estudo. Por isso é que pude ser professor catedrático aos 39 anos. Passava horas e horas por dia a estudar.

 

O ministro da Saúde está, neste momento, a ultimar o orçamento para o ministério que tutela. Se pudesse dar­-lhe um conselho, qual seria?

Ele tem estes conselhos todos nas mãos. Está a publicar-se agora o livro do "Homem do Coração". A minha vida. Foi publicado em 2005 e agora resolveram publicá-lo outra vez com mais estes últimos 12 anos. A quem é que foram pedir para fazer o prefácio? Ao ministro Adalberto Campos Fernandes. Ele acedeu e escreveu uma coisa que eu gostei de ler. É um homem que acredita na medicina e que acredita na prevenção.

 

A comunicação social tem sido a minha grande ajuda toda a vida, para levar o conhecimento às pessoas. Mais do que as aulas. 

 

Acha que a saúde está em boas mãos?

Está em boas mãos, mas o orçamento é diminuto. A saúde também tem de ser uma decisão das pessoas. Há doenças que aparecem congenitamente, muitas são caríssimas de tratar e a pessoa morre se não for tratada. Mas, veja-se a hepatite C. Teve de haver um homem a gritar no Parlamento para se tratar dos doentes em condições. Há muitas doenças cujo tratamento implica muito dinheiro. Os remédios existem, mas são brutalmente caros. A gente deixa morrer e poupa só para os outros? O que é que se faz? Cada um de nós tem de assumir a sua responsabilidade. Volto a dizer, o Graham MacGregor gastou um milhão de libras na redução do sal, mas já poupou um bilião de libras. Poupa-se dinheiro e ajuda-se a pagar os outros tratamentos. Vocês, comunicação social, têm a nossa saúde nas vossas mãos.

 

A comunicação social? Em que sentido?

Sim, quando divulgam uma recomendação do director-geral da Saúde sobre a gripe ou através de programas como o daquele rapazito muito simpático o "Diga doutor", na RTP. Deveria haver um canal de saúde, com termos simples. Quem me ajuda na prevenção é a comunicação social. Assim como se ensina às crianças que não se cospe no chão e não se atravessa a estrada sem um adulto, também é preciso dizer que não se podem empanturrar de doces. Faz parte dos cuidados gerais. É uma questão de educação. Chegamos aos 80 anos doentes. Na Dinamarca, combate-se as doenças e as pessoas chegam aos 80 anos saudáveis. Porquê? Porque apostam na prevenção desde o princípio. Em Portugal, é raro ver uma pessoa adulta, com menos de 50 anos, a fazer o seu "check-up". É preciso apostar na educação para a prevenção. Quem merece mais trabalho é a criança portuguesa que tem direito a ter saúde. E nós esquecemo-nos dela. Antigamente, havia uma disciplina de saúde nos liceus e na instrução primária. Aquele livrinho "Viagem pelos AEIOUS da Saúde", que nós [a Fundação Professor Fernando de Pádua] publicámos com a ajuda de uma psicóloga, ensina que o A é de alimentação, o E é do exercício, o I é de inibir o tabaco, o O de omitir o sal, o U de uma consulta por ano, e o S do stress. Essa mão-cheia é o que nos mata.

 

Que legado quer deixar ao país?

O que queria deixar é a mensagem que volto a sublinhar: a saúde é por demais importante para estar apenas nas mãos dos médicos. Cada qual tem de aprender a tomar conta da sua. E, se morrer antes dos 80 anos, a culpa é sua. 

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