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Eugénio Fonseca: Devo ser das pessoas mais pedinchonas deste país

O Presidente da Cáritas Portuguesa admite que faz "lobby" mas sempre pelos que "não têm voz". E, avisa, há muita gente com sentimentos violentos recalcados, em consequência da crise. É um homem de Fé. Manteve-a mesmo quando teve cancro. Mas refilou com Deus.

Bruno Simão
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Alguma vez pensou ser padre?

Pensei. Foi das lutas mais difíceis que tive de travar.

 

E em que idade é que isso aconteceu?

Tinha 15, 16 anos. Em miúdo, uma das brincadeiras que tinha era ser padre. Baptizava bonecas, fazia paramentos com jornais…

 

O que o fascinava era a função de sacerdote ou o que está à volta disso?

A luta era essa. Saber se o que me fascinava era ser sacerdote ou beneficiar daquilo que os sacerdotes beneficiavam.

 

Que era o quê?

Ter estatuto social. Os paramentos davam-me um ar de príncipe, eu era pobre, tinha roupas modestas. Era todo aquele aparato litúrgico. E todos tinham uma reverência aos senhores padres. Ia ganhar um estatuto social, porque os padres é que mandavam. O padre dizia, fazia-se. Mas a contrariar isto tinha uma coisa. Somos dois rapazes e eu pensava: vou para padre e a quem ficam entregues os meus pais?

 

A questão da família.

Pedi a um padre salesiano, que já faleceu, e que era psicólogo, para me ajudar. E disse à minha namorada, vamos parar porque eu estou a pensar ir para o seminário. Toda a gente à minha volta dizia: "Davas um bom padre."

 

Houve uma pressão social?

Não sei se era uma pressão social, era mais uma pressão religiosa. Porque eu cantava muito bem, ajudava muito bem à missa, tinha jeito para falar às pessoas e comecei com a pastoral de jovens. Até que um dia o primeiro bispo de Setúbal mandou-me chamar. Mal me sentei no sofá, ele faz-me a pergunta directa. Eu já tinha 24 anos. "O que é que pensas fazer da tua vida?" Eu disparei que nem um míssil: "Quero casar."

 

A pobreza, a exclusão, geram violência. Sempre. E há muita gente aí que anda com sentimentos violentos recalcados.

 

Mas, nesse momento, tinha uma namorada?

Não. Essa namorada esteve dez anos à espera.

 

Que é a sua actual mulher?

Sim. Disse-lhe que ia para o seminário, mas ela nunca desistiu.

 

Mas conviviam?

Convivíamos. Mas ela nunca fez nada para me pressionar. Deixou-me livre.

 

Quando vai estudar Ciências da Religião, está em que fase da sua vida?

Já era casado.

 

Qual era o seu objectivo quando foi tirar esse curso?

Era um objectivo profissional. Eu tinha habilitações insuficientes para leccionar.

 

Queria ensinar?

Sim. Sempre foi o que quis. E comecei bastante novo. Tinha 18 anos. Foi aí que deixei crescer o bigode e nunca mais o tirei. Fui para uma zona muito má ensinar Educação Moral e Religiosa.

 

Estamos a falar do período pós-25 de Abril?

1975. PREC. Baixa da Banheira. Na Escola Mouzinho da Silveira.

 

Ambiente hostil?

Uma vez cheguei e tinha cartazes a dizer: "Não queremos cá padrecos a dar aulas."

 

Estamos a falar de uma zona muito dominada pelo Partido Comunista.

E com os homens do Vale do Zebro à porta da escola com armas.

 

Sentiu-se intimidado?

Nunca. E gostei imenso da escola. Mas os próprios Conselhos Directivos eram avessos a esta disciplina.

 

Depois teve necessidade de ir estudar.

O objectivo foi completar a habilitação para poder ser professor efectivo. Mas o curso ajudou-me a perceber os fundamentos daquilo em que acredito. Admiro o Papa Bento XVI quando punha muito enfoque nisto: que a fé não pode viver sem a razão.

 

A fé e a razão podem andar lado a lado?

Complementam-se. A fé não responde a nada cientificamente. Por isso precisa da razão, para que possamos ter fundamentos científicos para percebermos os fenómenos que o mundo tem. O que eu consegui perceber é aquilo que a fé traz à razão. É o sentido.

 

Como assim?

É a resposta ao porquê. Não é a resposta ao que é. Isso é do domínio da ciência. Eu penso que hoje o mundo está a perceber que o caminho que tem de seguir pode não ser pelo religioso, mas tem de ser pela espiritualidade.

 

Em relação à questão dos refugiados, ninguém sabe como resolver esta situação. Há uma mistura de religião, com política, com geoestratégia…

A religião não tem nada que ver com isso. Têm-se dado passos de proximidade nas principais religiões. Tem que ver exactamente com os desequilíbrios do desenvolvimento que se geraram no mundo. E depois, sectores radicalistas, que em vez de assumirem uma posição de diálogo, assumem uma atitude de violência. A pobreza, a exclusão, geram violência. Sempre. E há muita gente aí que anda com sentimentos violentos recalcados.

 

Está a falar em Portugal?

Estou a falar de gente que se viu sem trabalho injustamente e que passa hoje carências enormes. Mas, quanto aos refugiados, gostava de dizer que a Europa não soube ler bem o que estava a acontecer no mundo depois das perturbações que ocorreram no Médio Oriente. Eu marco a guerra do Iraque como o ponto de viragem de tudo isto. A Europa andou a fazer que não via ou a não querer envolver-se muito para não criar desequilíbrios políticos entre as duas grandes potências – a Rússia e os Estados Unidos.

 

Qual é a situação actual dos refugiados? A sensação que passa é que as coisas pararam e, no entanto, houve uma série de países que os quiseram receber, incluindo Portugal.

Portugal, no conjunto dos 28, foi aquele que melhor se portou. A senhora Merkel arrepiou logo caminho quando percebeu que ia perder as eleições. Mas Portugal disse logo que sim, com números pouco significativos face à grandeza do fenómeno, mas disponibilizou-se. E tem feito todas as "démarches" diplomáticas para acolher o número de pessoas a que se comprometeu.

 

Quantas pessoas são?

Mil. Agora podemos ir até 15 mil.

 

Mas o que é que falta para essas pessoas poderem vir?

São coisas estranhas. Bloqueios que existem no sistema da União Europeia. Como não está preparada, tem receios.

 

Mas o Governo português não pode intervir?

Que força é que tem o Governo português no quadro da União Europeia? Poderia ter mais, poderia. Se não se tivesse subjugado tanto. Se tivesse poder para isso, teria tido o poder de rever o memorando aquando do resgate. Porque ainda nos fez acrescentar mais dívida à dívida. A ajuda que o memorando trouxe foi imediata. Se não viesse dentro de pouco tempo, estávamos na bancarrota. Mas não houve solidariedade nenhuma. Quando se tem taxas de juro que são escandalosas para uma economia como a nossa...

 

Continua a defender a renegociação da dívida?

Sim. O Governo anterior perdeu uma oportunidade quando se descobriu que as bases que levaram à negociação daquele memorando não eram as verdadeiras. Veio a saber-se que a dívida dos particulares era maior do que a pública. A dívida soberana era diferente daquela em que se basearam para construir o memorando. E, aí, o Governo devia ter tido oportunidade de dizer não. E bater o pé. Fomos muito subservientes aos nossos credores. E o que me magoava, nas vezes que fui chamado para dialogar com a troika, era a insensibilidade dos dois elementos que representavam a Europa – o BCE e a Comissão Europeia.

 

O FMI era mais aberto?

Era. Engraçado, quando fui pela primeira vez convocado para falar com eles, eu ia disposto a enfrentar o FMI e quem tive de enfrentar foi o representante do BCE.

 

O padrão de pobreza que tínhamos antes da troika mudou?

Mudou e muito. 

 

O que é que é diferente agora?

Nós já tínhamos uma diferença em relação à União Europeia e aos países desenvolvidos, que é a chamada pobreza geracional. Isto fez com que se olhasse para a pobreza como uma fatalidade. Eu nasci em condições económicas fragilizadas [o pai era pescador e a mãe trabalhava na indústria conserveira em Setúbal] e lá em casa a ideia que passava era que a nós coube-nos esta condição. Não tivemos sorte.

 

Mas isso era a mentalidade que prevalecia no Estado Novo. "Pobres, mas honrados."

Sim, é isso. Lá em casa aceitava-se naturalmente a pobreza, mas sempre honestos. O que acaba por deixar em nós uma certa culpabilização endémica. Sempre o cuidado de não errar. 

 

Mais de 20% da taxa total de pobres são trabalhadores por conta de outrem. O que ganham não consegue suplantar os encargos. 

 

E, por outro lado, não há ambição para sair da pobreza.

Aí é engraçado. É que houve uma alteração na nossa família. E por isso são precisas mediações, para que as pessoas se libertem da condição da pobreza. Algumas, sozinhas, já não são capazes.

 

Porque entraram nesse ciclo?

Acaba por ser um modo resignado de viver. Mas não deixa de haver lá dentro uma certa revolta. Uma certa mágoa. Nós, às vezes, achamos que os pobres são assim, não fazem muitas ondas, até são resignados. Cuidado! Nós temos sinais hoje, até de determinadas atitudes anti-sociais, que são os pobres a reclamarem o direito às oportunidades que outros tiveram e eles não. Há muitos jovens que fazem assaltos para terem ténis Nike.

 

Mas quando diz que são precisas mediações...

A minha mãe teve uma mediação extraordinária. Foi a professora primária do meu irmão. Filho de pescador acabava a quarta classe e ia para o mar. E a professora disse à minha mãe que era uma pena o meu irmão não continuar a estudar porque ele tinha muitas capacidades. E a minha mãe foi à procura de meios. Íamos buscar os livros ao Grémio das Conserveiras, que era uma estrutura corporativa do Estado Novo, e tínhamos de os devolver no fim do ano.

 

Que é o que se pretende fazer agora no primeiro ciclo.

Que seja também para evitar a especulação financeira que se tem feito à volta disso. Porque quando se diz que o ensino é gratuito, é uma falácia! Somos muito procurados para pagar livros escolares.

 

Mas voltando à sua família...

O meu irmão prosseguiu os estudos e foi o primeiro licenciado do bairro. Isto para dizer que a pobreza não é uma fatalidade. Não se justifica que Portugal, depois da revolução de Abril, que democratizou o ensino, continue a ter os níveis de analfabetismo que tem. E temos insucesso escolar que não devíamos ter. Antes da troika, tínhamos 17,9% da nossa população em risco de pobreza. Que era a tal pobreza estrutural. Por volta do ano 2000 ainda eram 20%. O que é que mudou? A criação do Rendimento Social de Inserção (RSI) que nunca foi bem aceite. Foi muito mal compreendido.

 

Há um preconceito em relação ao RSI?

Há um preconceito que foi bem preparado. Houve quem se encarregasse de denegrir uma medida que nunca foi para acabar com a pobreza, foi para aliviar a agressividade da pobreza. Não é com uma média de 70 euros por indivíduo por mês que alguém vive dignamente.

 

Está a falar de aproveitamento político?

Político, sim. De alguma má compreensão que as pessoas tiveram perante oportunismos que a medida sofreu, por parte de cidadãos que acederam sem terem direito.


 

Mas houve casos?

Houve. Com certeza que houve. Mas também houve muitos casos de sucesso. A mim, o que me espanta é que nós criticamos os beneficiários do RSI e aceitamos pacificamente gente que anda em baixas médicas contínuas, muitas vezes para poder ter uns "ganchos" noutros sítios quaisquer. Como no subsídios de desemprego. Gente que se desemprega e faz tudo para que acabe o posto de trabalho para ter acesso ao subsídio de desemprego.

 

Então a fiscalização não é eficaz no combate à fraude, é isso?

Tem feito muitas tentativas, mas ainda não conseguiu. Sobretudo, tem sido muito eficaz no combate à fraude dos socialmente mais vulneráveis. Nos pequenos e médios empresários, alguns até faliram neste contexto da crise, porque o Estado não cumpriu as suas obrigações. O grande devedor da maior parte dessas empresas era o Estado. Ainda por cima, depois castiga essas pessoas porque, muitas vezes, para pagarem os ordenados aos trabalhadores, deixaram de cumprir as obrigações dos impostos. Essas pessoas ficaram com dívidas e muitas vezes vêm aqui procurar-nos porque não podem iniciar a mesma actividade sem primeiro liquidarem essas dívidas.

 

Já colocou essas questões a quem de direito?

Muitas vezes. Uma das admirações da troika foi quando eu disse que os empresários pagavam o IVA à cabeça.

 

Não sabiam?

Não. Eles pensavam que o IVA só era aplicado quando o produto era vendido. E isto é uma injustiça.

 

Voltando à questão dos pobres pós­-troika.

Uma das acusações que se fazia é que iam para o RSI os malandros. Hoje, mais de 20% da taxa total de pobres são trabalhadores por conta de outrem. O que ganham não consegue suplantar os encargos para uma subsistência digna. Portanto, hoje o perfil do pobre já não é a pessoa inculta, descuidada, desorganizada, aproveitadora dos sistemas de protecção social. Hoje são pessoas que só estão à espera que lhes devolvam o posto de trabalho. E temos mais dificuldades no atendimento porque quem está para cá do balcão é muitas vezes detentor de mais informação do que quem está no balcão. Sabem quais são os seus direitos, os programas a que podem aceder e forçam o sistema a ser mais célere porque têm uma capacidade reivindicativa maior. Porquê? Ainda não perderam a dignidade.

 

As pessoas estão revoltadas? Nota isso no atendimento na Cáritas?

Sim. Porque já foram a tantos lados. Nós temos em Portugal um mecanismo de intervenção social muito peculiar. É que quando eu não consigo resolver o problema faço o reencaminhamento. Mando para si. Libertei-me da brasa. Agora ela que arda na sua mão. Foi uma pena não se ter conseguido nos anos da troika um equilíbrio entre as exigências e as condições sociais. É verdade que o anterior Governo se empenhou muito em estabilizar as instituições particulares de solidariedade social, senão teria sido péssimo. Mas podia-se ter investido mais na protecção. Para que é que se tirou as condições de acesso ao RSI? Eu fui um grande defensor do programa de segurança alimentar. Depois tornei-me um crítico das cantinas sociais.

 

Porquê?

Primeiro, porque não cumpriam aquilo para que o Governo diz que as criou. Os pobres envergonhados não iam lá. Ou então já tinham perdido a vergonha. Segundo, porque não respondiam a uma diversidade alimentar que pudesse satisfazer bem as pessoas. Havia instituições onde as pessoas ao almoço levavam logo o jantar. Ou então davam o jantar às 16h. Se a pessoa, muitas vezes, nem dinheiro tinha para pagar a electricidade, não teria microondas de certeza. Depois veio a descobrir-se que o Governo gastou mais dinheiro nas cantinas sociais do que se tivesse mantido as medidas de acesso ao RSI.  

 

Ainda estamos em estado de emergência social?

Sim. Continuamos a ter uma taxa de desemprego muito preocupante. E, sobretudo nos jovens, isso tem implicações de futuro muito graves.

 

E o desemprego de longa duração...

Sim, que é difícil de resolver no sistema de mercado de trabalho que temos. Há opções que temos de fazer. É muito mau resignarmo-nos com rótulos. "Este é desempregado de longa duração fica ali naquela prateleira."

 

Desistiu-se dessas pessoas?

Não, não desistiu. Temos procurado medidas paliativas, suportadas por programas comunitários, mas que não são propriamente geradoras de trabalho.

 

A Cáritas lançou um programa de empreendedorismo social dirigido a essas pessoas.

Sim. As pessoas tiveram as ideias, nós consolidamo-las mas depois, quando elas foram ao banco pedir o dinheiro, não havia para emprestar. E, depois, há outra questão, não obriguemos as pessoas a serem empresárias quando elas não têm jeito nenhum para isso. E não é com cursos que isso vai lá.

 

Na cabeça das pessoas, até agora eu percorri todos os partidos à esquerda do PS.

O trabalho não traz só dinheiro. Também traz dignidade, o sentimento de sermos úteis. Que aquilo que temos é legítimo. É nosso.

 

Mas isso está a acontecer?

Quando se diz a uma pessoa que tem desemprego de longa duração que a solução é criar o seu próprio posto de trabalho... Se não se gerarem postos de trabalho para estas pessoas, o que é que lhes vai acontecer? Têm 35, 40 anos… Só vão ter possibilidade de voltar a ter um rendimento quando tiverem 66 anos e não sei quantos meses. Então, e vivem do quê até lá? Da Cáritas? Da Cruz Vermelha? Nós não temos condições para isso. Têm de viver da protecção social. E o trabalho não traz só dinheiro. Também traz dignidade, o sentimento de sermos úteis. Aquilo que temos é legítimo. É nosso. Conquistámos. E quando esta parte se sobrepõe à falta de dinheiro criam-se doenças que ainda tornam as pessoas mais pobres. Os medicamentos mais caros têm que ver com problemas de saúde mental, alguns não têm comparticipação do Estado.

 

E sabemos que o consumo desses medicamentos disparou.

Surgiu agora uma associação, da qual nós também fazemos parte, que é a Dignitude. Possibilita às pessoas pobres irem às farmácias levantar os seus medicamentos, todos aqueles que precisam, sem terem de escolher um, e podem fazê-lo sem ninguém perceber que são pobres, através de um cartão que lhes é concedido.

 

Choca-o que o salário do novo presidente da CGD seja de 30 mil euros por mês?

Choca-me. Há quem diga que se ele conseguir produzir mais-valias ao banco, é merecido. Em termos lógicos, poderei estar de acordo. E se ele não conseguir atingir os objectivos? O que é que lhe acontece? Só me impressiona por estarmos no país em que estamos.

 

A lógica apresentada é concorrencial. Para ter os melhores, tem de se pagar.

Então vamos ter uma sociedade a dois ritmos. A dos bons, que têm êxito, e a daqueles que, por razões que não lhes são imputadas, nunca conseguiram alcançar esse êxito. Eu também questiono muito que haja gente ligada ao mundo do desporto, não só no futebol, a ganhar muito mais do que isso. Sim, trabalham muito, mas de certeza que não trabalham mais do que quem anda nas minas. Aí aceitamos pacificamente.

 

Quem é que suporta financeiramente a Cáritas Portuguesa?

As rendas de um prédio que nos foi cedido há alguns anos e que agora, com a crise, está praticamente devoluto. Estava alocado a serviços do Estado. Ficámos sem essa fonte de receita. E depois vive de projectos a que se candidata para pôr à disposição das Cáritas Diocesanas. Tem as campanhas de solidariedade que vai realizando. Uma vez por ano, no Dia Nacional da Cáritas, todos os católicos praticantes que vão à missa nesse domingo, aquilo que depositam no cesto vai para os pobres e para a organização da Cáritas. Na rua, três dias antes, andam pessoas a fazer o peditório. Esse dinheiro vai integralmente para os pobres. Serve para pagarmos as mensalidades em atraso das casas, os medicamentos, alimentação, propinas, impostos...

 

Vêm pedir dinheiro para pagar impostos?

Sim. Para poderem candidatar-se a novos programas, para terem uma empresa.

 

Está a falar de empresários?

Sim. E o IMI. Quando me chegou pela primeira vez um processo para despachar de apoio a um IMI, eu mandei-o para trás. A técnica ligou-me e disse: este caso, nós já o estudámos muito. Trata-se de um casal que já pagou a sua casa. Não deve nada ao banco. Mas agora ficou sem trabalho. Parece que o Orçamento do Estado admite a hipótese de rever, nessas circunstâncias, o pagamento do IMI. Eu espero que sim.

 

É um lobista?

Faço lóbi sempre a favor daqueles que não têm voz. Digo-lhe mais. Devo ser das pessoas mais pedinchonas deste país. Tenho tido tantas situações de uma injustiça gritante que não posso ficar parado. Mas nunca fiz nada a troco seja do que fosse. Apesar de haver pessoas que dizem que se eu ando aqui é por algum interesse.

 

Ouve isso muitas vezes?

Sim.

 

Mas isso acontece em que meio?

Em todos os meios.

 

Também dentro da Igreja?

Sim. Às vezes, o que dói é que as críticas vêm de sectores que deviam estar comigo. Outra coisa que acontece é tentarem colar­-me a um partido. Até agora eu percorri todos os partidos à esquerda do PS, na cabeça das pessoas. A minha linguagem era do Bloco de Esquerda, era radical como o PC, era filiado no PS. Antes de existir "O Capital" escrito pelo Marx já havia o Evangelho e aquilo que eu faço está lá.

 

Teve um cancro. A sua fé vacilou nessa altura?

Nada. Não confundamos vacilar a fé com refilar com Deus.

 

Refilou?

Ai, sim. Havia um crucifixo em frente à cama do hospital, olhava para ele e dizia: isto não é justo, pá! A coisa mais profunda que eu ouvi dizer sobre o sentido de acreditar em Deus foi uma mãe que teve um filho cientista que morreu num acidente de automóvel. Eu, assim que soube, fui logo ter com eles. Quando se abriu a porta, o pai chorava e a mãe, com uma serenidade muito grande, assim que me viu disse: olha Eugénio, Deus, às vezes, abusa. Eu acho que Deus não quis aquilo. Se calhar, tive o cancro porque como mal, fora de horas. Tudo tem uma justificação. Agora, eu ir buscar o sofrimento, flagelar-me, porque há quem diga que isso agrada muito a Deus… Por aí, eu não vou.

 

Mas a Igreja Católica tem um pouco essa vertente do sofrimento.

Não tem. Essa vertente é muitas vezes a religião popular que a tem. Acredite que a Igreja não gostaria de ver as pessoas a andarem de joelhos em Fátima.

 

Mas não é essa a ideia que passa.

No dia em que isso deixasse de acontecer, primeiro havia uma revolta e depois as pessoas tinham de ir para outro lado fazer aquilo. Porque há gente que sente necessidade de se martirizar para redimir qualquer coisa. 


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