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Eduardo Paz Ferreira: Portugal é capaz de não ser um país tão pobre como nós pensamos

No seu novo livro “Como salvar um mundo doente” Eduardo Paz Ferreira faz uma reflexão sobre como chegámos a esta crise pandémica e desafia-nos a construir “uma sociedade decente”. Referindo-se aos processos mediáticos que correm na justiça, o especialista em direito económico alerta que a pressão pública é importante, mas “o sentido justiceiro que por vezes aparece ligado a essa pressão é perigoso”.
Filipa Lino e Alexandre Azevedo - Fotografia 16 de Julho de 2021 às 11:00

No seu novo livro "Como salvar um mundo doente", publicado pela Almedina, Eduardo Paz Ferreira faz uma reflexão sobre como chegámos a esta crise pandémica e desafia-nos a construir "uma sociedade decente". O professor catedrático da Faculdade de Direito de Lisboa sente-se frustrado quando pensa que está a "ensinar pessoas que só querem ganhar dinheiro". Isto porque "vivemos numa sociedade fascinada pelo sucesso". Referindo-se aos processos mediáticos que correm na justiça, o especialista em direito económico, financeiro e fiscal alerta que a pressão pública é importante, mas "o sentido justiceiro que por vezes aparece ligado a essa pressão é perigoso". Pelo meio, admite que ficou irritado com as "campanhas grosseiríssimas" contra si, pelo facto de ser marido da ministra da Justiça, Francisca Van Dunem.

A pandemia funcionou como estimulante intelectual. Estão a ser publicadas obras de ciência, ficção, testemunho, poesia… Como define o seu livro?

É um livro que procura passar a ideia de que não podemos ficar parados. Por mais pequeno que seja o nosso espaço, temos de tentar ajudar a construir o que costumo designar por uma sociedade decente.

 

O que é para si uma sociedade decente?

É uma pequena definição do John le Carré, que diz que uma sociedade decente não deixa ninguém para trás e preocupa-se em primeiro lugar com os mais necessitados. O que temos é o contrário disto. É uma sociedade obcecada em criar estruturas que permitam o sucesso, os grandes negócios, mas que se preocupa muito pouco com as pessoas pobres. É verdade que as coisas melhoraram com o 25 de Abril. O Estado social que temos em Portugal, mesmo relativamente débil, permitiu a algumas pessoas melhorarem muito o seu estatuto na vida. Mas, no conjunto, temos uma sociedade que nos envergonha. O livro é uma reflexão sobre o que se passa no mundo. É a minha perspetiva dos erros que nos levaram a esta situação da pandemia.

 

Quais foram esses erros?

Houve muita gente a dizer que esta era uma situação completamente imprevisível, o chamado cisne negro em economia. Mas não era. Poderíamos ter tido muito menos mortos se não fosse a atuação de determinados líderes políticos. Os mais evidentes são Trump, Bolsonaro, Modi. Houve um conjunto de políticos que têm a responsabilidade moral de terem contribuído para a morte de centenas de milhares de pessoas. No entanto, essas pessoas vão sair impunes. Quando muito, podem ser punidas eleitoralmente. Por exemplo, o primeiro-ministro inglês, Boris Johnson, que também tem um lugarzinho nesta lista, cometeu uma série de erros de desconfinamentos antes de tempo, de minimização dos riscos da pandemia e agora, na altura em que a pandemia está a aumentar imenso em Inglaterra, decidiu acabar com medidas sanitárias a partir do dia 19 de julho.

 

A covid-19 mexeu com a saúde física e mental, com a economia, com as relações pessoais, com o trabalho. Como foi para si pessoalmente esta experiência?

Ainda não fiz esse balanço. Foi um período muito pesado, muito doloroso de seguir. Continuar a trabalhar, empenhar-me em algumas atividades cívicas e no ensino foi servindo um pouco para me aguentar de pé. Mas é evidente que saio muito cansado e magoado, de alguma forma. Ao mesmo tempo acho que houve uma coisa boa. As amizades talvez tenham diminuído, mas as que ficaram estão mais fortes, mais solidárias. Impressiona-me o que se está a passar. Hoje já ninguém se preocupa com esse lado de manter o apoio às classes profissionais da saúde, como existiu no início, a não ser por razões estritamente político-partidárias, de estratégia eleitoral. É deplorável quando uma doença, como a covid-19, se transforma numa arma de arremesso eleitoral.

Lançaram campanhas grosseiríssimas contra mim por ser o marido da ministra da Justiça. [...] A única coisa que me aborreceu foi não ter a liberdade para ir acertar contas com uma série de canalhas.

Como foi viver este período único na história do país e do mundo ao lado de um membro do Governo?

As redes sociais lançaram campanhas grosseiríssimas contra mim por ser o marido da ministra da Justiça. Eu, que tinha muitos anos de professor catedrático e de muitas outras atividades profissionais, de repente, como era marido da ministra, passava a ter uma série de benesses. Eu já existia, tinha a minha vida e só fui prejudicado por ela estar no Governo. Mas isto é um aparte de alguma mágoa. A Francisca [Van Dunem] é uma pessoa muito especial, que teve uma vida com dramas familiares muito pesados e que aguentou tudo com uma coragem enorme. Ela foi para o Governo sem nenhum entusiasmo. Estávamos em França quando o Dr. António Costa ligou a convidá-la para integrar o Executivo. Ela queria recusar, fui eu e o meu filho que a incentivámos. Sinto-me moralmente responsável por isso. Há uma enorme tensão em torno do exercício da função e foi preciso procurar forças para lhe dar coragem. Mas ela não precisa. Para dizer a verdade, ela é que me dá coragem a mim.


É a mais forte emocionalmente?

Ela é a mais forte da família, sem dúvida. As mulheres são fortes, são resistentes, têm uma noção muito exata daquilo que é preciso fazer, são pragmáticas. Agora, é evidente que tem presente as patifarias que lhe fizeram, os golpes puramente políticos, assentes em deturpação de factos. A única coisa que me aborreceu foi não ter a liberdade para ir acertar contas com uma série de canalhas. Toda a gente se lembrava daquela história do marido da antiga ministra das Finanças, Maria Luís Albuquerque, que ameaçou dar uma sova num jornalista. Só me diziam: "Não faça isso!"

 

Pelo que estou a perceber, teve vontade...

Imensa. Era merecido. Mas a Francisca não vai abaixo. Só era preciso estar ali, para que ela tivesse uma pessoa ao lado para falar, com quem pudesse trocar impressões, aconselhar-se. Um dos grandes problemas da pessoa que está no poder é a solidão que se gera à sua volta. Tem de ter um cuidado extremo sobre aquilo que diz, o que faz, onde vai, porque os focos estão sempre em cima dela. Desse ponto de vista, a família era a âncora. A minha família – os meus pais, os meus avós – sempre foi muito sentimental, com grande necessidade de contacto físico, de amor. Mas acho que nunca tinha percebido realmente o sentido de família como a Francisca tem, e que tem que ver muito com a tradição africana. Em África, a família é o núcleo central, não há praticamente mais nada. E a Francisca foi a pessoa que aguentou a família em todos os momentos mais difíceis da vida.

Arrependeu-se de a ter incentivado a ir para o Governo?

Não me arrependi, porque acho que fez coisas extraordinárias no Ministério da Justiça, ao contrário do que obviamente certas pessoas gostam de propagar. Fez uma intervenção de uma enorme qualidade e competência técnica, num momento em que a política está transformada apenas em jogo sujo e em grande incompetência técnica. Sinto que a sacrifiquei um pouco, mas que a justiça portuguesa vai ficar um bocado melhor.


Que papel vai ter o direito na recuperação desta crise?

O mundo está a mudar. Não podemos ter ilusões sobre isso. Está a acontecer uma certa transformação do que eram as fontes tradicionais do direito – as leis, os decretos-leis –, que estão a ceder muito espaço a puras regulações, instruções de serviços, decisões de organizações internacionais, decisões do banco central, decisões dos reguladores, etc. Acho que isto se vai acentuar muito. Há duas coisas muito importantes, embora se situem em planos distintos. Primeiro, há o direito constitucional, que une uma sociedade, que faz com que possamos viver com dignidade. A Constituição consagra toda uma série de direitos que é preciso respeitar e a falta de cuidado que há por vezes com isso envergonha-me. Mas, apesar de tudo, temos uma Constituição democrática e isto é muito importante. Depois há outro ponto que vai ser muito importante, que é o papel do direito na recuperação económica. Aí coloca-se uma série de coisas. Desde logo, o direito do trabalho. Vai ser preciso que o direito defenda os trabalhadores que são ameaçados pela pandemia, mas também pela transformação tecnológica, que traz a possibilidade do desaparecimento de empregos, etc. O direito terá de responder cada vez mais a situações como a das empresas tipo Uber, porque há pessoas que estão a ficar cada vez mais desprotegidas.

 

O seu livro tem uma nota de otimismo. São as novas gerações que podem curar este "mundo doente"?

Tenho essa esperança. Como sabe, na escrita precisamos muitas vezes de uma espécie de ajudantes de investigação, de pessoas que fazem a revisão, etc. Eu trabalhei, se assim posso dizer, com dois miúdos de 23 anos. Um deles é meu filho. E foi uma coisa encantadora. As ideias que eles têm, o entusiasmo… Acho que eles serão capazes. Mas há um problema. Vivemos numa sociedade fascinada pelo sucesso. Todos os pais querem que os filhos vão para gestão. Se ficarem em Portugal, vão estudar para a Nova SBE, mas depois vão para o estrangeiro fazer um MBA, mestrados, etc. Essa obsessão pelo sucesso, por ser gestor, por ter um carro do último modelo, cria um ambiente que torna difícil a vida dos jovens que querem fazer outra coisa com a sua vida.

É muito frustrante pensar que se está a ensinar pessoas que só querem ganhar dinheiro.

Isso só acontece com o curso de Gestão?

Não, esse espírito não está só nos cursos de Gestão. Vou contar-lhe uma história que parece uma anedota. Uma vez estava a dar aulas num anfiteatro com 200 alunos à minha frente e decidi perguntar-lhes porque é que tinham ido para Direito. Achei que muitos responderiam que tinha sido por razões económicas, mas que também haveria quem dissesse que acreditava na justiça, que queria um mundo melhor..., até coisas mais banais como o meu pai é advogado, qualquer coisa! O facto é que ninguém respondeu. Em desespero, olhei para o meu assistente, que estava ao meu lado, e digo: "Porque é que o sôtor veio para Direito?" Respondeu que tinha sido para melhorar o seu estatuto financeiro e não sei mais o quê. Eu disse: "Em suma, para ganhar dinheiro. É isso?" Ele confirmou. Volto a olhar para a turma e pergunto: "Estão todos de acordo?" Estavam. É muito frustrante pensar que se está a ensinar pessoas que só querem ganhar dinheiro.

 

Nesse dia, perdeu a esperança nessa nova geração de juristas?

Não vou dizer tanto, mas deixou-me perturbado. Estou a dois anos da reforma na universidade, portanto, percebo que estou a ficar um daqueles velhos resmungões. Mas, mesmo assim, acho que tenho uma ótima relação com os alunos. Faço esse esforço de ter uma proximidade, de discutir os temas nas aulas, de procurar mostrar que há várias respostas possíveis para tudo. O problema do pensamento único é terrível. É preciso sabermos que a interpretação jurídica é uma coisa riquíssima e permite muitas coisas.

 

São os tais buracos na lei, de que se fala muitas vezes?

Sim, muitas vezes são "habilidades" exercidas com a lei. São situações de imprevisibilidade pela lei.

Há, na sociedade portuguesa, pessoas que se consideram intocáveis.

Isso não tem favorecido também situações como os casos mediáticos de crime económico, que vieram a público nos últimos anos?

Aquilo que se passou nos últimos anos não teve tanto que ver com erros de direito, mas sim com um "establishment" corrupto e habituado a estar acima de tudo. Havia e há ainda um conjunto de pessoas na sociedade portuguesa que se consideram intocáveis.

 

Agora isso mudou?

Não estou assim tão certo. Talvez essas pessoas estejam um pouco mais preocupadas. Mas se reparar na insolência com que por vezes algumas dessas personagens atuam...

 

Está a falar, por exemplo, das audições nas comissões parlamentares de inquérito?

Sim. Temos tido coisas caricatas. Aquela do Nuno Vasconcellos foi um dos exemplos máximos. Mas claro que a celebérrima do Joe Berardo foi muito má para ele, porque contribuiu bastante para as coisas se terem acelerado.

Pressão pública, sim. Sem dúvida. Mas o sentido justiceiro, que por vezes aparece ligado a essa pressão, é perigoso.

A opinião pública, que fica tão irritada, acaba por pressionar a justiça a atuar?

A opinião pública gosta muito de sangue. Não é por acaso que há canais de televisão que vivem do crime. Nem todas as pessoas que agora estão a ser analisadas ou estão a ser investigadas têm uma origem rica. Veja o caso do Luís Filipe Vieira ou do Joe Berardo. Mas muitos outros sim, pertencem a grandes famílias. Uma vez, um colega meu, professor de Economia, disse-me: "Sabe, tenho muitos alunos que são filhos de famílias importantes e que são os piores da turma. Isto é esquisito, não acha?" Eu respondi: "Não, não acho. Eles já sabem que têm o futuro garantido, porque é que se vão dar ao trabalho de ainda terem de estudar?" Criou-se uma casta quase indiana assente no conjunto de favores de uns a outros, por vezes são coisas totalmente no domínio penal, de corrupção. A pressão pública é absolutamente necessária. Temos de ter uma cidadania ativa. Não podemos aceitar que nos esmaguem. Mas a pressão pública tem aquele risco do aparecimento de partidos extremistas, que aproveitam a zanga e a raiva legítimas das pessoas, para as piores coisas. Pressão pública, sim. Sem dúvida. Mas o sentido justiceiro, que por vezes aparece ligado a ela, é perigoso.

 

Uma das justificações dadas para muitas vezes estas pessoas ficarem impunes é o facto de a própria máquina da justiça não estar preparada para os crimes de "colarinho branco", que são cada vez mais complexos.

Penso que há alguma razão nisso. Embora já tenha sido pior. É um facto que um jurista médio não sabe sequer matemática. Não sabe contabilidade, não sabe auditoria, não sabe nada destas coisas. Tem de ser assessorado pelas pessoas competentes para o fazer. É muito mais complicado para um juiz decidir, por exemplo, sobre crimes relacionados com mercados de valores, que exigem conhecimentos que, por vezes, não obtiveram na sua formação. Durante muitos anos ensinei Direito da Economia, e uma das minhas preocupações era criar um bom conhecimento da regulação, da concorrência. As coisas aí têm melhorado bastante. Temos há uns anos um tribunal especializado para lidar com assuntos de concorrência.

A delação premiada é uma coisa muito perigosa.

Qual a sua opinião sobre a delação premiada que consta na Estratégia Nacional de Combate à Corrupção?

Não sou um adepto da delação premiada. Até porque acho que o caso do Brasil nos deve fazer pensar. O juiz Moro construiu uma teia miserável na base de delação premiada, que levou a consequências trágicas na política brasileira. Portanto, a delação premiada é muito perigosa. No entanto, entendo que é útil a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção prever as condições em que alguns possíveis imputados, se colaborarem voluntariamente com a justiça e se derem determinadas informações, possam ver as penas atenuadas. Provavelmente, esta é a única forma de entrar nestes circuitos muito difíceis.

 

Um dos impactos da pandemia foi o agravamento das desigualdades. É sabido que a polarização da sociedade gera comportamentos coletivos irracionais. Vê esse risco em Portugal?

Em geral, a sociedade portuguesa tem estado bastante pacífica. Talvez a pandemia tenha parado um pouco a contestação, porque as pessoas tinham medo de ajuntamentos muito grandes. Mas, hoje em dia, já ninguém liga a nada. Os mesmos que gostam de futebol podem perfeitamente vir outra vez para a rua. Vai depender muito da recuperação económica. O professor Sobrinho Simões disse uma coisa que acho notável: roubaram-nos anos de vida. É preciso que as pessoas sintam que ainda vão ter tempo para recuperar esses anos.

Isso implica uma mudança económica?

Sim. Estamos já a assistir a uma grande mudança no pensamento económico. Até há três anos, dominava um pensamento neoliberal muito radical e contra a intervenção do Estado. Tínhamos tido as experiências da austeridade, essa tragédia. Hoje, toda a gente passou a defender a intervenção do Estado. Por exemplo, Vítor Gaspar, o ministro das Finanças da "austeridade", que é agora diretor financeiro do FMI, é um intervencionista. Kenneth Rogoff, autor do célebre erro que provocou muitas das questões da austeridade, também está nesta linha. Praticamente já não aparece ninguém que critique isso. Ou seja, agora é que verdadeiramente só há uns marginais contra essa ideia de que é preciso mudar. Está a haver atuações no terreno notáveis. Em grande medida por influência do Presidente norte-americano, Joe Biden, mas também pela União Europeia, ainda que de uma forma mais moderada, mais complicada.

 

Mais burocrática.

Ui, meu Deus. Um ano para aprovar um acordo e torná-lo efetivo! Nos EUA, muitas das medidas que Biden está a tomar, de investimento na construção, são muito boas. Na Europa, ainda que no seu estilo burocrático e um pouco mais temeroso, também está a haver muitas medidas que nos permitem ter algum entusiasmo. Por exemplo, existe um verdadeiro cancro, que é a evasão fiscal internacional, fortunas que estão colocadas nos offshore, nos paraísos fiscais. Há pouco tempo, saiu uma notícia de que no último ano as transferências de dinheiro de Portugal para esses fundos offshore cresceram extraordinariamente. Portugal é capaz de não ser um país tão pobre como nós pensamos. Mas uma grande parte da fortuna portuguesa está no estrangeiro. Há muitos anos que se procura combater este flagelo dos paraísos fiscais, e é curioso porque durante muito tempo não se conseguiu avançar pois os EUA não deixavam. Até que, desgraçadamente, se passou o 11 de setembro e os Estados Unidos perceberam que tudo tinha sido preparado através deste circuito dos paraísos fiscais. A partir daí, tornaram-se os mais ativos combatentes dos paraísos fiscais.

 

Não assistimos a grandes mudanças, até agora.

Não assistimos ainda a mudanças muito grandes, mas recentemente 130 países chegaram a um acordo de que todas as empresas tinham de pagar um mínimo de 15% de imposto nos Estados onde estão. Isto é uma grande ajuda. E há outras medidas. O Observatório Fiscal da União Europeia vai ser presidido por Gabriel Zucman, o homem que mais sabe de evasão fiscal. Tem um livro fascinante chamado "A riqueza oculta das nações" e tem uma grande competência nesta matéria. Estou convencido de que vai haver algum avanço, mas não acho que vá haver uma erradicação dos paraísos fiscais, nem nada que se pareça. A situação é tão absurda que países que fazem parte da União Europeia – a Irlanda, a Holanda, o Luxemburgo – são eles próprios paraísos fiscais ou coisas muito semelhantes. Muitos destes offshore, sentindo-se muito ameaçados, criaram uma série de novas praças financeiras em países com uma opacidade muito maior, sobretudo no Oriente. Isso faz com que haja cada vez mais dificuldades para determinar a ligação entre a pessoa que fez o investimento e onde está o dinheiro.

 

E muitas vezes esse dinheiro está ligado a outro tipo de crimes.

Sim, normalmente a questão está ligada a branqueamento de capital também. Há um verdadeiro horizonte pesado de crime económico ligado a isto. O cinema tem feito muitos filmes sobre este ambiente dos mercados financeiros. O "Wall Street", em que Michael Douglas faz o papel de um corretor de enorme sucesso, foi talvez o primeiro a denunciar o que era a corrupção da bolsa, a desonestidade dos corretores. Há uma cena em que o Michael Douglas está a falar num congresso e de repente diz: "Greed is good" (a ganância é boa). Ficamos à espera que toda a gente reaja mal. Mas não. A sala levanta-se em êxtase a apoiá-lo. O realizador Oliver Stone tinha feito aquilo para criticar aquele ambiente e acabou por dar origem a uma frase que se tornou o mote de uma geração. Ainda no outro dia Boris Johnson teve o descaramento de dizer que o sucesso da vacinação se devia ao capitalismo e à ganância. Nada disso! O aparecimento tão rápido das vacinas é de facto um grande sucesso, mas deveu-se ao grande trabalho conjunto do setor público e privado. Mas há muita gente para quem a ganância continua a ser um valor positivo.

 

Voltamos à questão da definição de sucesso.

Exato. Do sucesso a qualquer preço.

É essa a versão que tem prevalecido?

Continua a ser essa a maior força. O poder político apagou-se muito e passou a ser dominado pelo poder económico. O Fórum Económico Mundial de Davos é o exemplo mais acabado disto. Vão lá os Presidentes da República, os primeiros-ministros… todo o poder político vai, no fundo, prestar contas ao poder económico. Até o Presidente chinês, Xi Jinping, a certa altura lá foi, depois da eleição de Donald Trump, e tornou-se o herói do neoliberalismo legitimado pelos banqueiros e por outros detentores de grandes fortunas. Isto é um pouco simbólico de como o poder político se apaga e como tem de obedecer ao poder económico. Impressiona-me muito a falta de qualidade dos políticos mundiais. Olhamos para os dirigentes europeus em geral e não se encontram já as grandes figuras como De Gaulle, Churchill, Mitterrand, tantos. Temos pessoas mais ou menos apagadas, algumas ganham eleições não se percebe muito bem como, com coligações estranhas. Tudo isto me deixa um pouco preocupado.

 

Diz no livro que para salvar este "mundo doente" cada um tem o seu lugar.

Enquanto cidadãos, temos de obrigar os políticos a portarem-se decentemente. E, em segundo lugar, não podemos olhar para a política como uma coisa desprezível em que as pessoas só estão ali para fazerem negócios. Não pode ser. A política é a construção da nossa vida.

 

Mas os próprios partidos não têm de fazer uma introspeção?

Seguramente. Por isso é que há pouco eu falava na falta de qualidade dos dirigentes em geral. Vamos outra vez à questão do sucesso. Muitas pessoas que entram nos partidos têm a expectativa de conseguir lugares melhores. Os partidos que estão no poder têm a possibilidade de fazer nomeações para muitos cargos, e há por isso muita gente que entra na política como um exercício individual e não como um exercício coletivo. Isso é o pior que pode acontecer.

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