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José Manuel dos Santos: “Toda a gente acha que sabe tudo sobre Mário Soares”

Mário Soares foi um “político que queria ser escritor – e que foi escritor ao ter sido político”, diz José Manuel dos Santos, coordenador da coleção “Obras de Mário Soares” e que coordena o programa de comemorações do centenário do nascimento de Mário Soares, que se celebra a 7 de dezembro. Recorde a entrevista ao Weekend em 2021.
Lúcia Crespo e Sérgio Lemos - Fotografia 07 de Dezembro de 2024 às 10:30

Entre livros, cartas, relatórios, crónicas e muitos outros escritos, o político português deixou um espólio com cerca de três milhões de documentos. Parte desse acervo será partilhado na coleção "Obras de Mário Soares", coordenada por José Manuel dos Santos. O programador cultural e escritor foi assessor cultural do antigo Presidente e partilha algumas histórias que também vivenciou. Mário Soares foi um "político que queria ser escritor - e que foi escritor ao ter sido político". Lançada pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda, a coleção é apresentada segunda-feira na Fundação Calouste Gulbenkian e tem como ponto de partida a tese de licenciatura do jovem Soares sobre Teófilo Braga. Seguir-se-ão, ao longo dos anos, novos livros, uma grande biografia e, no final, um outro retrato, talvez.

Estas "Obras de Mário Soares" dão dele um outro retrato?

A imagem de Mário Soares será diferente nalguns casos e em alguns aspetos. Eu próprio fiquei relativamente surpreendido: parece que esteve sempre a preparar-se para o momento em que teria um papel fundamental na História portuguesa contemporânea. Soares tinha 50 anos no 25 de Abril, se a ditadura tivesse durado mais 20 anos, não teria tido oportunidade de viver a democracia numa idade mais ativa. No entanto, a sua imensa correspondência era já uma reflexão sobre aquilo que o país precisava para ser uma democracia. O instinto levava-o a pensar que esse dia chegaria mais depressa do que a maior parte das pessoas imaginava. Sempre que ia à Alemanha, dizia: a ditadura vai cair em breve. Nunca caía, e muitos achavam que o seu grande otimismo o tornava irrealista. No 25 de Abril, Soares estava em Bona a convite do SPD e do chanceler Willy Brandt. Durante a noite, o ministro da Defesa da Alemanha acorda-o e diz-lhe: ó Mário, parece que desta vez tens razão, está lá uma revolução.

 

Que novas grandes reflexões encontraram nesta troca de correspondência?

Soares manteve um diálogo permanente com historiadores, com escritores, com intelectuais em geral: correspondia-se com António Sérgio, Jaime Cortesão, Vitorino Magalhães Godinho e Joel Serrão, entre muitos outros. No fundo, toda esta correspondência é uma reflexão que prolonga a própria reflexão da Geração de 70, na qual Soares se reconhecia. Concordava com o diagnóstico do nosso atraso: achava por exemplo que o texto "Causas da Decadência dos Povos Peninsulares nos Últimos Três Séculos" (das Conferências do Casino), de Antero de Quental, se tinha mantido atual muito para além do tempo em que foi proferido. Mas também considerava que os intelectuais da Geração de 70 tinham uma visão desdenhosa e pessimista do país, enquanto ele achava que éramos um grande povo.


Não foi por acaso que escolheram para volume zero destas "Obras" o primeiro livro que Soares publicou, em 1950, com o título "As Ideias Políticas e Sociais de Teófilo Braga".

Soares tinha os pés na terra e também não fechou os olhos aos críticos progressistas da República. E também não foi por acaso que escolhemos, para o volume zero, o exemplar que ofereceu a António Sérgio, com notas de leitura do próprio Sérgio – que teve sempre uma atitude crítica relativamente aos males da República e era "inimigo intelectual" de Teófilo Braga. Até foi na inauguração da Casa António Sérgio que Mário Soares, já como Presidente, encontrou o exemplar anotado e ficou então maravilhado: uma figura com a importância intelectual do Sérgio recebeu um livro de um jovenzinho de vinte e tal anos, teve o cuidado de o ler, de o anotar e de lhe escrever uma carta!

 

O livro resulta da tese de licenciatura em Ciências Histórico-Filosóficas, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. A defesa dessa tese até envolveu um momento polémico.

No júri, estava também Délio Nobre Santos, um tipo que tinha sido deputado da União Nacional, e que fez uma diatribe contra o Soares, dizendo que aquele não era um livro de História. O Soares arrancou-lhe o livro da mão e disse: "Vou-me embora, isto é uma pouca-vergonha, não tenho nenhuma consideração por si." E saiu. Perante uma universidade completamente hierarquizada e protegida, o jovem Mário Soares teve a coragem de afrontar um professor, que ainda por cima era deputado, independentemente das consequências.

Soares pertence a uma geração de ouro, à geração de todos os centenários que temos vindo a celebrar: a Sophia, o Sena, o Saramago...

Foi nessa altura que começou a enviar aos amigos aquilo que escrevia?

Sim, foi um hábito que continuou com o "Portugal Amordaçado", publicado em França em 1972 – inventariámos até agora 150 cartas que analisam o livro. Encontrámos uma carta magnífica do Eduardo Lourenço: Lourenço diz que aquele é "o romance político da nossa geração". Eu acho que Soares pertence a uma geração de ouro, à geração de todos os centenários que temos vindo a celebrar, de gente nascida entre 1919 e 1930: a Sophia, o Sena, o Saramago, o Cesariny, a Natália, a Agustina, o próprio Eduardo Lourenço, o Pomar, o José-Augusto França... Esta é provavelmente a geração de ouro do século XX. Se calhar tem que ver com o facto de, na sua juventude, terem vivido a guerra, as esperanças da guerra, o susto da guerra – foram moldados pela guerra, talvez.

 

Liam-se uns aos outros, criticavam-se. Havia uma espécie de recensão crítica constante?

Sim. Estas cartas foram sempre de uma enorme importância para Mário Soares, isso nota-se muito, por exemplo, na sua correspondência de São Tomé – o período em que se sente que ele está mais angustiado, mais abandonado, mais sozinho. Dizia aos amigos: continuem a escrever-me, nunca se sabe quando as cartas chegam, demoram semanas, mas uma palavra vossa é aquilo que me mantém. Numa carta ao Augusto Abelaira, escreveu: imagine lá, aqui aonde não chega nada, acabou de chegar ao barbeiro o seu antigo romance, e a primeira coisa que fiz foi comprá-lo. Mário Soares leu o romance e fez logo uma crítica: gostei disto, daquilo e daqueloutro, não gostei nada do fim. Permitia-se discutir o fim do romance com o autor!

No prefácio das ‘Incursões Literárias’, é o próprio que diz: ‘É certo que sempre tive, talvez, uma visão literária da vida.’

A crítica literária interessava-lhe, até mais do que a discussão política?

Eram interesses simultâneos. No prefácio das "Incursões Literárias" (2003) é ele próprio que diz: "É certo que sempre tive, talvez, uma visão literária da vida." Todos os grandes políticos, pelo menos até à sua geração, tinham um triângulo: política, literatura e história. Churchill, De Gaulle, Mitterrand, Willy Brandt, todos escreviam livros e eram muito bons escritores – Churchill foi prémio Nobel da literatura… Em Portugal, tivemos nomes como Teófilo Braga, Teixeira Gomes. Estes são políticos-escritores, outros são escritores-políticos – falamos de Garrett, de Herculano, de todos os intelectuais da Geração de 70. Quando Mário Soares chegou a Belém, teve até a tentação de ir buscar à galeria dos retratos as imagens de Teófilo e de Teixeira Gomes, queria pô-las no seu próprio gabinete. Eu dissuadi-o de desfazer a galeria e de criar ali um vazio cronológico!

 

Dividia os políticos entre os que sabiam escrever e os que não sabiam escrever?

No primeiro contacto que estabelecia com alguém, tentava perceber se essa pessoa gostava de ler, de escrever. Achava que a literatura possibilitava uma espécie de experiência da vida e do mundo, mesmo a quem não tinha tido essa vivência pessoalmente, era uma preparação fundamental para a política. Considerava que o grande político era como um grande escritor, tinha de ter uma grande visão da vida. Não é por acaso que os grandes escritores usam muitas vezes metáforas da política. Por exemplo, Musil diz que escrever um grande romance é tão ou mais difícil que governar um grande império.

Costumava dizer: toda a gente sabe quem é o Eça e ninguém sabe quem foram os primeiros-ministros do tempo do Eça.

Descobriram novos factos históricos na correspondência trocada entre Soares e Cunhal?

É possível, mas ainda iremos tratar da correspondência política, agora dedicámo-nos sobretudo à correspondência cultural. Que reúne quase todos os nomes, da Beatriz Costa ao Siza Vieira, da Adília Lopes ao Manoel de Oliveira, do Herman José e do Júlio Isidro ao Vergílio Ferreira, do Jaime Cortesão e do António Sérgio ao José Cardoso Pires, do José Mattoso ao António Damásio. Não há ninguém que "mexa" nos campos da ciência, da arte e da literatura, que aqui não esteja. Como Mário Soares mantinha uma grande proximidade com todos eles, essas cartas não são nada formais. Eugénio de Andrade, por exemplo, diz coisas que vão mesmo ao encontro daquilo que Soares pensaria: sei que é do lado da poesia e que até deveria escrever mais coisas, mas começo a descrer, acho que a política o vai roubar à literatura. Cesariny diz: recebi o seu convite para ir a um banquete na Ajuda, mas não tenho um fato escuro. E o Soares responde: ó Mário, você venha como quiser, até lhe fica muito mal vir com um fato escuro, deixava de ser quem era... Existe aqui toda esta troca de opiniões, de conselhos e lamentos. A partir destas cartas, quase se consegue fazer uma espécie de história cultural do país do século XX e princípio do século XXI.

 

Que inclui a correspondência com José Saramago.

Soares leu o "Memorial do Convento" e "O Ano da Morte de Ricardo Reis" quando era primeiro-ministro. Nessa altura, Saramago era um PC ortodoxo, um PC que estava ao rubro no combate contra o Soares. Soares leu então os livros e escreveu uma carta ao Saramago, na qual dizia: os livros são extraordinários, quero dar-lhe os parabéns, sei que não sou simpático para si, nem você é para mim, mas, em consciência, sinto que devo dizer-lhe isto. Saramago respondeu: tem razão, não somos simpáticos um para o outro, mas também mentiria se lhe dissesse que me é indiferente que tenha gostado dos meus livros… E depois vão trocando correspondência em várias ocasiões.

 

Mantinha a correspondência com escritores e estava também sempre rodeado de livros?

Sempre. Quando viajava, levava uma ou duas pastas cheias de livros e depois ia escolhendo o que lhe apetecia ler. Lia vários ao mesmo tempo. Escolhia-os também de acordo com o sítio onde estava. Ler um livro em Paris era diferente de ler em Lisboa. Os livros eram coisas vivas. Achava até que havia livros bons para a gripe – dizia que o Camilo era bom para ler na gripe. E leu a Rachel de Queiroz durante uma gripe. Eram livros que, pela sua emoção, nos aqueciam, dizia ele. Soares era um grande bibliófilo, passava a vida nos alfarrabistas, acumulou tesouros bibliófilos extraordinários. Não fazia nenhuma visita particular ou oficial sem ir uma livraria. Tinha caixotes cheios de livros. No fundo, isto era uma espécie de apropriação simbólica, ele sabia que muitos desses livros não seriam lidos, mas, ao tê-los, ficava com a ideia de que sabia o que continham.


E percebe-se que Mário Soares "não era somente o grande e virtuoso improvisador (…), não era unicamente o homem sem medo", escreve na apresentação da coleção.

A coisa mais extraordinária é que toda a gente acha que sabe tudo sobre Mário Soares, já que ele falava tanto da sua vida. Mas não é bem assim. Ele passou a imagem que lhe era mais fácil passar, a que lhe dava mais jeito passar, a de que era um homem simples, sem complexidades psicológicas ou mistérios especiais intelectuais. A verdade porém é que tudo aquilo que apareceu na sua vida, tudo aquilo que fez e decidiu, é como que uma ponta do icebergue, depois há um icebergue por baixo, que pode ser redescoberto através da correspondência, das notas, das reflexões. Não era apenas um talento da espontaneidade. Era muito mais sólido do que parecia. Havia também a ideia de que era um grande político, mas não tanto um homem de Estado, e só na Presidência é que essa imagem mudou. Ele tinha verdadeiramente uma noção do Estado democrático.

 

Não deixa de ser um homem muito controverso.

Isso fazia parte da sua coragem. Era uma pessoa muita desassombrada. Quando morreu, muitos jornais fizeram aquilo que gostam de fazer: foram à internet buscar um conjunto de citações. A maior parte delas eram muito recentes, até de fases em que Soares já não estaria inteiramente bem, e em que por vezes usava uma linguagem muito direta e sem filtro. Aquilo foi de um reducionismo terrível, porque as coisas mais extraordinárias que Soares disse não estão na internet, a maior parte da sua vida política é feita antes da internet – as suas grandes reflexões, os grandes discursos. Era verdadeiramente um homem universal, tudo o que era humano lhe interessava. Nunca perdeu a curiosidade, mesmo no fim. A primeira coisa que fazia de manhã era ler os jornais, ia tomando notas num bloco. Se lesse alguma coluna de opinião mais crítica, escrita por um amigo, tinha de lhe falar para o esclarecer. Como todos os políticos, achava que a maior parte das críticas eram injustas. Pensava também que, se explicasse a situação ao autor da crítica, essa crítica deixaria de existir.

 

Teve sempre necessidade de se fazer explicar?

Imensa. Fiel à lição do seu mestre António Sérgio, acreditava na pedagogia democrática. Fazia-o escrevendo, telefonando ou convidando as pessoas para almoçar. Quando sentia que alguém se estava a aproximar, achava também que era preciso cultivar essa aproximação.

 

Foi sempre um sedutor.

Era um instrumento fundamental de trabalho político. Quando chegava aos gabinetes, trazia o bloco com 15 ou 20 coisas anotadas para fazer ou mandar fazer, anotações que escrevia a partir da leitura dos jornais. Nunca deixou de ler jornais, nem naqueles momentos em que a maior parte dos políticos deixa de ler jornais. Ele ficava irritado, atirava com o jornal se fosse preciso.

 

Quais os momentos mais ferozes?

Os dos governos. A história dos seus governos foi sempre mal contada, foi-se criando a ideia de que Mário Soares foi um grande Presidente da República e um mau primeiro-ministro, eu acho que foi também um grande primeiro-ministro.

Usava a imagem das colheitas, achava que a democracia era como um grande vinho - e, como um grande vinho, acabaria por recuperar.

Uma opinião que não é consensual. De que forma é que questões sensíveis como a descolonização estão também expressas nestes registos?

Soares tinha uma visão política da descolonização: achava que a descolonização tinha de ser feita, que o 25 de Abril tinha sido feito por causa da guerra, mas que a maior parte das condições em que essa descolonização se realizou não foram da sua responsabilidade. Nunca se quis explicar muito sobre isso, pensou sempre, acho eu, que isso poderia falsificar a sua posição, dando a ideia de que estaria contra a descolonização. Em primeiro lugar, ele sabia qual a lição da História: todas as descolonizações provocam vítimas, culpadas ou inocentes. Depois, a responsabilidade direta do processo nunca foi inteiramente dele. Soares sabia que havia pessoas que o julgavam mal, mas sentia também que isso era inevitável. Talvez perfilhasse a definição que Miguel Sousa Tavares fez de si, a ideia de que muitas vezes cometeu erros no acessório, mas que não se enganou em relação ao fundamental.

 

Morreu desassossegado?

Morreu desassossegadíssimo, achava que a democracia no mundo estava a ser completamente pervertida...

 

Sentia que estava a assistir à queda do seu próprio mito?

Ele usava a imagem das colheitas, achava que a democracia era como um grande vinho – e, como um grande vinho, acabaria por recuperar.

Preparou-se para quase tudo, mas não preparou a sua morte. Era uma ideia que rejeitava?

Ele achava que aquilo que uma pessoa faz é suficiente para a pessoa ser perpetuada, e portanto não seria preciso preparar nada, as preparações eram muito artificiais. Também não gostava de pensar na morte. Mas não fugia de pessoas doentes nem evitava velórios. Um dia, o David Mourão-Ferreira estava já muito doente, o Soares foi visitá-lo, fui com ele. O Soares pergunta: como estás? E o David responde: estou com um cancro multifocal, a ser atacado de todo o lado, mas não vamos falar disso, vamos falar daquilo de que gostamos, vamos falar de literatura, de política. O Soares ficou encantado, esquecemo-nos todos da doença, e quando acabámos era como se não tivesse havido a conversa inicial, era como se o David estivesse bom.

 

Receia que esta coleção possa ser apontada como uma obra de propaganda?

Falamos de alguém que foi protagonista da História durante muitas décadas, por onde tudo e toda a gente passou. Não há quase ninguém que não tenha conhecido, a nível nacional e internacional. Conheceu Karl Popper, Vargas Llosa, Octavio Paz, conheceu toda a gente. É por isso uma fonte fundamental para a história contemporânea. A nossa ideia é que estas "Obras" possam depois desembocar numa grande biografia, a ser publicada em mais que um volume, como acontece com as biografias dos grandes políticos. E, por se tratar de um político, temos uma preocupação especial. Sabemos que os políticos geram amores e ódios, não queremos transformar esta coleção em nada que seja parecido com propaganda política, é uma coleção com uma orientação científica.

Numa carta a Mário Soares, Adília Lopes dizia: ‘(…) Costumo pensar em si como quem toma Prozac. É, o Dr. Mário Soares é antidepressivo.’

Mas, pessoalmente, sente estas "Obras" também como um tributo?

Sim, acho que seria aquilo que Soares mais gostaria, pela ideia que tinha da pedagogia política e da literatura. Esse talvez tenha sido o único remorso dele, o não ter dedicado mais tempo à escrita e à literatura, sobretudo nos anos finais. Soares tinha o projeto de fazer uma autobiografia que continuasse o "Portugal Amordaçado", fez apenas um esboço, com "Um Político Assume-se". Queria também escrever memórias e fazer o retrato das grandes personalidades que tinha conhecido e de acontecimentos vivenciados, alguns até com registos cómicos – dizia por exemplo que haveria de escrever um livro sobre os funerais mais interessantes. Contava que, no funeral de Brejnev, tinham estado seis horas na Praça Vermelha, a ouvir discursos que ninguém percebia, com uma temperatura de 30 graus abaixo de zero…! Nunca mais acabava e o frio era terrível.

 

Numa carta a Mário Soares, Adília Lopes dizia: "(…) Costumo pensar em si como quem toma Prozac. É, o Dr. Mário Soares é antidepressivo."

Essa era uma faceta fundamental da sua personalidade. Mário Soares tinha um sentido lúdico das coisas e da existência. Também era colérico, também tinha fúrias. Era de uma enorme exigência para com quem trabalhava com ele. Se eu deixasse passar duas gralhas num texto, escrevia-me logo uma coisa furiosíssima. Estava permanentemente a aperfeiçoar os discursos, a corrigi-los, até à sua forma final. Fazia uma vastidão de emendas, cortes, revisões, adendas – e tinha uma datilógrafa só para isso, a Maria José Ribeiro. Os discursos de apresentação do programa do Governo tinham umas 80 páginas datilografadas e, para chegar a essas 80 páginas, era necessário todo um trabalho de montagem de palavras. Eram puzzles gigantescos!

 

Mário Soares escrevia mesmo todos os dias?

Todos os dias, quase sempre à mão, já com a preocupação de escrever com químicos, queria ficar com cópias. E colecionava tudo, até pequenos papéis que outras pessoas deixavam nas mesas de reuniões. Percebia que teriam comentários que poderiam ser úteis como fonte, apanhava-os e levava-os para o arquivo. Isso acontecia, por exemplo, nas reuniões do Secretariado do PS ou do Conselho de Ministros. Não havia proteção de dados na época (risos). Ele guardava mesmo tudo e anotava tudo.

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