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Sandrine Dixson-Declève: “O relatório Draghi está a empurrar-nos para o modelo neoliberal americano”

A copresidente do Clube de Roma defende que é tempo de a Europa mostrar que é competitiva, mas não seguindo “modelos de competitividade do século XX”. Ao contrário da política protecionista dos EUA, Sandrine Dixson-Declève acredita na abertura da Europa ao mundo e no diálogo com outras geografias.

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Sandrine Dixson-Declève, copresidente do Clube de Roma

Perfil Em defesa da sustentabilidade e da igualdade de género
É copresidente do Clube de Roma, um "think tank" centrado na sustentabilidade global e em estratégias de longo prazo para enfrentar desafios complexos como as alterações climáticas, perda de biodiversidade e desigualdade económica. Com mais de 30 anos de experiência em políticas, negócios e sustentabilidade, Sandrine Dixson-Declève é uma das vozes mais influentes na defesa da sustentabilidade e da igualdade de género. Trabalhou com governos, empresas e organizações não governamentais para promover a mudança sistémica. É também uma defensora de destaque da economia verde e serviu como conselheira de instituições como a União Europeia em iniciativas de energia, clima e sustentabilidade.
A Europa tem capacidade para continuar a ser líder em matérias relacionadas com o clima e a sustentabilidade, porém "num ângulo ligeiramente diferente", defende Sandrine Dixson-Declève, copresidente do Clube de Roma e convidada internacional da Conferência do Ambiente, organizada pelo Negócios nesta quarta-feira.

A União Europeia vai apresentar uma nova Comissão Europeia. O que se pode esperar dos novos comissários e da missão da UE na Europa e no mundo? Que mudanças antevê nas políticas públicas ambientais e de transição energética?
Pelo que estamos a ver nas audições aos novos comissários podemos continuar a esperar uma liderança em matéria de clima e do Pacto Ecológico Europeu, mas com um ângulo ligeiramente diferente. O que estamos a ver é que, devido ao relatório Draghi que se centrou muito na competitividade, e o relatório Leterme, que se centrou muito no mercado único, há realmente um receio de que a Europa esteja a começar a perder competitividade a nível global e há um desejo de que o Pacto Ecológico Europeu continue a ser a visão. E como é que podemos traduzir isto numa visão industrial e numa visão social? A minha esperança é que, trabalhando em conjunto e continuando a abordar as formas como uma política económica e fiscal adequada pode permitir à Europa ser líder, mas sem perder os seus valores ambientais e sociais, possamos mostrar ao resto do mundo que isso é possível. E penso que a Teresa Ribera, que vai ser a vice-presidente para a Competitividade, tem este objetivo. Penso também que a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, também tem este objetivo.

Então concorda com as diretrizes do relatório Draghi?
Não, não concordo. Penso que o relatório Draghi está a empurrar-nos para um modelo neoliberal americano em que a competitividade é a única coisa a ter em consideração, em que medimos a competitividade com base na produtividade. E eu não acredito que a produtividade possa ser o único motor de crescimento numa altura em que sabemos que com 1,5 graus perderemos 3% do PIB e com 3 graus perderemos 10 a 12% do PIB. Por isso, temos de proteger a nossa economia de forma diferente. Temos de medir coisas que nos levem para além do crescimento, atribuir um valor à resiliência, atribuir um valor ao acesso aos cuidados sociais, ao bem-estar, etc. Atribuir valor a uma indústria que seja competitiva, mas também descarbonizada.

Mas o relatório Draghi quer melhorar a competitividade descarbonizando a indústria.
Mas não entra em detalhes. E quer muito adotar um modelo neoliberal americano que continua a valorizar a competitividade do século XX. Nós não estamos no século XX. Estamos confrontados com desafios muito diferentes. É por isso que prefiro o relatório Leterme. Penso que temos de nos ancorar num mercado único que funcione corretamente. Concordo que precisamos de abordar a nossa parceria com o resto do mundo e também de criar algum tipo de sistema tarifário que valorize a descarbonização a nível global, bem como no mercado interno. Mas o que realmente me perturba no relatório Draghi é o facto de estar muito ancorado nas velhas noções de uma economia forte, baseada no crescimento, que não acredito que funcione. E se olharmos para o que está a acontecer nos Estados Unidos, lamento, mas este não é o modelo a seguir. Por isso, este é o momento para a Europa mostrar que pode ser competitiva, que pode efetivamente dar valor ao que é mais importante.
 
Que impacto pensa que terá a vitória de Donald Trump nas políticas públicas ambientais e na transição energética?
Estou menos preocupada com o impacto no ambiente e nas alterações climáticas nos EUA. É preocupante porque provavelmente vai livrar-se da Agência de Proteção Ambiental, como fez da última vez. É provável que se retire do Acordo de Paris e que continue a promover os interesses do petróleo e do gás. Portanto, isso é uma perturbação. Mas o facto é que, da última vez que o fez, durante a primeira administração Trump, foi bastante interessante verificar que a maioria dos Estados assumiu a responsabilidade da descarbonização. Tivemos muitos presidentes de câmara e estados dos EUA que se mobilizaram. Temos de nos lembrar também que muitos dos resultados positivos da Lei de Redução da Inflação ocorreram nos Estados vermelhos. Portanto, vai continuar a haver um certo nível de descarbonização nos Estados Unidos. O que é mais problemático é obviamente a geopolítica. Será a forma como começará a aplicar tarifas de forma agressiva e não estabelecerá parcerias com outros países, porque precisamos de parcerias, precisamos de garantir a aplicação do Acordo de Paris. É isso que me preocupa mais, a sua relação com o resto do mundo.

A outra parte preocupante é que já não se trata apenas da administração Trump. Temos agora um Congresso dos EUA que é predominantemente liderado pelos republicanos, especialmente no Senado. E também temos o Supremo Tribunal que será liderado pelos republicanos. Portanto, nas questões-chave relacionadas com as mulheres, com o clima, com a imigração, vamos começar a ver uma reação negativa e um retrocesso. E na democracia, claro.

E como é que isso vai afetar as políticas europeias nas questões ambientais e sociais?
Penso que este é o momento em que a Europa tem de mostrar que é diferente. Vimos a fealdade das declarações feitas por Trump como novo Presidente e de quando foi Presidente. Por isso, este é o momento para a Europa mostrar uma verdadeira liderança, para começar a abrir uma nova conversa com a China e com o resto do mundo sobre o que é um tipo diferente de liderança. Não podemos continuar a ser "como um veado perante faróis" [N.R: expressão que significa ficar paralisado]. A Europa precisa de mostrar a sua liderança.

Sabemos que 80% dos subsídios da PAC vão para as grandes explorações agrícolas. Temos de acabar com isso.
Como deve a Europa mostrar essa liderança? A grande crítica é que a UE regula demasiado.
Sim, e esse é um dos pontos-chave. É verdade. Mas regular demasiado não significa não regular de todo. A chave é como é que otimizamos a nossa regulamentação? Como garantimos que as normas que implementamos, que as políticas que implementamos, permitem às empresas e aos cidadãos seguir o caminho de descarbonização? Isto significa começarmos a fazer algumas escolhas bastante brutais. Não brutais para a liderança, mas em termos de começar a enfrentar o poder real e a obtenção de lucros de certas partes da nossa economia. Há 2,8 mil milhões de lucros inesperados das empresas de petróleo e gás por dia. Tributem-nos. Peguem nesses impostos e usem-nos para um fundo de transição justa. Os cidadãos de toda a Europa estão a ficar mais pobres e a sofrer de pobreza energética. O mesmo se passa com os géneros alimentícios. Comecem a analisar a Política Agrícola Comum para os pequenos agricultores, não para os grandes agricultores. Sabemos que 80% dos subsídios da Política Agrícola Comum vão para as grandes explorações agrícolas. Temos de acabar com isso, da mesma forma que temos de acabar com os subsídios à energia fóssil. São estas as perversidades do mercado que estão a começar a irritar as pessoas e os cidadãos europeus.

E a nova liderança europeia tem força para fazer isso?
Penso que é muito difícil devido à reação do Partido Popular Europeu e à forma como a presidente tem sido demonizada por algumas pessoas do seu próprio partido. Penso que ela tem vontade e inteligência para fazer as coisas certas. E penso que o que ela precisa agora é de ver que a sua liderança é tão necessária não apenas numa perspetiva europeia, mas numa perspetiva internacional. E para isso é necessário tomar decisões muito corajosas. É difícil quando se tem o setor do petróleo e do gás, é difícil quando sabemos que é o grande capital que controla o nosso sistema financeiro e económico. Mas não vejo outra solução. Por isso, penso que todos nós, que trabalhamos na área da política, temos de a apoiar a mostrar uma verdadeira liderança, porque vai ser difícil.

A Alemanha é vista como motor da economia europeia, mas a sua economia dá sinais de fragilidade e avizinham-se eleições antecipadas. As dificuldades alemãs podem pôr em causa a transição da Europa?
Penso que existem três motores principais na Europa, não apenas a Alemanha. Na verdade, penso que agora a situação está mais equilibrada entre a Alemanha, a Espanha e a França. Assistimos a uma grande liderança de Espanha nesta altura. Assistimos a um grande retrocesso na Alemanha, também devido ao crescimento da direita radical, que está a agitar as coisas ao ponto de se aproximar do nazismo. Penso que, sim, isto está a criar algum caos em toda a Europa, mas este é também potencialmente o momento em que a Comissão e a presidente podem começar a mostrar ainda mais liderança, porque os Estados-membros, até certo ponto, são fracos e estão a mostrar as suas fraquezas. No entanto, será difícil também porque a política energética é uma política dos Estados-membros, a fiscalidade é uma política dos Estados-membros. Por isso, para que esta transformação seja efetiva, precisamos da participação dos Estados-membros. E isso será difícil quando existem tantas distrações no que diz respeito ao Governo alemão.

É um momento difícil.
Ninguém está a dizer que vai ser fácil, mas penso que é por isso que temos de ser muito estruturados nas exigências e começar a pôr em prática algumas das mudanças fundamentais que são necessárias para permitir que essas exigências se concretizem. E muito de como foi feito durante a covid. Também precisa de andar de mãos dadas com comunicações adequadas, precisamos de construir as narrativas. Precisamos de descobrir formas de trazer mais pessoas para esta viagem. As pessoas estão desesperadas. As pessoas estão a sofrer com a inflação elevada em toda a Europa. Temos de ter muito cuidado para não perdermos pessoas. Apesar de a maioria dos dados mostrar que acreditam nas alterações climáticas e estão dispostas a pagar a sua quota-parte e a fazer o que for necessário, elas querem liderança.
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