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A um festival já não basta só passar música

O público está cada vez mais exigente e procura experiências de lazer que se coadunem com as preocupações ambientais e sociais. É também por isso que a sustentabilidade entra nas estratégias dos organizadores de eventos. A época dos festivais está a abrir e quem neles participa já não quer só que lhes deem só música.

15 de Junho de 2022 às 11:00
O Rock in Rio tem sido um dos festivais a fazer o seu caminho nas matérias 	de sustentabilidade.
O Rock in Rio tem sido um dos festivais a fazer o seu caminho nas matérias de sustentabilidade. Agência Zero
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Quando a edição do Rock in Rio Lisboa terminar, a 26 de junho, profissionais do Boom Festival irão recolher todo o material que puderem aproveitar para reutilizarem na sua edição, que acontecerá de 22 a 29 de julho em Idanha-a-Nova. A parceria entre as organizações dos dois eventos reflete a estratégia daqueles que serão dois dos festivais mais sustentáveis a decorrer em Portugal e para os quais as questões ambientais e sociais sempre estão no centro das estratégias.

Em ambos é dada atenção à gestão de resíduos, água e energia, promovendo o combate ao desperdício alimentar, cuidando das acessibilidades e bem-estar do público, contabilizando o impacto económico na comunidade, entre outros requisitos para se ser um festival sustentável. Mas já lá vamos.

A sustentabilidade é uma preocupação crescente e para os organizadores de festivais de música tal não é exceção. “Os festivais estão cada vez mais preocupados. Sentimos que há um grande trabalho e vemos isso pelo tipo de empresas com as quais querem trabalhar. A própria parcela de investimento em sustentabilidade é cada vez maior”, começa por explicar Ricardo Bramão, diretor da Associação Portuguesa Festivais de Música (Aporfest).

O responsável recorda que há poucos anos “a parte da sustentabilidade não era sequer considerada, mas hoje não basta ter bandas para atuar, é preciso transmitir uma mensagem às pessoas”. “E não querem só comunicar as questões de sustentabilidade que fazem, mas também deixar uma pegada positiva.”

A parcela que o setor tem dedicado à sustentabilidade não tem sido genericamente contabilizada, mas a Aporfest estima que represente entre 10% e 15% do orçamento das organizações. A componente vai ser introduzida pela primeira vez no relatório anual da associação, que sairá no próximo mês de dezembro, e que mostrará o nível em que está o setor dos festivais em Portugal nesta vertente. Porém, apesar de este ser um movimento sem retorno, Ricardo Bramão ressalta os custos associados para se acautelarem todas estas questões e a necessidade de definir apoios para se fazer a transição nos festivais de música, não só pela atividade em si, mas também por serem plataformas de comunicação com o público onde estas questões podem ter voz ativa.

O “Sê-Lo Verde”, um apoio suportado por verbas do Fundo Ambiental para incentivar a adoção de boas práticas ambientais, sociais e económicas nos festivais de música, estava a fazer o seu caminho para apoiar um setor que, segundo estimativas do Instituto Português de Administração e Marketing (IPAM), terá um impacto total na economia portuguesa de 100 milhões de euros. Porém, o “Sê-lo Verde” “foi suspenso por causa da pandemia e a sua continuação será fruto de uma avaliação”, referiu o gabinete de imprensa do Ministério do Ambiente e da Ação Climática (MAAC) ao Negócios. Uma falta sentida pelo setor, ainda mais em anos particularmente conturbados.

Ricardo Bramão destaca que “estamos num ano que não é fácil”. “Os custos de produção, por causa da energia, da guerra e do pós-covid, são muito mais caros do que eram anteriormente. E com tudo isto ainda inserir uma nova parcela de sustentabilidade, mais cara ou mais pesada, na percentagem dos festivais é de facto relevante”, frisa.

Mas, afinal, quais são as exigências para se ser um evento sustentável? Há que cumprir uma série de critérios que garantam o bem-estar das pessoas, a proteção do ambiente e a eficiência dos processos e impacto na comunidade. No fundo, cumprir os critérios ESG (environment, social, governance). Existem diferentes selos ou certificações que garantem esse mesmo cumprimento. O próprio “Sê-Lo Verde” é um deles nos anos em que está em execução. Mas falamos também da norma ISO 20121 - Sistema de Gestão de Eventos Sustentáveis, atribuída globalmente pela APCER e que garante identificar, reduzir e eliminar os impactos potencialmente negativos de eventos nestas três componentes, avaliando a produção de resíduos, desperdício de materiais, consumo de água e energia e problemas para as comunidades envolventes. A norma garante também que se maximizam os impactos positivos do evento, tais como benefícios comunitários e económicos, etc. De salientar que o festival Rock in Rio foi o primeiro a nível mundial a obter a certificação ISO 20121.

Também a certificação Evento Mais Sustentável, atribuída pela SGS, garante ao público que está perante um festival que cumpre estes três pilares. Nesta perspetiva, o evento “está a assumir, em todo o seu ciclo de vida, um compromisso com a sustentabilidade, desde o planeamento, montagens, dia do evento, desmontagens, até ao total restabelecimento (ou melhoria) das condições iniciais do local”, explica Adriana Moura, gestora de Produto e Conectividade da SGS Portugal. Numa altura em que o verde assume protagonismo e o “greenwashing” cresce nas atividades económicas, as certificações surgem como a prova de que o público estará mesmo perante um festival que cumpre estes critérios.

Boom e RiR lideram caminho

Nascido há 25 anos, o Boom Festival foi pioneiro na mensagem e na execução de estratégias em prol da sustentabilidade nos eventos em Portugal. Ganhador de inúmeros prémios internacionais – como o Outstanding Greener Festival Award, em várias edições, o International Greener Festival, o European Festival Award, entre outros – é na cidadania que tem os seus alicerces.

“Temos a noção de que esta atitude é uma responsabilidade, aliás, é um compromisso permanente, por isso estamos sempre em contacto com pessoas e organizações que trazem novas abordagens para vivermos de forma sustentável”, refere Artur Mendes, membro da organização do Boom Festival.

Nesse sentido, apesar de o festival se realizar a cada dois anos, o trabalho na herdade de 180 hectares de Idanha-a-Nova é diário. Por exemplo, o programa de reflorestação do festival já plantou 925 árvores e 120 unidades arbustivas. Foi ainda criada uma estação de tratamento de água com capacidade para sete milhões de litros e assegurados 549 postos de trabalho aos quais se associam cerca de 400 indiretos.

Também a esmagadora maioria dos fornecedores é local. A consultora E&Y/Augusto Mateus fez um estudo sobre o impacto económico e concluiu que o impacto total deste festival em Portugal é de 55,3 milhões de euros. “O programa ambiental do Boom não é patrocinado. É uma estratégia totalmente independente, financiada pela venda de bilhetes e desenvolvida pelo Boom Festival. Dependendo da edição, o valor aplicado em todas as áreas da sustentabilidade anda pelo menos nos 500 mil euros por edição”, refere o organizador. Cerca de 85% do público deste festival é estrangeiro, sendo que para a edição deste ano é esperado que venha de 175 países.

No caso do Rock in Rio (RiR) Lisboa, quem for à edição deste ano vai deparar-se com uma série de inovações em prol da sustentabilidade, para além das já implementadas em edições anteriores em cumprimento com a ISO 20121. Ao nível da gestão de resíduos, por exemplo, existirão contentores para lixo orgânico que terão como destino a compostagem e que contarão com a colaboração dos festivaleiros para isso, promovendo também esta boa prática e criando algum alerta sobre o tema. Quem comprar uma T-shirt já não a receberá embrulhada em plástico. No recinto serão usados copos reutilizáveis e quem comer pizza já poderá reciclar o cartão da caixa, uma vez que será introduzida uma folha de papel vegetal que conterá a gordura. No campo social, um mapa tátil permitirá incluir festivaleiros com incapacidade visual e uma zona especial para surdos, junto às colunas, permitirá a esta comunidade sentir a vibração dos concertos, para além de também terem acesso pela primeira vez a língua gestual em alguns momentos.

Estas são algumas das medidas que fazem parte de uma estratégia alargada que tem como meta ser um evento inclusivo, plural e acessível até 2030, bem como gerador de 0% de resíduos e de desperdício alimentar. “A estratégia do Rock in Rio é impregnada de sustentabilidade desde a primeira edição. Mas a partir do momento em que, em 2013, o formalizámos, através da certificação ISO 20121, a sustentabilidade está efetivamente em todo o lado e em tudo aquilo que fazemos. Não vemos o Rock in Rio a acontecer de outra forma que não seja com este pilar, que para nós é até muito mais uma responsabilidade”, assinala Dora Palma, responsável de sustentabilidade do Rock in Rio.

Dada a informalidade que existe no mercado de eventos, a organização pretende também dar formação a 100 mil pessoas, incluindo Portugal e Brasil, até 2030 para que fiquem mais protegidas no mercado de trabalho. A intervenção social passa também pela promoção de talks para debater como fazer deste um mundo melhor. Na área alimentar, a opção por fornecedores locais e a promoção de alimentação sustentável faz também parte da estratégia. “Temos mais de 35 milhões de euros investidos desde 2001 só em projetos sociais e ambientais”, refere Dora Palma.

Relativamente à pegada carbónica do RiR, este ano, a Galp, patrocinadora do evento, irá compensar a mesma com dois projetos de captura e redução de CO2: um nos Passadiços do Paiva e outro na Nigéria.

 

Os festivais estão mais preocupados. Sentimos que há um grande trabalho e vemos isso pelo tipo de empresas com as quais querem trabalhar. Ricardo bramão

 

 

Não vemos o Rock in Rio a acontecer de outra forma que não seja com este pilar [da sustentabilidade], que para nós é até muito mais uma responsabilidade. Dora Palma
Responsável de sustentabilidade do Rock in Rio

 

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