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A próxima guerra será sobre o controlo da água doce

Poluição, barragens e outras infraestruturas, alterações climáticas... tudo fatores que contribuem para a escassez das reservas hídricas. E, com isso, os conflitos armados estão a aumentar. Europa aposta numa diretiva europeia e Portugal na gestão partilhada com Espanha. Será isso suficiente?

09 de Junho de 2021 às 11:00
O Alqueva é um dos mais importantes espelhos de água de Portugal.
O Alqueva é um dos mais importantes espelhos de água de Portugal. Hugo Rainho
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As reservas hídricas não são eternas. Poluição, alterações climáticas... fatores que influenciam (e fazem diminuir) as reservas existentes. O que já está a provocar conflitos (armados em vários pontos do globo). Aliás, como refere Carla Graça, vice-presidente da ZERO - Associação Sistema Terrestre Sustentável, isso já acontece, há várias décadas, em vários locais. A ambientalista dá como exemplo a questão de Israel e a ocupação de regiões da Palestina, que tem também muito a ver com o acesso à água para as suas populações e território. Por outro lado, muitos dos “conflitos atuais têm a ver com questões de degradação da qualidade da água e a sua inutilização”.

Olhando para o mapa do Water Conflict Chronology verificamos que a maioria dos conflitos se regista no continente africano, embora também os haja na América do Sul, Estados Unidos da América e nalguns pontos da Ásia. “Vários conflitos incluem a degradação de zonas húmidas e de reservas de água para instalação de indústrias, pastagens para cultivo de soja ou palma, etc. Nem sempre são conflitos abertos, mas são efetivamente conflitos em que as comunidades mais frágeis são sempre impactadas face aos interesses de grandes corporações”, constata Carla Graça.

Já Afonso do Ó, coordenador da prática de água na WWF Portugal, considera que felizmente tem havido bom senso e têm sido evitados conflitos maiores. Mas aponta o Nilo como um dos hotspots atuais, “com a Etiópia a construir uma megabarragem que já está na base de uma grande conflitualidade com o Sudão e o Egito”.

A Europa “escapa” a esse cenário. Apesar de haver um desequilíbrio das reservas hídricas, com o Norte da Europa a ter recursos mais abundantes que o Sul, que, pelo contrário, regista uma escassez desse bem essencial. A par disso, acrescenta o Ministério do Ambiente e da Ação Climática, há bacias hidrográficas transfronteiriças como regra e não como exceção.

“A diminuição da precipitação, irregularidade acentuada das afluências, aumento da procura de água para algumas atividades económicas e agravamento do potencial de conflito com outros usos e necessidades ambientais são factos incontornáveis”, refere o ministério, que acrescenta que, “de um lado, se assiste a uma pressão para a construção de mais infraestruturas de oferta; do outro lado, a necessidade da proteção da natureza e das espécies que povoam os rios, proteção dos ecossistemas ribeirinhos e terrestres associados, proteção da continuidade hidráulica dos nossos rios, tudo isto para garantia da sustentabilidade do nosso desenvolvimento”.

Face a este cenário é necessária uma abordagem holística, por parte da União Europeia, que se reflete no Quadro de Ação Comunitária no Domínio da Política da Água. As alterações climáticas tornaram a questão mais relevante, no que concerne ao direito comunitário e foram colocadas no centro das discussões aquando da presidência portuguesa da UE. Sobre isso, o Ministério do Ambiente e da Ação Climática refere ser evidente a necessidade de reduzir drasticamente o uso da água, apostando na eficiência hídrica e na reutilização segura da água tratada, e de promover a restauração de ecossistemas para o aumento da resiliência aos efeitos das alterações climáticas nas disponibilidades hídricas a médio-longo prazo. Aposta-se na discussão da escassez de água nas relações transfronteiriças a par das ações de âmbito nacional, regional e local (incentiva-se o desenvolvimento de planos padronizados e articulados de gestão das secas, complementares aos planos de gestão das bacias hidrográficas; aposta-se em estratégias de adaptação às alterações climáticas articuladas com planos de ação de base setorial).

No entanto, segundo a WWF Portugal, “tem faltado vontade política para implementar devidamente a diretiva e os seus princípios básicos (como seja o poluidor-pagador e o utilizador-pagador)”. Opinião seguida pela ZERO que afirma que, apesar do esforço realizado nos últimos anos continua a faltar uma fiscalização eficaz no que respeita a episódios de poluição, e nomeadamente no que se refere a poluição de agropecuárias, dado que a maioria dos efluentes pecuários são encaminhados para valorização agrícola, mas sem que haja um controlo da sua aplicação, nomeadamente quando, onde e em que quantidades. A mesma questão prende-se com a agricultura intensiva, através da utilização excessiva de fertilizantes, que depois contaminam as águas superficiais e subterrâneas. “A degradação da qualidade da água de 2015 para 2018, intervalo entre os dois últimos diagnósticos efetuados, poderá ter alguma relação com o aumento muito significativo da agricultura intensiva”, constata Carla Graça.

A par de uma maior fiscalização há que investir em procedimentos posteriores que resultem efetivos. Isto porque, como refere a ambientalista da ZERO, as contraordenações por vezes são difíceis de aplicar, ou são bastante mais baratas em comparação com os custos de instalação de equipamentos de tratamento de efluentes. Sem esquecer a morosidade da justiça, “ou mesmo o bom senso da sua aplicação nas questões ambientais”, que faz com que as questões ambientais não sejam devidamente valorizadas.

Relação com Espanha

Portugal está (extremamente) dependente de uma boa relação com Espanha, dado que a maioria dos rios que desaguam no território nacional “nascem” no país vizinho. Segundo informações disponibilizadas pelo Ministério do Ambiente e da Ação Climática, “cerca de 60.000 milhões de água afluem nos nossos rios, em ano médio, e perto de metade tem origem no território de Espanha”. Por outro lado, “no nosso território beneficiamos dos caudais abundantes da cordilheira Cantábrica (serra da Peneda-Gerês), um dos polos pluviométricos mais importantes da Europa, e da cordilheira Central (Estrela, Gardunha) e até mesmo no Alentejo os recursos não são tão escassos quando comparamos com o que se passa no resto da bacia mediterrânea”. Quanto à relação com Espanha, o ministério refere que esta é de “grande cordialidade”, relembrando os vários acordos assinados, referentes à gestão partilhada dos rios. Recentemente, a 10 de outubro de 2020, na declaração conjunta da XXXI Cimeira Luso-Espanhola, os dois governos assumiram “a necessidade de uma transição hídrica, através da poupança, uso eficiente e circularidade da água”.

Em relação à Convenção de Albufeira, assinada em 1998 e já revista, a ZERO considera que deve ser (novamente) revista, dado que “as disponibilidades hídricas sofreram alterações muito significativas nas últimas décadas”. Como refere Carla Graça, “devem ser implementados caudais diários nos restantes rios internacionais (como existe atualmente no Guadiana), mas acima de tudo devem ser definidos caudais ecológicos, de forma a garantir a preservação dos ecossistemas, e que é aliás o que está previsto no texto da Convenção e que não tem sido implementado até agora”. A par disso, a ambientalista defende que se deve acabar com o regime de exceção previsto para períodos de seca, e que permite que Espanha não cumpra os caudais acordados. “Mesmo que em menor quantidade que em períodos ditos normais, é importante que seja garantida a passagem d’água na fronteira”, refere.

“É fundamental assumir a precaução, a partilha e a sustentabilidade como princípios para a gestão dos recursos hídricos ibéricos”, esta é a opinião de Afonso do Ó, que relembra que “vamos sempre ter essa dependência com Espanha, pelo que importa manter essa relação e dinamizá-la, por exemplo, valorizando e dando mais competência aos órgãos de gestão da Convenção de Albufeira, ou implementando um Secretariado Técnico Permanente e independente”.

A solução está na dessalinização?

A solução para a escassez da água doce poderá estar na dessalinização. Pelo menos essa tem sido a aposta de vários países do Médio Oriente. No entanto, Carla Graça alerta que o “principal problema da dessalinização prende-se com a energia necessária para a realizar, pese embora a evolução da tecnologia tenda a ver estes custos mais reduzidos”. Por isso devem “para já ser ponderadas outras soluções, de forma integrada, e que passam por técnicas de poupança de água, no edificado, na indústria e, acima de tudo na agricultura”.

No caso dos edifícios a estratégia deverá, segundo a ambientalista, passar pela sua reabilitação, com a instalação de canalização dupla para aproveitamento de águas cinzentas e pluviais, certificação hídrica de equipamentos e mesmo do edificado (à semelhança do que se faz com a etiqueta energética), aproveitamento de águas residuais tratadas para usos menos nobres (lavagens de pavimentos e frotas, regas, campos de golfe, etc.) e para recarga de aquíferos.

Afonso do Ó, por seu lado, considera que a dessalinização poderá ser a solução, mas apenas se for energeticamente autossuficiente, podendo, por exemplo, acoplar esta ação. Não só porque têm de ser acautelados os fortes impactos ambientais negativos (quer da construção, quer do depósito da salmoura que resulta do processo), mas também os elevados gastos energéticos. Razões mais do que suficientes para, todos nós, fazermos uma gestão responsável do consumo da água no nosso quotidiano.

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