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26 de Dezembro de 2013 às 11:00

O reino desorientado

Durante três anos de agitação política no Médio Oriente desde que a Primavera Árabe começou, a Arábia Saudita tentou manter o seu estatuto dominante na região, utilizando todos os meios necessários. Em 2013, a família real saudita procurou aliados regionais e tentou – tal como no Egipto – que os antigos aliados voltassem ao poder. O reino usou também a sua vasta riqueza, proveniente do petróleo, para tentar manter a estabilidade regional com a qual está há décadas habituado.

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Para alívio da família real saudita, a Primavera Árabe não conduziu à criação de democracias funcionais na Tunísia, Egipto, Iémen, Bahrain, Líbia ou Síria. Além disso, os regimes islâmicos que surgiram provaram ser, ou incompetentes e facilmente derrubados (como foi o caso do governo do presidente Mohamed Morsi no Egipto), ou meramente disfuncionais (como na Tunísia), não constituindo um modelo para outros países.

Ainda assim, as revoluções da Primavera Árabe enfraqueceram os pilares do antigo sistema regional com o qual o reino saudita estava confortável. A revolução retirou do poder antigos aliados, como é o caso de Hosni Mubarak, antigo presidente egípcio, e de Zine El Abidine Ben Ali, antigo presidente da Tunísia (que vive actualmente em Riade) e transformou regimes toleráveis, como o de Bashar al-Assad, na Síria, em adversários assassinos.

A resposta inicial da Arábia Saudita à fractura do sistema, que tinha sido garantido através dos petrodólares, foi aumentar o apoio aos aliados que ainda subsistiam – Jordânia, Líbano e Bahrain. O passo seguinte foi apoiar a retirada do poder, levada a cabo pelas forças armadas, do governo da Irmandade Muçulmana de Mohamed Morsi, desafiando assim os Estados Unidos.

Como se tornou claro em 2013, a Síria é agora o principal foco das atenções da Arábia Saudita na região, por razões existenciais. Os sauditas consideram que a luta entre Assad e os seus opositores é uma guerra por procuração contra o seu principal adversário, o Irão. A Arábia Saudita tem sido a principal fonte de financiamento e de armamento das forças rebeldes sírias sunitas que lutam contra o exército de Assad, fortemente apoiado pelo Irão, maioritariamente xiita, e pelo Hezbollah, uma milícia xiita sedeada no Líbano.

Claro que na sua luta contra o regime iraniano, que é apoiado pela Rússia, a realeza saudita gostaria de continuar a ter a protecção do seu principal aliado, os Estados Unidos. Mas, os sauditas já não se sentem nem obrigados a esperar pela aprovação norte-americana para as suas acções nem mesmo a absterem-se de actuar contra as preferências dos Estados Unidos. A Arábia Saudita tem medo de ser abandonada pelos norte-americanos e está actuar de acordo com esse receio.

Desde a Segunda Guerra Mundial que o reino é alimentado pelos Estados Unidos – e tem confiado no seu apoio militar e político desde a primeira concessão de exploração de petróleo, que ocorreu em 1938. Depois do presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, ter recusado impor uma "linha vermelha" no que diz respeito à utilização de armas químicas pelo regime de Assad, os governantes sauditas concluíram que estavam perante uma América diferente daquela que há 22 anos enviou meio milhão de tropas para expulsar o exército de Saddam Hussein do Kuwait.

A grande questão para a família real saudita é: vão os Estados Unidos ser meramente indiferentes aos seus receios mais profundos ou as políticas norte-americanas na região vão agravar esses receios? O Irão vai ser o teste decisivo para as relações Estados Unidos-Arábia Saudita em 2014 e nos anos seguintes.

O Irão, rival dos Estados Unidos na região desde a Revolução Islâmica em 1979, pode estar na fase inicial da normalização das relações com a América. De facto, isto pode não ser tão difícil como três décadas de animosidade pode sugerir.

Tal como Henry Kissinger salientou muitas vezes, os Estados Unidos e o Irão têm interesses estratégicos que estão fundamentalmente em harmonia. O que é anormal é o afastamento que se verificou após 1979. De facto, antes da Revolução Islâmica, o Irão era a base da política norte-americana no Médio Oriente e no sul da Ásia. Os governantes sauditas, tal como toda a realeza, pensam no passado, e lembram-se bem deste relacionamento e temem, por isso, a sua repetição.

A família real saudita sabe porque é que os Estados Unidos querem chegar a um acordo com o Irão. Não há uma resposta militar fácil para o programa nuclear iraniano e nenhuma campanha de bombardeamento pode eliminar os conhecimentos nucleares do país. Mas, embora as sanções por si só não tenham travado as ambições nucleares iranianas, o reforço progressivo destas provocou danos severos ao regime. Agora, em vez de aplicar um reforço das sanções – o que possivelmente faria com que o regime cedesse – Obama está a aliviar a pressão.

A questão para os sauditas não é apenas a possível capacidade nuclear do Irão. Um acordo sobre o programa nuclear iraniano poderia legitimar a influência regional do regime de uma forma que não aconteceu em décadas servindo, por isso, os seus objectivos de hegemonia. A ameaça ou o medo mais profundo é que o objectivo final do Irão seja a liderança de Meca, o berço do islamismo.

É por isso que a família real saudita prefere manter o Irão acorrentado às sanções internacionais. A verdade é que, mesmo sob sanções económicas, o Irão intrometeu-se profundamente na política árabe, mas foram os Estados Unidos que abriram a porta ao derrube do regime de minoria sunita de Saddam no Iraque, o que, em última análise, levou ao poder, no Irão, um governo apoiado por xiitas.

O regime saudita está particularmente atento aos esforços de décadas do Irão para convencer os pequenos reinos do Golfo a criarem acordos económicos e de segurança que excluam os Estados Unidos. Esta é uma das razões que fez com que o reino tenha movido as suas tropas em direcção ao Bahrain quando os protestos da Primavera Árabe surgiram no país. E o motivo pelo qual os EUA, tendo aprendido a sua lição no Iraque, deram o seu consentimento tácito.

Para fazer com que a situação seja mais desconcertante está o facto do trunfo da Arábia Saudita – o petróleo - estar em declínio. Novos fornecedores da matéria-prima – em particular o petróleo de xisto nos Estados Unidos e na Austrália – diminuíram a necessidade norte-americana pela Arábia Saudita. O regresso do Irão como um dos principais exportadores de petróleo, caso um acordo nuclear seja alcançado em 2014 diminuiria o papel dos sauditas no que diz respeito aos preços do petróleo dado que a matéria-prima "xiita" do Irão e do Iraque iria inundar o mercado. Nesse caso, mesmo que o rei saudita adopte o título de "Guardião de duas mesquitas sagradas" a sua liderança do mundo islâmico não estará garantida.

 

Mai Yamani. Escritora saudita, autora do livro "Berço do Islamismo"

Direitos de Autor: Project Syndicate, 2013.
www.project-syndicate.org
Tradução: Ana Laranjeiro

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