Opinião
Patentear a imaculada concepção?
Um debate inclusivo, transparente e efectivo sobre as potenciais consequências exige, antes de mais, que os cidadãos estejam bem informados. Afinal, quando diz respeito a avanços tecnológicos relacionados com processos e materiais biológicos, isto é apenas o começo.
Em 1899, o cientista norte-americano de origem alemã Jacques Loeb projectou a reprodução assexuada de ouriços-do-mar por partenogénese artificial (a manipulação óvulos que permite o desenvolvimento embrionário sem fertilização). A sua especulação sobre a completa partenogénese em mamíferos – sem mencionar o uso do termo "imaculada concepção" para descrever o processo – motivou polémica sobre se os cientistas deveriam andar a "brincar a Deus".
Com a Corporação Internacional de Células Estaminais (CICE) à procura de patentear na Europa uma tecnologia que produz células estaminais a partir da activação partenogenética de um óvulo não fertilizado, é tempo de responder a essa questão. A questão é agora.
Problemas com a patenteação de células activadas por partenogénese não são nada de novo. Este tipo de células assemelham-se a embriões humanos, os quais, sob a lei de patentes da União Europeia, não podem ser patenteados. Na sequência de uma resolução do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) em 2011 de que essas células constituem embriões humanos, o registo de patentes para células partenogenéticas no Reino Unido e noutros países foram adiadas e mesmo rejeitadas. O CICE detém patentes para as suas células estaminais nos EUA.
Mas, a 18 de Dezembro de 2014, o TJUE reverteu a resolução, determinado que os óvulos humanos não fertilizados estimulados por partenogénese "não constituem um embrião humano, se não tiverem uma capacidade inerente de se desenvolver num ser humano". O TJUE baseou a revisão em observações (não publicadas) submetidas por Estados-Membros da União Europeia. O Tribunal Supremo do Reino Unido remeteu a questão para o Gabinete de Propriedade Intelectual do Reino Unido, que emitiu a patente em Outubro.
O TJUE não determinou explicitamente que a partenogénese de óvulos humanos é patenteável. Não examinou se a partenogénese constitui "um processo para clonar um ser humano", o que não seria possível patentear no âmbito da legislação da União Europeia. E não considerou se o óvulo activado – um "parthenote" – conta como como célula germinativa, que também não podem ser patenteadas na União Europeia (ainda que tenha levantado a questão aos que se submeteram à audição).
O tribunal nacional e o instituto de patentes também não - pelo menos daquilo que podemos aferir da sua página de internet- examinaram estas excepções de patenteamento. Nem consideraram que as "parthenoteS" se desenvolvem até ao estágio embrionário blastocisto [embriões a partir do 5º dia], salvaguardando a capacidade de fixação total.
Mas, ainda que a submissão de patentes do CICE não sejam excluídas nestes termos, há ainda outro potencial entrave para aqueles que desejam submeter registos de patentes: no âmbito da lei europeia, uma invenção pode ser patenteada somente se a sua exploração comercial não contrariar a "ordre public" [ordem pública] ou a moralidade.
Como Loeb assinalou há mais de 100 anos atrás, quando se trata do desenvolvimento de material humano e de processos biológicos, as questões morais são difíceis de responder. Elas não devem, como agora parece claro, ser deixadas para institutos de patentes, ou mesmo tribunais.
De facto, o Instituto Europeu de Patentes não está particularmente comprometido em aferir as implicações morais da atribuição de patentes. Na sua perspectiva, a "ordre public" seria violada apenas no caso extremo de uma invenção chocante. Como resultado, enquanto os procedimentos permitirem a terceiros submeter ao instituto de patentes as suas observações sobre o objecto a patentear, é pouco provável que se espolete uma avaliação genuína das implicações morais de um registo de patente.
Uma terceira parte que se oponha ao registo tem de suportar o fardo da prova, enquanto o instituto de patentes evitaria agir efectivamente, de forma a evitar a "presunçosa" interferência no debate publico. Quanto aos tribunais, o caso recente salientou a ausência de mecanismos processuais para aferir a moralidade de uma patente.
Então, quem deveria responder sobre as implicações de uma patente para a "ordre public"? A resposta é clara: o próprio público.
Um debate inclusivo, transparente e efectivo sobre as potenciais consequências exige, antes de mais, que os cidadãos estejam bem informados. Afinal, quando diz respeito a avanços tecnológicos relacionados com processos e materiais biológicos, isto é apenas o começo.
A 24 de Dezembro de 2014, apenas seis dias depois da resolução do TJUE, cientistas publicaram os resultados dos seus esforços para fazer óvulos e espermatozóides rudimentares a partir das células da pele de um indivíduo.
Estão também pendentes registos de patentes para uma nova forma de manipulação genética - CRISPR/Cas9-manipulação mediada do gene – que uma equipa de investigadores chineses que já tentou usar para manipular o genoma de um embrião humano. De facto, no âmbito da definição de "capacidade inerente" do TJUE, os embriões usados nessa experiencia não constituem embriões humanos, e então não seriam excluídos da atribuição de patente.
Como foi dito pela Cimeira Internacional sobre a Edição do Genoma Humano recentemente, seria irresponsável avançar com a manipulação das células germinativas sem um consenso social alargado. O mesmo se aplica ao patenteamento. Se, com base na compreensão do processo e das suas implicações, a maioria dos cidadãos de um país o considerar moralmente controverso, os princípios democráticos exigiriam uma resposta governamental.
Em linha com a directiva da União Europeia de 1998 sobre biotecnologia, os debates devem ocorrer numa base nacional. Já há estados europeus que tomaram decisões conflituosas sobre estes tópicos.
Na Suíça, uma maioria substancial de eleitores decidiu em 2004 ratificar o "Stem Cell Research Act" que regula a forma como as células humanas estaminais embrionárias são produzidas e utilizadas na investigação. A regulação suíça sobre células estaminais é hoje mais restritiva do que, por exemplo, a do Reino Unido, mas menos do que a alemã.
Especificamente, a lei suíça proíbe o desenvolvimento de "parthenotes", a derivação de células estaminais a partir de "parthenotes", e o uso dessas células estaminais. Também exclui do patenteamento processos de partenogénese que usam células germinais humanas, assim como "parthenotes" criadas por estes processos. Estas proibições são baseadas não apenas na necessidade de proteger os embriões humanos, mas também nos receios em torno da disponibilidade de óvulos doados, dos quais a partenogénese depende – um tema que nem os tribunais nem o instituto de patentes consideraram.
Uma abordagem país por país, direccionada ao público para aferir a moralidade das invenções que envolvem materiais e processos biológicos reforçaria a legislação da União Europeia e os seus princípios democráticos. Como as determinações recentes deixaram claro, o actual sistema está longe de ser adequado quando se trata de sustentar a "ordre public".
Jasper A. Bovenberg é advogado, fundador e director do Instituto "Legal Pathways for Health and Bio-Law", e autor do Livro "Direitos de propriedade no sangue, genes & dados: Naturalmente seus?". Judit Sandor é professora na faculdade de Ciência Política, Estudos legais e Estudos de Género na Universidade Central Europeia. Alexandra Henrion Caude é uma geneticista no hospital Necker-Enfants, em Paris.
Direitos de Autor: Project Syndicate, 2016.
Traduzido por: Inês F. Alves