Opinião
Para além das metas de carbono
Em vez de se mudar o nosso sistema económico para fazer com que se adeqúe aos limites naturais do planeta, estamos a redefinir a natureza para que ela se adeqúe ao nosso sistema económico – e, no processo, impedimos outras formas de conhecimento e alternativas reais
Nos últimos 10 anos, as "alterações climáticas" tornaram-se sinónimo de "emissões de carbono". A redução de gases com efeito de estufa na atmosfera, medido em toneladas de "dióxido de carbono equivalentes" (CO2e) emergiu como o supremo objectivo na saga para preservar o planeta. Mas uma abordagem tão simplista não pode resolver a crise ecológica interconectada e altamente complexa que enfrentamos actualmente.
As políticas de ambientais globais focadas exclusivamente em "métricas de carbono" reflectem uma obsessão mais abrangente com medições e contagens. O mundo rege-se por abstracções – calorias, quilómetros, libras e, agora, toneladas de CO2e – que são aparentemente objectivas e confiáveis, especialmente quando empacotas em linguagem "especializada" (normalmente de teor económico). Como resultado, temos tendência a negligenciar os efeitos da história de cada abstracção, e as dinâmicas de poder e política que continuam a moldá-las.
Um exemplo fundamental de uma poderosa e, até certo ponto, ilusória abstracção global é o Produto Interno Bruto (PIB), que foi adoptado como a principal métrica de desenvolvimento económico e de desempenho de um país depois da II Guerra Mundial, quando as potenciais mundiais estavam a construir instituições financeiras internacionais que deveriam reflectir o poder económico relativo. Hoje, no entanto, o PIB tornou-se uma fonte de frustração transversal, na medida em que é incapaz de reflectir a realidade em que as pessoas vivem. Como um carro com faróis no máximo: as abstracções podem iluminar imenso, mas também tendem a deixar invisível o que fica foram do seu alcance.
Ainda assim, o PIB mantém-se como a métrica dominante de prosperidade económica, reflectindo a obsessão com a universalidade que acompanhou a expansão do capitalismo em todo o mundo. Imaginações complexas, qualitativas e cheias de nuances, que reflectem as especificidades locais, simplesmente não são tão atractivas como as explicações lineares e abrangentes.
No que toca às alterações climáticas, esta preferência traduz-se no apoio exclusivo a soluções que reduzem marginalmente as emissões de carbono líquidas – soluções que podem impedir transformações económicas mais abrangentes, e minar a capacidade das comunidades de definir problemas específicos e desenvolver soluções adequadas. Esta abordagem remete à Cimeira da Terra, no Rio de Janeiro, em 1992, em que a política climática embarcou numa caminho rochoso e violento de alternativas esquecidas. No curso dos últimos 25 anos, fizeram pelo menos três erros críticos.
Primeiro, os governos introduziram a unidade de cálculo CO2e para quantificar de maneira consistente os efeitos das emissões de gases com efeito de estufa muito diferentes, como o CO2, o metano, e o óxido nitroso. As diferenças entre estes gases – em termos do seu potencial de aquecimento da atmosfera, sobre quanto tempo se mantém na atmosfera, de onde surgem, e sobre como interagem com o ecossistema local e as economias – é profundo. Uma única unidade de medida simplifica o assunto consideravelmente, permitindo aos legisladores perseguir uma solução "estilo cobertor" para um objectivo global específico.
Segundo, a convenção das Nações Unidas para as alterações climáticas, enfatizou o uso de técnicas "end of pipe" (métodos que visam remover contaminantes da atmosfera). Isto permite aos legisladores desviar a sua atenção de objectivos políticos mais desafiantes que passam por, em primeiro lugar, impor limites às actividades que produzem essas emissões.
Terceiro, os legisladores decidiram focar-se em emissões "líquidas", considerando processos biológicos que envolvem a terra, as plantas, os animais, juntamente com aqueles que estão associados à queima de combustíveis fósseis. Tal qual as instalações industriais, os arrozais e as vacas são tratadas como fontes de emissões; e as florestas tropicais, as plantações de árvores e os pântanos como sumidouros de emissões. Os legisladores optaram por perseguir soluções que pretendem contrariar as emissões, em vez de as reduzirem na origem (ou na fonte).
Em 1997, quando o Protocolo de Quioto foi introduzido, uma "maior flexibilidade" estava na ordem do dia, e comercializar certificados de emissões (ou permissões para poluir) era a política favorita. Aproximadamente duas décadas depois, os esforços para compensar as emissões não só se enraizaram na política do clima, como fizeram o seu caminho para o debate mais abrangente sobre a política ambiental.
Novos mercados para os chamados "serviços de ecossistemas" estão a emergir em todo o mundo. Por exemplo, o "Banco de Mitigação das Zonas Húmida" nos EUA é um dos mais antigos desses mercados. Isso acarreta a preservação, melhoria, ou a criação de, digamos, uma zona húmida, ou um fluxo, que compense os impactos adversos de um projecto planeado num ecossistema similar em qualquer outro local. Isto é feito através da emissão de certificados que podem ser negociados. Esquemas de "compensação de biodiversidade" funcionam praticamente da mesma forma: Uma empresa ou individuo pode comprar "créditos de biodiversidade" para contrariar a sua "pegada ecológica".
Se estes esquemas soam demasiado convenientes, é porque o são. De facto, eles são baseados no mesmo conceito falso que sustenta a troca de emissões, e, em alguns casos, traduzem efectivamente biodiversidade e ecossistemas em CO2e. Em vez de se mudar o nosso sistema económico para fazer com que se adeqúe aos limites naturais do planeta, estamos a redefinir a natureza para que ela se adeqúe ao nosso sistema económico – e, no processo, impedimos outras formas de conhecimento e alternativas reais.
Agora, no rescaldo da Cimeira de Paris de Dezembro passado, o mundo está à beira de fazer cometer mais um erro, ao abraçar a ideia de "emissões negativas", que assume que as novas tecnologias serão capazes de remover CO2 da atmosfera. No entanto, essas tecnologias estão ainda por inventar, e, mesmo que o sejam, a sua implementação será altamente arriscada.
Em vez de se procurarem soluções comprovadas – deixar oscombustíveis fósseis nos solos, abandonar a agricultura industrial em favor da agricultora ecológica, criar economias sem desperdícios, e restaurar ecossistemas naturais – estamos a contar com alguma inovação miraculosa que nos salve, estilo "deuz ex machina", mesmo no tempo certo. A falta de bom senso desta abordagem deveria ser óbvia.
Se as métricas de carbono continuarem a moldar a política climática, as novas gerações só vão conhecer um mundo constrangido pelo carbono – e, caso tenham sorte, um mundo de baixo carbono. Em vez de se perseguir uma visão tão simplista, é preciso procurar estratégias mais ricas, que visem transformar o nosso sistema económico e trabalhar dentro – e com – o nosso ambiente natural. Para isso, precisamos de novas maneiras de pensar que incentivem uma participação activa na recuperação e conservação de espaços onde as abordagens alternativas podem crescer e florir. Não será fácil, mas valerá a pena.
Camila Moreno é investigadora na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e autora do livro "Métricas de Carbono e a Novas Equações Coloniais". Daniel Speich Chassé é professor de História na Universidade de Lucerne, onde trabalha na evolução de sistemas de conhecimento. Lili Fuhr lidera o departamento de ecologia e desenvolvimento sustentável da Heinrich-Böll-Stiftung, em Berlim.
Copyright: Project Syndicate, 2016.
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Tradução: Inês F. Alves