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29 de Maio de 2024 às 11:40

Os governos devem moldar o futuro da IA

Regular modelos de IA generativa para o bem comum vai implicar parcerias mutuamente benéficas, orientadas para objetivos comuns e para a criação de valor público, ao invés de apenas privado.

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No passado mês de dezembro, a União Europeia estabeleceu um precedente global ao finalizar a lei para a Inteligência Artificial (IA), um dos mais abrangentes conjuntos de regras sobre IA do mundo. A legislação histórica da Europa pode indicar uma tendência mais ampla para políticas de IA mais reativas. Mas, embora a regulamentação seja necessária, ela é insuficiente. Além de impor restrições às empresas privadas de IA, os governos devem assumir um papel ativo no desenvolvimento da IA, concebendo sistemas e moldando mercados para o bem comum.

 

É verdade que os modelos de IA estão a evoluir rapidamente. Quando os reguladores da UE publicaram a versão preliminar da lei para a IA, em abril de 2021, saudaram-na por ser "à prova de futuro", mas acabaram às voltas, com dificuldade em atualizar o texto para responder ao lançamento do ChatGPT um ano e meio depois. Mas os esforços de regulamentação não são em vão. Por exemplo, a proibição, na lei, do uso de IA no policiamento biométrico vai provavelmente manter-se relevante, independentemente dos avanços da tecnologia. Além disso, os riscos de enquadramento contidos na lei para a IA vão ajudar os legisladores a protegerem-se contra alguns dos mais perigosos usos da tecnologia. Apesar de a IA se desenvolver mais rapidamente que as políticas, os princípios fundamentais da lei não vão ter de mudar - ainda que instrumentos de regulamentação mais flexíveis sejam necessários para ajustar e atualizar as regras.

 

Mas ao pensarmos no Estado apenas como regulador estamos a passar ao lado da questão maior. A inovação não é apenas um fenómeno de mercado fortuito. Tem uma direção que depende das condições em que emerge, e os legisladores públicos podem influenciar estas condições. O surgimento de uma conceção tecnológica ou de um modelo de negócio dominante é o resultado de uma luta pelo poder entre vários intervenientes - empresas, organismos governamentais, instituições académicas - com interesses contraditórios e prioridades divergentes. Refletindo esta luta, a tecnologia resultante pode ser mais ou menos centralizada, mais ou menos proprietária, e assim por diante.

 

Os mercados que se formam em torno de novas tecnologias seguem o mesmo padrão, com importantes implicações distributivas. Como disse o pioneiro do software Mitch Kapor, "A arquitetura é política". Mais que regulação, a conceção de uma tecnologia e a infraestrutura circundante ditam quem pode fazer o quê com ela e quem beneficia. Para os governos, garantir que as inovações transformacionais produzem um crescimento inclusivo e sustentável é menos uma questão de fixar mercados e mais uma questão de os moldar e co-criar. Quando os governos contribuem para a inovação através de investimentos ousados, estratégicos e orientados para a missão, podem criar novos mercados e atrair o setor privado.

 

No caso da IA, a tarefa de direcionar a inovação é atualmente dominada por grandes empresas privadas, levando a uma infraestrutura que serve os interesses dos "insiders" e agrava as desigualdades económicas. Isto reflete um problema antigo. Algumas das empresas tecnológicas que beneficiaram mais do apoio público - como a Apple e a Google - também estão entre as que foram acusadas de usarem as suas operações internacionais para evitarem pagar impostos. Estas relações desequilibradas e parasitárias entre grandes empresas e o Estado arriscam agora a consolidarem-se ainda mais por causa da IA, que promete compensar o capital ao mesmo tempo que reduz os rendimentos do trabalho.

 

As empresas que estão a desenvolver IA generativa já estão no centro dos debates sobre comportamentos extrativos devido à sua utilização sem restrições de texto, áudio e imagens protegidos por direitos de autor para treinar os seus modelos. Ao centralizarem o valor nos seus próprios serviços, reduzirão os fluxos de valor para os artistas de quem dependem. Tal como acontece com as redes sociais, os incentivos estão alinhados para a extração de rendimentos, em que os intermediários dominantes acumulam lucros à custa dos outros. As plataformas dominantes de hoje, como a Amazon e a Google, exploraram a sua posição de vigilantes, utilizando os seus algoritmos para extrair taxas cada vez maiores ("rendimentos de atenção algorítmica") pelo acesso aos utilizadores. Quando a Google e a Amazon se tornaram num grande esquema de "payola" [termo usado na indústria musical para referir o pagamento, ilegal, a uma rádio comercial para passar uma determinada canção, sem tornar público que esse pagamento foi feito], a qualidade da informação deteriorou-se e o valor foi extraído do ecossistema de sites, produtores e criadores de aplicações em que as plataformas se apoiavam. Os sistemas de IA atuais podem seguir um caminho semelhante: extração de valor, monetização insidiosa e deterioração da qualidade da informação.

 

Regular modelos de IA generativa para o bem comum vai implicar parcerias mutuamente benéficas, orientadas para objetivos comuns e para a criação de valor público, ao invés de apenas privado. Isto não será possível com estados redistributivos e reguladores que atuam apenas após o facto; precisamos de estados empreendedores capazes de estabelecer estruturas pré-distributivas que partilhem riscos e recompensas "ex-ante". Os decisores políticos devem concentrar-se em compreender como as plataformas, os algoritmos e a IA generativa criam e extraem valor, para que possam criar as condições - tais como regras de conceção equitativas - para uma economia digital que recompense a criação de valor.

 

Atenção à história

 

A Internet é um bom exemplo de uma tecnologia que foi concebida em torno de princípios de abertura e neutralidade. Considere-se o princípio "end-to-end", que garante que a Internet funciona como uma rede neutra responsável pela entrega de dados. Embora o conteúdo que está a ser entregue de computador para computador possa ser privado, o código é gerido publicamente. E embora a infraestrutura física necessária para aceder à Internet seja privada, a conceção original garantiu que, uma vez online, os recursos para a inovação na rede estão disponíveis gratuitamente.

 

Esta escolha de conceção, coordenada através do trabalho inicial da Defense Advanced Research Projects Agency (entre outras organizações), tornou-se um princípio orientador para o desenvolvimento da Internet, permitindo flexibilidade e inovação extraordinária nos sectores público e privado. Ao conceber e moldar novos domínios, o Estado pode estabelecer mercados e orientar o crescimento, em vez de apenas o incentivar ou estabilizar.

 

É difícil imaginar que as empresas privadas que desenvolveram a Internet na ausência de envolvimento governamental tivessem aderido a princípios igualmente inclusivos. Veja-se a história da tecnologia telefónica. O papel do Governo foi predominantemente regulador, deixando a inovação em grande parte nas mãos de monopólios privados. A centralização não só dificultou o ritmo da inovação, como também limitou os benefícios sociais mais alargados que poderiam ter surgido.

 

Por exemplo, em 1955, a AT&T persuadiu a Comissão Federal de Comunicações a proibir um dispositivo concebido para reduzir o ruído nos recetores telefónicos, reivindicando direitos exclusivos para o melhoramento das redes. O mesmo tipo de controlo monopolista poderia ter relegado a Internet a um mero instrumento de nicho para um grupo selecionado de investigadores, em vez da tecnologia universalmente acessível e transformadora em que se tornou.

Do mesmo modo, a transformação do GPS de um instrumento militar numa tecnologia universalmente benéfica realça a necessidade de orientar a inovação para o bem comum. Inicialmente concebido pelo Departamento de Defesa dos EUA para coordenar ativos militares, o acesso do público aos sinais GPS foi deliberadamente degradado por razões de segurança nacional. Mas como a utilização civil ultrapassou a militar, o governo dos EUA, sob a presidência de Bill Clinton, tornou o GPS mais acessível aos utilizadores civis e comerciais de todo o mundo.

Esta medida não só democratizou o acesso à tecnologia de geolocalização precisa, como também estimulou uma onda de inovação em muitos setores, incluindo a navegação, a logística e os serviços baseados na localização. Uma mudança de política no sentido de maximizar o benefício público teve um impacto transformador e de grande alcance na inovação tecnológica. Mas este exemplo também mostra que governar para o bem comum é uma escolha consciente que requer um investimento contínuo, uma elevada coordenação e uma capacidade de concretização.

Para aplicar esta escolha à inovação da IA, precisaremos de estruturas de governação inclusivas e orientadas para a missão, com os meios para co-investir com parceiros que reconheçam o potencial da inovação liderada pelo governo. Para coordenar as respostas intersetoriais a objetivos ambiciosos, os decisores políticos devem associar condições ao financiamento público, de modo a que os riscos e as recompensas sejam partilhados de forma mais equitativa. Isto significa objetivos claros pelos quais as empresas são responsáveis; elevados padrões laborais, sociais e ambientais; e partilha de lucros com o público. As condições podem, e devem, exigir que as grandes empresas de tecnologia sejam mais abertas e transparentes. Temos de insistir em nada menos do que isso se levarmos a sério a ideia do capitalismo de partes interessadas.

Em última análise, enfrentar os perigos da IA exige que os governos alarguem o seu papel além da regulamentação. Sim, diferentes governos têm diferentes capacidades e alguns estão altamente dependentes da economia política global mais alargada da IA. A melhor estratégia para os Estados Unidos pode não ser a melhor para o Reino Unido, a UE ou qualquer outro país. Mas todos devem evitar a falácia de presumir que governar a IA para o bem comum entra em conflito com a criação de uma indústria de IA robusta e competitiva. Pelo contrário, a inovação floresce quando o acesso às oportunidades é aberto e as recompensas são amplamente partilhadas.

 

Mariana Mazzucato, diretora fundadora do UCL Institute for Innovation and Public Purpose, é presidente do Conselho de Economia da Saúde para Todos da Organização Mundial da Saúde. Fausto Gernone, estudante de doutoramento na University College London, encontra-se em visita de investigação na Haas School of Business na University of California, Berkeley.

 

Direitos de autor: Project Syndicate, 2024.
www.project-syndicate.org

Tradução: Inês Santinhos Gonçalves

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