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Os Estados Desunidos no controlo de armas da América

Na América de Trump, a violência armada e a instabilidade estão a ser alimentadas diariamente. Uma solução rápida e à escala nacional seria o ideal. Mas até que isso aconteça, mais estados devem ser encorajados a escolher a proibição das armas por si próprios.

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O massacre de Las Vegas e as suas consequências são América pura. Uma pessoa perturbada carrega quase duas dúzias de armas de alta tecnologia para um quarto de hotel, num 32º andar, para semear a morte entre um grupo de pessoas que assistia a um concerto, num homicídio em massa, seguido de suicídio. Em resposta, volta a estalar uma guerra cultural entre os defensores do controlo de armas e os entusiastas das armas. No entanto, há consenso num ponto: nada mudará muito. Depois de uma semana de funerais transmitidos na televisão, a vida na América continua até ao próximo massacre.

 

A violência em massa está profundamente enraizada na cultura americana. Os colonos europeus cometeram um genocídio de dois séculos contra os habitantes nativos e estabeleceram uma economia escrava tão profundamente enraizada que só terminou com uma guerra civil devastadora. Em quase todos os outros países, até na Rússia czarista, a escravidão e a servidão terminaram por decreto ou legislação, sem uma sangria de quatro anos. Quando finalmente acabou, a América estabeleceu e aplicou um sistema de apartheid de um século.

 

Hoje, as taxas de homicídio e reclusão dos Estados Unidos são muito superiores às da Europa. Todos os anos ocorrem grandes tiroteios em massa - num país que também está a travar várias guerras aparentemente intermináveis no exterior. A América é, em suma, um país com uma história passada e uma realidade actual marcadas pelo racismo, chauvinismo étnico e recurso à violência em massa.

 

O tiroteio de Las Vegas torna clara, mais uma vez, a necessidade de proibir armas de assalto. Quando a América teve essa proibição, de Setembro de 1994 a Setembro de 2004, isso ajudou a limitar os tiroteios em massa. Mas o Congresso não a renovou, devido ao intenso lóbi dos entusiastas das armas. E a proibição não deverá ser reintegrada a nível federal no futuro previsível. A proibição do tipo de dispositivo usado pelo assassino de Las Vegas para permitir que as suas armas semi-automáticas disparassem como armas totalmente automáticas parece possível; mas, a nível federal, não deverá acontecer muito mais do que isso.

 

Quando a Austrália proibiu armas de assalto em 1996, os tiroteios em massa pararam abruptamente. Os amantes das armas da América rejeitam essas provas, e tiroteios em massa como o de Las Vegas servem apenas para reforçar a sua crença de que as armas de fogo são a sua única protecção num mundo perigoso. De acordo com dados recentes, a adesão às armas é especialmente intensa entre os republicanos brancos, com menos qualificações, que residem nas áreas rurais e suburbanas do Sul e Centro-Oeste - o mesmo grupo demográfico que constitui o núcleo de apoio do presidente Donald Trump.

 

Apesar das profundas divisões ideológicas no país, há um vislumbre de esperança. De acordo com a Constituição dos EUA, os estados têm autoridade para proibir as armas de assalto e regular as armas de fogo (ainda que não tenham autoridade para proibir pistolas e espingardas, dada a interpretação do Supremo Tribunal do "direito ao porte de armas" da Segunda Emenda). O meu próprio estado, Nova Iorque, já proíbe armas de assalto, assim como um conjunto de outros estados. Em vez de travar outra batalha em Washington, é mais promissor encorajar outros estados a exercerem as suas prerrogativas.

Os estados que o fizerem terão taxas mais baixas de tiroteios em massa, cidadãos mais seguros e economias mais vibrantes. Las Vegas sofrerá não só pelo trauma do recente massacre, mas também pelo desvio de turismo e conferências, pelo menos até o Nevada acabar com as armas de assalto e garantir a segurança dos visitantes.

 

A América, hoje, não tem apenas estados vermelhos (conservadores) e estados azuis (progressistas), mas países vermelhos e azuis de facto, ou seja, regiões distintas com culturas, heróis, políticas, dialetos, economias e ideias de liberdade distintas. Na cidade de Nova Iorque, liberdade significa não ter que temer que os milhares de estranhos que partilham as calçadas e os parques da cidade consigo tenham armas mortais. No Texas ou Las Vegas, liberdade é o conforto de transportar as suas próprias armas de fogo por todo o lado.

 

É hora de deixar os estados vermelhos e os estados azuis seguirem o seu próprio caminho. Não precisamos de travar outra guerra civil para acordar uma mudança amigável e limitada em direcção a vínculos mais ténues entre os estados. Nisto, os conservadores têm razão: reduzamos o poder do governo federal e direccionemos mais receitas e regulamentos para os estados, sujeitos aos limites constitucionais da divisão de poderes e direitos fundamentais. Dessa forma, cada lado da guerra cultural poderá aproximar-se do seu objectivo sem impedir o outro lado de fazer o mesmo.

 

O meu próprio estado prosperaria numa federação mais flexível, usando a sua margem de manobra aumentada para apertar os seus próprios regulamentos e ampliar os seus serviços sociais com as poupanças em impostos que agora são pagos ao governo federal. E o governo federal mais fraco significaria menos "guerras de escolha" dos EUA no Médio Oriente.

 

Em algum momento, os EUA acabarão por ter uma legislação federal de controlo de armas. Quando mais congressistas perceberem que as suas próprias vidas estão na mira – que, infelizmente, estão – veremos finalmente alguma acção a nível nacional. Dois membros do Congresso já foram baleados nesta década (Gabrielle Giffords em 2011 e Steve Scalise no início deste ano). Mas por agora, os membros do Congresso continuam paralisados no fogo cruzado entre os loucos armados e o lóbi das armas. É terrível, mas infelizmente é verdade.

 

Na América de Trump, a violência armada e a instabilidade estão a ser alimentadas diariamente. Uma solução rápida e à escala nacional seria o ideal. Mas até que isso aconteça, mais estados devem ser encorajados a escolher a proibição das armas por si próprios.

 

Jeffrey D. Sachs, professor de Desenvolvimento Sustentável e de Políticas e Gestão de Saúde  na Universidade de Columbia, é director do Centro para o Desenvolvimento Sustentável e da rede de soluções para o Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas.

 

Copyright: Project Syndicate, 2017.
www.project-syndicate.org
Tradução: Rita Faria

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