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14 de Setembro de 2016 às 20:00

Brexit e o rei Canuto

Se a Grã-Bretanha se tornar no único país europeu, além da Rússia, a auto-excluir-se do mercado único da UE, não vai ter sucesso ao nível económico, independentemente da forma como as pessoas votaram.

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A lenda do rei Canuto descreve a forma como um jovem rei anglo-saxónico mostrou aos seus súbditos os limites do poder real. Canuto estabeleceu o seu trono junto ao mar e ordenou à maré crescente que recuasse. Quando o mar subiu como o habitual e molhou Canuto, ele disse aos seus cortesãos: "Agora deixem todos os homens ficar a saber o quão vazio é o poder dos reis".

 

A primeira-ministra britânica Theresa May, cujo mote é "Brexit significa Brexit", parece acreditar que a mensagem de Canuto era acerca de democracia, não sobre astronomia: ele deveria ter levado a cabo um referendo. Apesar de May se ter oposto à saída do Reino Unido da União Europeia, ela tem agora um novo mantra: "Nós vamos fazer do Brexit um sucesso porque a pessoas assim votaram".

 

Isto é um absurdo. Se a Grã-Bretanha se tornar no único país europeu, além da Rússia, a auto-excluir-se do mercado único da UE, não vai ter sucesso ao nível económico, independentemente da forma como as pessoas votaram. A democracia não teria prevenido as marés do oceano, provocadas pela gravidade, de causarem o afogamento de Canuto se ele tivesse ficado no seu trono, e um referendo não fará regredir as correntes económicas determinadas pela globalização.  

 

As empresas percebem isto. É por isso que a Grã-Bretanha enfrenta agora aquilo a que os economistas chamam de "incerteza radical", uma situação em que os riscos não podem ser racionalmente quantificados, acabando por haver mudanças bastante ineficientes nas taxas de juros, impostos e valores cambiais. Tal como o Banco de Inglaterra salientou, muitas decisões sobre investimento e contratações serão agora retardadas até que os termos comerciais do Reino Unido estejam clarificados. Se o Brexit for em frente, isso demorará anos.

 

Assim que a economia britânica caia em recessão, e as promessas governamentais sobre um rápido e "bem-sucedido Brexit" se mostrarem irrealistas, a opinião pública vai mudar. A pequena maioria parlamentar de May irá ficar sobre pressão, nem que seja dos muitos inimigos que a própria fez ao expurgar dos seus lugares todos os aliados do ex-primeiro-ministro David Cameron. As principais decisões sobre o Brexit irão, portanto, ser tomadas não em Londres mas em Bruxelas e em Berlim.

 

Ao adoptarem essas decisões, os líderes europeus têm de responder a duas questões: deve a Grã-Bretanha manter os principais benefícios de pertencer à UE se rejeitar as regras e instituições europeias? E devem estas regras e instituições ser reformadas para tornar a UE mais atractiva aos eleitores, não apenas da Grã-Bretanha mas de toda a Europa.

 

As respostas a ambas as questões são óbvias: "Não" à primeira; "Sim" à segunda.

 

Os líderes europeus deveriam apresentar uma opção clara: ou o Reino Unido continua como membro da UE depois de negociar algumas reformas adicionais que satisfaçam a opinião pública; ou separa-se completamente e passa a lidar com a UE na mesma base de "qualquer país da Organização Mundial do Comércio (OMC), do Afeganistão ao Zimbabué", que é como o Instituto de Estudos Orçamentais britânico descreve a melhor alternativa à plena adesão.

 

Ao tornar as condições de saída não-negociáveis, enquanto assegura espaço de manobra no que diz respeito à continuação enquanto membro, a Europa podia voltar atenções para a segunda questão construtiva: podem os eleitores ser persuadidos a ter novamente um sentimento positivo relativamente à UE?

 

Abordar esta questão iria focar seriamente as atenções nos muitos benefícios tangíveis da pertença à UE, que estão para além das abstracções tecnocráticas relacionadas com o mercado único: melhorias ambientais, subsídios rurais, financiamento para a ciência, infra-estruturas e ensino superior, e a liberdade para viver e trabalhar em toda a Europa.

 

Ao excluir as adulteradas opções intermédias, tais como os modelos "norueguês" ou "suíço" – que May rejeitou porque implicam a livre circulação de pessoas –, a UE poderia deixar as implicações económicas do Brexit inequivocamente claras. Londres deixaria de ser a capital financeira da Europa porque os regulamentos seriam deliberadamente alterados de forma a mudar as actividades comerciais para jurisdições da UE. Pela mesma razão, muitas das indústrias exportadoras localizadas no Reino Unido iriam tornar-se inviáveis.  

 

Deparadas com esta perspectiva, as empresas de ambos os lados do Canal da Mancha seriam impelidas a fazer abertamente campanhas favoráveis à manutenção do Reino Unido como membro pleno da UE, em vez de fazerem lobby discreto para obterem acordos especiais para os seus próprios sectores. Os media poderiam mesmo apontar o absurdo constitucional que é uma democracia representativa tratar uma estreita maioria referendária como se a mesma vinculasse permanentemente as decisões parlamentares.

 

Os núcleos-duros nacionalistas podem nem prestar atenção, mas um número suficiente de eurocépticos iria provavelmente reconsiderar as suas posições para inverter o sentido da maioria de 52%-48% favorável ao Brexit.  

 

A reversão da opinião pública tornar-se-ia praticamente certa se os líderes europeus acatassem genuinamente a mensagem dos eleitores britânicos, não facilitando o Brexit mas reconhecendo o referendo como um toque de despertar para reformar a UE.

 

Suponha-se que os líderes europeus convidavam o governo britânico a negociar sobre as políticas que dominaram as discussões no referendo e que estão também a alimentar ressentimentos noutros países europeus: perda de controlo local na gestão da imigração; a transferência de poderes dos parlamentos nacionais para Bruxelas; e a erosão de modelos sociais que dependem de fortes vínculos de cidadania e de Estados-sociais generosos.

 

Imagine-se, por exemplo, que os líderes da UE subscreviam a recente proposta da Dinamarca sobre permitir que os governos nacionais possam diferenciar entre pagamentos da assistência-social a cidadãos e imigrantes recentes, ou que se estendia a toda a Europa o plano suíço sobre o "travão de emergência" contra ondas repentinas de imigração. Imaginem que aliviavam as contraprodutivas regras orçamentais e bancárias que sufocaram a Europa do Sul. Imaginem, finalmente, que a UE reconhecia que a centralização de poder foi demasiado longe e que acabou formalmente com a orientação de uma "união cada vez mais estreita".

 

Tais reformas são consideradas impensáveis em Bruxelas, porque obrigariam a alterações aos tratados e poderiam ser rejeitadas pelos eleitores. Mas os eleitores que se opuseram anteriormente aos tratados da UE devido à centralização de poderes iriam, quase de certeza, aceitar reformas que restaurassem autoridade aos parlamentos nacionais. O verdadeiro obstáculo às reformas não é a dificuldade em alterar os tratados; é a resistência da burocracia em ceder poder.  

 

A Comissão Europeia continua obcecada em defender o acquis communautaire, a colecção de poderes "adquiridos" pela União, e cuja doutrina da UE dita que não deve nunca ser devolvida aos Estados-nacionais. Jean-Claude Juncker, presidente da Comissão, e o seu chefe de gabinete, Martin Selmayr, chegaram mesmo a saudar o Brexit enquanto uma oportunidade para "reforçar o acquis" ao permitir centralizar ainda mais os poderes.

 

Juncker, assim como May, deveriam recordar o rei Canuto. A maré das democracias nacionais está a crescer na Europa e slogans sobre uma "união cada vez mais estreita" não a vão reverter. Os líderes europeus precisam aceitar a realidade – ou ver a Europa afogar-se.

 

Anatole Kaletsky é economista-chefe e co-chairman da Gavekal Dragonomics e autor do livro "Capitalism 4.0, The Birth of a New Economy"

 

Copyright: Project Syndicate, 2016.
www.project-syndicate.org

Tradução: David Santiago

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