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01 de Março de 2007 às 13:59

Um genocídio como outro qualquer

A batida do cabo-de-guerra Abel de Abreu Sotto-Maior à tribo cuvale começou nos finais de 1940 e, em Fevereiro do ano que sobreveio, estes pastores do sul de Angola estavam subjugados, seu gado disperso, e mais de três mil homens, mulheres e crianças cati

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Quem pouco fala não diz nem bem nem mal e o morto no caixão não tem voz activa.
"Ondula, Savana Branca" (1982), Ruy Duarte de Carvalho

A batida do cabo-de-guerra Abel de Abreu Sotto-Maior à tribo cuvale começou nos finais de 1940 e, em Fevereiro do ano que sobreveio, estes pastores do sul de Angola estavam subjugados, seu gado disperso, e mais de três mil homens, mulheres e crianças cativos da autoridade portuguesa na última investida de pacificação antes de outra revolta, desta vez fatal, deflagrar bem a norte em 1961.

Ainda assim, umas centenas de mortes descontadas à savana, melhor foi a sorte dos cuvales do que a dos seus patrícios hereros chacinados às ordens do governador Heinrich Goering na colónia alemã do Sudoeste Africano nos anos de devastação que se arrastaram de1904 a 1908.

A chacina desencadeada pelo pai de Hermann Goering, o futuro marechal do Reich hitleriano, consta dos anais dos extermínios por ordem estatal que actualmente se enquadram no cadastro de genocídios.

Só em Janeiro de 2004 o governo de Berlim lamentou oficialmente "um passado infeliz", mas a Alemanha continua a contestar o pagamento de indemnizações aos descendentes dos quase cem mil chacinados. O processo judicial aberto nos Estados Unidos em 2001 continua o seu curso.

A memória dum massacre é um espectro sempre presente. Paira sobre savanas e desertos e tão cedo também não deixará de assombrar as montanhas dos Balcãs por mais que o finjam ignorar as chancelarias.   
  
Genocídio na letra da lei

Do genocídio como conceito e letra de lei sabe-se que tudo deve à persistência do jurista judeu polaco Raphael Lemkin.

Inicialmente chocado com o massacre dos arménios na Turquia durante a I Guerra Mundial e dos assírios às mãos de árabes e curdos no norte do Iraque em 1993, Lemkin acabaria, desgraça do destino, por teorizar a chacina de judeus desencadeada pelos nazis como acto de genocídio.

Na lógica de Lemkin, a destruição dos fundamentos da vida de uma entidade nacional seria equivalente a um genocídio, mas o que passou para a "Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio", adoptada pelas Nações Unidas em 1948 e em vigor desde 1951, foi a tipificação de qualquer acto cometido com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso.

Os termos restritos da Convenção englobam os actos, considerando apenas estes grupos, de matar e causar lesão grave à integridade física ou mental de pessoas. Acresce o impor intencionalmente condições de existência capazes de ocasionar a destruição física total ou parcial do grupo estigmatizado.

A adopção de medidas destinadas a  impedir nascimentos no seio do grupo destinado à matança e a transferência forçada de crianças para outra entidade constam, ainda, na definição da ONU como prática de genocídio.

"Et tu quoque" 

Nesses lapidares ditos latinos do até tu também que assombram o Ocidente coube agora à atormentada Sérvia escapar ao pior, mas a Bósnia multiétnica do passado não reviverá apesar das quimeras de políticos e diplomatas.

A mais alta instância judicial das Nações Unidas, o Tribunal Internacional de Justiça, absolveu, na segunda-feira, o estado sérvio da prática de genocídio na guerra da Bósnia Herzegovina.

A crer nos dados mais elaborados em data, por parte do Cento de Pesquisa de Documentação de Sarajevo, a guerra de 1992-95 saldou-se em cerca de 100 mil mortes, sendo 66 por cento das vítimas muçulmanas, 25 por cento sérvias e quase 8 por cento croatas. 

O tribunal de Haia considerou, no entanto, que a Sérvia não cumpriu com a obrigação legal de evitar genocídio no caso particular do massacre de 8 mil muçulmanos em Srebrenica em Julho de 1995.

O estado sérvio, à altura presidido por Slobodan Milosevic, foi, assim, exonerado de cumplicidade no crime de Srebrenica. Nem neste caso foi possível provar a intenção genocidária.

Temos, portanto, um crime, mas não se vislumbra um estado culpado.

A culpa fica por conta das milícias sérvias da Bósnia lideradas por Radovan Karadzic e Ratko Mladic, a monte desde Julho de 1995 data em que o Tribunal Penal Internacional para a Antiga Jugoslávia ordenou a sua detenção.

Neste particular, a decisão da mais alta instância judicial da ONU considera a Sérvia culpada de não cooperação com o Tribunal Penal Internacional para a Antiga Jugoslávia por não ter extraditado Ratko Mladic acusado de genocídio.

A decisão, que é definitiva, determina, ainda, que a Sérvia, estado sucessor da antiga República Federal Jugoslava que incluiu até o ano passado o Montenegro, não tem de pagar indemnizações monetárias à Bósnia-Herzegovina que apresentou a queixa em 1993.

O Tribunal Internacional de Justiça julga desde 1946 exclusivamente disputas entre estados e as suas deliberações não têm carácter vinculativo.

A quimera depois do genocídio                                       

Obviamente, a chacina em massa é prática velha como o mundo e vai muito para além da mera letra da Convenção da ONU, mas esta decisão judicial levanta questões delicadas, aumentado desde já a pressão sobre Belgrado para a captura de Mladic que durante muito tempo se refugiou em território sérvio e cujo paradeiro é agora incerto.

A NATO que vai para 12 anos tenta capturar Karadzic na Bósnia também não sai muito bem vista e a oferta feita em 2006 a Belgrado para integrar a Parceria para a Paz, continua a fazer pouco sentido enquanto a Sérvia não cumprir as suas obrigações legais de plena cooperação com o Tribunal Penal Internacional.

Em rigor a situação criada pelas forças nacionalistas na Sérvia condena o país a uma situação comparável à do Sudão de Omar al Bashir que recusa terminantemente entregar à justiça internacional suspeitos de crimes de guerra e contra a humanidade no Darfur.

A União Europeia, assoberbada com a questão do Kosovo, não pode, por sua vez, ignorar mais este engulho diplomático nas negociações com Belgrado para um eventual acordo de estabilização e associação.

Os acordos assinados em 1995 em Dayton estão ainda longe de estar cumpridos na Bósnia onde cresce a contestação sérvia à partilha de soberania com croatas e muçulmanos. Milorad Dodik, o primeiro-ministro sérvio, exige a realização de um referendo que permita à República Sérvia desvincular-se do estado bósnio à semelhança das aspirações independentistas dos albaneses do Kosovo.

A imposição de uma presidência rotativa e de um governo central sobrepostos às estruturas separadas da Federação Croata e Muçulmana e da República Sérvia, apesar da criação de um sistema judicial e alfandegário comuns e de estruturas policias e de defesa unificadas, revela-se por demais artificial e dificilmente sobreviverá à dinâmica criada pela separação do Kosovo.

O modelo imposto pelos Estados Unidos e a União Europeia à Bósnia-Herzegovina é impraticável, contraditório com o apoio de Washington e de países como a Alemanha ou a Grã-Bretanha às reivindicações de independência do Kosovo, e, consequentemente, melhor seria assumir a partilha territorial.

O genocídio resumido ao massacre de 8 mil homens e rapazes em Sarajevo agasta muçulmanos e também croatas e, para maior humilhação, o veredicto de Haia foi conhecido precisamente no dia em que o ministro da Defesa da Holanda, Henk Kamp, condecorava em Assen, pelos seus feitos numa "missão extraordinariamente difícil", militares do batalhão que em Julho de 1995 assistiu impotente ao massacre.    

Deixar os mortos ter voz activa e não tentar impor a coexistência de gentes que, presentemente, têm ainda muita dor e ressentimento a separá-las é um imperativo moral e político.

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