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Opinião
23 de Maio de 2007 às 13:59

Sócrates e a lei da selvajaria

O primeiro-ministro de Portugal lê jornais e, portanto, ao contrário de Buck – o portentoso canídeo feito mito na selvajaria da corrida ao ouro no Alasca pela arte de Jack London – não será atirado de surpresa para um mundo agreste onde tenha de fazer pro

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José Sócrates, presume-se, terá bem presente que se acumulam graves problemas para a sua presidência europeia capazes de atemorizar o mais feroz dos animais na selva da política internacional.      

A agenda já estava sobrecarregada, mas o chefe do governo de Lisboa, um político que afirmou em tempos ter instintos de animal feroz sempre que lhe assista a razão – talvez num momento em que lhe veio à ideia a tirada da revolucionária russa Vera Zasulitch que comparava Lenin a um bulldog de dentada fatal –, confronta-se agora com uma catadupa de crises que bem podem subverter os planos mais diligentes.

A inconveniência Russa                                   

Apesar de indesejável e incontornável para uma presidência graciosa, a questão russa subiu na agenda depois do confronto em Samara. Os interesses dos estados do Báltico e da Polónia obrigaram a União Europeia a reconhecer, pela primeira vez, que a política de sucessivas cedências a Moscovo, sustentada por Schroeder, Berlusconi e Chirac, conduzia a um impasse.

A solidariedade europeia que Durão Barroso alardeou em Samara implica que a União defina uma política de cooperação com a Rússia tendo em conta que Moscovo não pode continuar a tentar impor os seus ditames à antiga coutada política da União Soviética.

Como principal parceiro comercial e maior investidor na Rússia a União Europeia vê-se agora na obrigação de ponderar os equilíbrios possíveis. De um lado, os interesses económicos da Alemanha ou da Itália e a crescente dependência energética espartilhada, por exemplo, entre abastecimentos de gás natural argelino ou russo, e, do outro, uma lógica de não hostilização mútua em clima de diferendo agudo sobre matérias tão complicadas quanto o Kosovo ou a denúncia, ainda que mera jogada sem trunfos por parte de Moscovo, do acordo sobre forças convencionais militares no continente.

O diferendo sobre a eventual independência do Kosovo que divide espanhóis, gregos, britânicos e outros parceiros europeus, tão pouco augura grandes êxitos para a cimeira entre a Rússia e a União agendada para Outubro, em Mafra, precisamente quando se jogam em Moscovo as cartas para as derradeiras eleições legislativas antes de Putin deixar a chefia do estado.   

Quando Sócrates assumir a presidência em Julho estará ainda ao rubro o diferendo entre Londres e Moscovo sobre a recusa de extradição pela Rússia de Andrei Lugovoi, suspeito de implicação no assassínio de Alexander Litvinenko, e a exigência de Putin de que a Grã-Bretanha extradite o milionário Boris Berezovski por alegada conspiração para o derrube violento do regime russo.

Nada de bom Sócrates pode esperar na frente russa.
    
Crises em catadupa

A crise no Zimbabué e o reiterado apoio da maioria dos regimes africanos a Robert Mugabe ameaça, por sua vez, tornar a cimeira Europa África de Lisboa, se vier a realizar-se, num exercício de retórica.

A nova diplomacia francesa à la Kouchner – previsivelmente tão pouco consequente quanto a defunta estratégia moral de Tony Blair – mostra-se muita empenhada na crise do Darfur e vai exigir maior atenção à desgraça sudanesa.

No imediato o activismo de Bernard Kouchner poderá saldar-se por mera declaração de intenções, mas, inevitavelmente, complicará a agenda da ansiada cimeira Europa África de Lisboa.

O bloqueio das negociações de adesão da Turquia, confirmado pela eleição de Sarkozy, agravará, por sua vez, o impasse em Chipre.

Recep Erdogan não tem qualquer possibilidade de alargar a Chipre a União Aduaneira estabelecida com a União Europeia no final de 1995 sem assegurar liberdade de circulação e comércio para a minoria turca na ilha.

Os 780 mil habitantes da parte grega continuarão a gozar dos privilégios da pertença à União e os 260 mil turcos do norte da ilha estão condenados a viver no limbo de um estado presidido por Mehmet Ali Talat que apenas é reconhecido por Ancara.

Os combates em Tripoli entre o exército libanês e uma milícia palestiniana com ligações à Al-Qaeda e também à Síria estão aí para lembrar que os próximos meses no Levante vão mostrar-se muito complicados.

A criação pelas Nações Unidas de um tribunal internacional para julgar o assassínio do antigo primeiro-ministro libanês Rafic Hariri, em que as pistas implicam a Síria, só pode levar a tempos agitados no Líbano.

Em Gaza a guerra entre a Fatah e o Hamas exclui hipóteses de negociação, enquanto a estratégia israelita e norte-americana de apoio aos herdeiros de Arafat se revela incapaz de esmagar militarmente os islamitas.

A retaliação violenta de Israel contra os ataques do Hamas e da Jihad Islâmica aponta no sentido de um Verão sangrento sem que tentativas de mediação internacional tenham hipóteses de êxito tanto mais que continua a expansão dos colonatos judeus na Cisjordânia e o governo de Ehud Olmert está prestes a cair, sendo inevitável uma guinada à direita no caso de eleições antecipadas.

No Iraque aguardam-se complicações no Curdistão, envolvendo directamente a Turquia, à medida que se aproxima o referendo sobre a partilha da cidade de Kirkuk que terá lugar antes do final do ano.

Gordon Brown, por seu turno, pondera a mais valia eleitoral da retirada do caos de Bassorá, deixando Bush encurralado no Iraque e a braços com o fracasso da estratégia do general Petraeus para contenção da violência em Bagdade e na vizinha província sunita de Anbar.

Quanto ao Irão novas e mais gravosas sanções contra Teerão começam a ser discutidas na ONU em Junho e ameaçam afectar os interesses comerciais de países como a Alemanha, a França e a Itália.

A campanha das oposições paquistanesas contra o general Musharraf, por sua vez, vai no mínimo complicar a missão da NATO e da União Europeia no Afeganistão. 

Portanto, temos crises a mais.

A agenda da presidência portuguesa já era pesada, a reforma institucional da União matéria intrincada, mas com tantas crises a caírem sobre a mesa é bem provável que muitas das prioridades anunciadas acabem por ficar em segundo plano.

Os alardeados instintos de animal feroz de Sócrates vão ser postos à prova.

Tal como Buck ao ser tirado dos confortos da cálida Califórnia teve de responder aos apelos do instinto feroz para sobreviver, Sócrates poderá agora rever-se no desafio da epopeia de Jack London. 

Esperemos, então, que não lhe falhe o discernimento e a capacidade negocial porque o risco da presidência portuguesa se atolar numa aflição de crises sucessivas exige mesmo gente destemida e ponderada.

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