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11 de Novembro de 2009 às 11:45

Ir à bola com a Bósnia

"O que perde o futebol não é o jogo propriamente dito, mas todo o barulho que se faz à volta dele", desabafava o desiludido Alexandre O`Neill por altura do Europeu de 1984 em que Jordão, Gomes e Chalana quase chegaram a desfeitear a França no Vélodrome de...

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"O que perde o futebol não é o jogo propriamente dito, mas todo o barulho que se faz à volta dele", desabafava o desiludido Alexandre O`Neill por altura do Europeu de 1984 em que Jordão, Gomes e Chalana quase chegaram a desfeitear a França no Vélodrome de Marselha.

Quando o país fica pedrado no futebol perde-se "a razoabilidade, a isenção, o bom senso, a simples tineta", comentava o poeta dado à crónica, e, fisgados nesses momentos em que só há olhos para a bola, convém lembrar que nos Balcãs o jogo é caso ainda mais sério do que em Portugal.

Nos derradeiros anos da Jugoslávia confrontos violentos - à facada, a tiro, com cocktails Molotov - eram de regra nos jogos entre sérvios e croatas e, passadas as guerras, que começaram com a secessão da Eslovénia em 1991, continuaram na Croácia no ano seguinte, prosseguiram na Bósnia até 1995, e levaram a NATO a atacar a Sérvia por causa do Kosovo em 1999, o futebol ainda agora é pretexto para violências.

Num jogo para a Primeira Liga da Bósnia, a ida dos muçulmanos de Sarajevo à cidade croata de Siroki Brijeg redundou no passado 4 de Outubro em tumultos que se saldaram por um morto e cinco feridos e, uma vez mais se fizeram ouvir os clamores nessa entidade equívoca criada pelos acordos de Dayton no final de 1995 de que toda a bola está ulcerada por ódios étnicos e religiosos, sendo tempo de pôr termo ao campeonato e dissolver a selecção dita nacional criada em 1992.

Uma coisa em forma de assim
É isto a Bósnia-Herzegovina: uma coisa em forma de assim, como diria O`Neill.

Um protectorado internacional que integra uma federação de muçulmanos e croatas e uma república sérvia, sob tutela de um Alto Representante austríaco.

Dois mil militares e polícias da União Europeia, entre eles meia centena de portugueses, não conseguem encontrar solução para sair da Bósnia, partilhada numa rede de poderes difícil de descortinar.

Quando a selecção portuguesa fôr jogar a segunda mão na delapidada cidade industrial de Zenica, onde ficaram quase só muçulmanos e croatas depois da fuga dos sérvios, será altura de mais uma ronda de negociações entre a União Europeia e os Estados Unidos com os líderes da Bósnia-Herzegovina para tentar encontrar um compromisso que possa abrir caminho à levitação da entidade balcânica rumo à órbita de Bruxelas e da NATO.

De momento, nem líderes sérvios, croatas ou muçulmanos se mostram dispostos a aceitar uma administração unificada com um presidente e dois vice-presidentes ao invés da presente disfuncionalidade de presidência rotativa a cada oito meses e responsabilidades difusas.

Tirar as castanhas do lume
Mais de um milhão de sérvios estão sobretudo interessados em unir-se à Sérvia. Para cima de 200 mil croatas olham, por sua vez, para Zagrebe e quase 2 milhões de muçulmanos tentam perceber como poderão ser independentes e ter Sarajevo como capital, enquanto outras minorias procuram protecções alheias numa terra que não chega ao dobro do Alentejo.

O que há de mais empreendedor pela Bósnia são as mafias, a corrupção impera e altas taxas de desemprego numa parte da antiga Jugoslávia onde se concentravam indústrias militares não auguram grande futuro.

Os números do investimento estrangeiro só revelam quebra de confiança e nos primeiros três trimestres de 2009 a entrada de capitais caiu 56 % em relação a período homólogo do ano passado. Uns meros 28 milhões de euros chegados das vizinhas Eslovénia, Aústria e Croácia.

A União Europeia e os Estados Unidos falam de uma última oportunidade negocial, um Dayton II, mas têm a castanha nas mãos, antes que reúna no final do ano o conclave de 50 países que integram o Comité de Implementação da Paz, Portugal incluído, que, em princípio deveria encerrar o dossier Bósnia congratulando-se pela autodeterminação das instituições democráticas.

No entretanto, Radovan Karadzic, o psiquiatra sérvio e mestre da mortandade, vai vendo o seu julgamento adiado em Haia, outro comparsa, Ratko Mladic, continua a monte, a ex-presidente dos sérvios da Bósnia, Biljania Plasvsic, foi libertada da cadeia na Suécia e partiu para Belgrado depois de cumprir dois terços de uma pena de 11 anos de prisão por crimes contra a humanidade, e a vida, essa coisa videirinha, no adjectivar de O`Neill, continua.

Coisa muito séria
De resto, o futebol é coisa muito séria e sobra política que, como temia o autor da "Feira Cabisbaixa", nem chegará a comover os adeptos lusos.

Afinal, até O`Neill, poeta que não gostava de atropelos à esquerda e à direita, confessava nesses idos de 1984, por coisas da compita com Espanha que deu num 1-1, ter acabado "apanhado apenas por razões patrioteiras, que o jogo foi fraco, embora o golo (de António Sousa, aos 52 ', logo retorquido aos 73' por Santillana, recordo eu passados tantos anos sobre o empate dessa Primeira Fase em que se amontoavam ainda romenos e alemães ocidentais) tenha sido lindo".

Fica "o País futebol" e "é assim por toda a parte", asseverara O`Neill, e, portanto, entre tramas e dramas, acaba a selecção de um país com fronteiras continentais velhas de quase um milénio a disputar a qualificação para um Mundial face a "uma coisa em forma de assim" atormentada por dramas e massacres que ainda nem deram para esquecer sem que adeptos ou políticos se comovam por ali além com as desgraças dos Balcãs.

Jornalista
barradas.joaocarlos@gmail.com
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