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29 de Março de 2007 às 13:59

Egipto: a apatia e o estado de emergência permanente

No Egipto de Hosni Mubarak reina a modorra autocrática e, ainda que seja vaga a perspectiva de uma convulsão revolucionária, o esgotamento do regime ficou bem claro no referendo constitucional. O objectivo essencial da revisão constitucional visa a exclus

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O objectivo essencial da revisão constitucional visa a exclusão do movimento "Irmãos Muçulmanos", da oposição islamita, consagrando o controlo do estado pelo Partido Nacional Democrata de Mubarak à custa dos demais partidos laicos. 

É a fase derradeira da autocracia de Mubarak que, após 26 anos no poder, prepara a sucessão dinástica para o filho Gamal, caso os constrangimentos da idade não lhe permitam levar até ao fim o mandato presidencial que expira em 2011.

O primeiro anúncio do referendo teve lugar em Dezembro e as 34 alterações propostas foram rapidamente aprovadas pelo conselho consultivo a 13 de Março e seis dias depois no parlamento ante o boicote da oposição.

Logo depois sobreveio a votação de segunda-feira. O governo afirma que a participação eleitoral atingiu os 27 por cento, enquanto organizações de direitos humanos contestam, apontando para uma abstenção na ordem dos 90 por cento.

Uma taxa de aprovação do pacote de revisão constitucional oficialmente cifrada em 76 por cento basta para fazer entrar em vigor uma ordem legal que deverá pôr fim ao estado de emergência em vigor desde o assassínio do presidente Anwar Sadat em Outubro de 1981.

Uma revisão sob choque

A revisão constitucional de urgência adveio do choque provocada pelo forte resultado dos candidatos independentes ligados aos ilegalizados "Irmãos Muçulmanos" nas eleições legislativas no final de 2005. Os islamitas conseguiram então, numa eleição com o voto de apenas 25 por cento dos 32 milhões de recenseados, 20 por cento dos lugares em disputa para o parlamento.
A partir de agora nos termos do artigo 5º da Constituição, que consagra o pluralismo político, fica interdita toda a actividade política ou partido político que siga "um quadro de referência religioso", adopte "uma base religiosa, de género ou de origem étnica". 

Outra alteração, artigo 62º, constrange a possibilidade de apresentação de candidaturas independentes, reduzindo, assim, a capacidade de mobilização dos "Irmãos Muçulmanos".

Este ponto da revisão da Constituição de 1971, que instaura, também, quotas para representação feminina, pretende abrir hipóteses ao regime para cooptar forças laicas da oposição – dos liberais dos partidos Wafd e Gahd aos movimentos mais à esquerda como o Partido Progressista e os nasseristas – que nas últimas eleições não conseguiram no conjunto mais de 5 por cento dos votos.

O controlo governamental sobre as actividades políticas e a comunicação social, o poder discricionário do presidente dissolver o parlamento, a salvaguarda de um mínimo de três por cento de representação nos órgãos legislativos e cinco anos de existência legal para os partidos puderem apresentar candidaturas presidenciais, cobrem a eventualidade de formação de blocos alternativos de partidos da oposição laica.

O argumento antiterrorista

A questão mais controversa levantada pela revisão reside nos poderes concedidos ao chefe de estado para "protecção da segurança e ordem pública" pelo artigo 179º.

O presidente assume poderes para fazer julgar em tribunais militares ou especiais suspeitos de terrorismo. A regra autoritária, uma consagração do estado de emergência por outro nome, dispensa, igualmente, mandados judiciais para investigação e detenção de pessoas suspeitas de terrorismo.

A revisão, que elimina definitivamente as referências socialistas e o papel dirigente do sector público da economia, é mais um passo na criação de uma ordem pós nasserista que preserva o domínio do partido governamental, justifica a repressão de qualquer movimento islamita, e permite a Mubarak controlar a sua sucessão.

Em 2005 foi aberta a possibilidade de apresentação de candidaturas múltiplas à presidência, mas o quadro legal restringiu fortemente a viabilidade de forças da oposição poderem concorrer às eleições presidenciais.

Dois anos antes, o direito à greve fora consagrado na lei, mas sob condição de prévia aprovação por parte da Federação Geral dos Sindicatos que é controlada pelo partido governamental. Agora, seguir-se-á a regulamentação da participação em eleições legislativas e a lei antiterrorista, enquanto Mubarak, ao continuar a não nomear um vice-presidente, deixa aberta a possibilidade do seu filho Gamal lhe suceder por nomeação do partido governamental no caso de não conseguir chegar ao fim do mandato.

O controlo do estado pelo partido de Mubarak, que tenta, ainda, obstar à participação de outras forças em associações profissionais, empresariais e cívicas, deixa escassa margem de manobra às forças da oposição laica e exclui do sistema político os islamitas. 

O deserto e a inquietação

O terrorismo islamita no início da década de 90 mergulhou o Egipto numa violência inaudita, traumatizou os cristãos coptas (mais de 15 por cento da população), e deu a Mubarak a oportunidade de reforçar o seu poder pessoal enquanto desmantelava o sistema económico estatista herdado do nasserismo.      

Ao contrário de outros países do Médio Oriente a prevalência de uma tradição estatal sem par e uma vincada identidade nacional têm permitido até agora a estabilidade dos regimes políticos no Egipto.

Passado o período caótico aberto pela invasão de Napoleão Bonaparte, em 1798, que resultou na ascensão da dinastia fundada pelo albanês Muhammad Ali, sob tutela otomana, o Egipto escapou às violências étnicas, religiosas e políticas que caracterizaram a história moderna da região.

A hegemonia britânica a partir de 1882 redundou na imposição do protectorado na eclosão da I Guerra Mundial e, após a declaração de independência em 1922, o Egipto conheceu a monarquia constitucional e o seu momento liberal.

Um movimento islamita sunita de grande futuro, mas arredado do poder na terra do Egipto, surgiu também em 1928 quando Hassan Al Banna fundou os "Irmãos Muçulmanos", pondo em causa a própria ideia de pertença nacional em nome de uma ideologia integrista de retorno ao califado.

A dinastia de Ali deu lugar à República em 1953 e a tomada do poder por Gamal Nasser no ano seguinte marcou outro momento singular com o apogeu do panarabismo até à derrota na guerra isarelo-árabe de 1967.

À erosão do panarabismo e da pujança cultural que fez do Egipto o país de referência do mundo árabe entre as décadas de 20 e 50 do século XX seguiu-se um amargo sentimento de decadência e uma inquietação sobre o sentido da singularidade de uma nação marcada pelas suas milenares tradições faraónicas, greco-romanos, cópticas e islâmicas.

A alienação política imposta por um regime autocrático exaspera ainda mais uma crise cultural e ideológica em que a tentação islamita ganha peso.

Agora, um presidente prestes a chegar aos 80 anos, cujo objectivo maior passa por assegurar a sucessão do filho mais novo, contempla do alto do trono um deserto político e o vazio.

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