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15 de Março de 2006 às 13:59

A lição de Milosevic para o TPI

A controvérsia que assola o primeiro tribunal criminal permanente e as insuficiências reveladas nos processos conduzidos pela ONU em relação à ex-Jugoslávia e ao Ruanda são sinais de monta.

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É um erro fazer de um processo judicial um repositório de testemunhos para a posteridade. É esta a principal lição pela negativa do julgamento falhado de Slobodan Milosevic.

O antigo líder sérvio enfrentava 66 acusações por crimes de guerra, crimes contra a humanidade e genocídio durante as guerras dos anos 90. Dois anos para instrução do processo, mais quatro anos de audiências deram em nada pela morte do acusado, apesar de muitos testemunhos terem revelado atrocidades de monta e o exame de consciência ter, melhor ou pior, começado nos estados da ex-Jugoslávia.

Desde a sua criação pelas Nações Unidas, em 1993, o Tribunal Penal Internacional para a ex-Jugoslávia acusou 161 pessoas, encontrando-se seis a monte, nomeadamente os sérvios-bósnios Radovan Karadzic e Ratko Mladic.

Dos réus presentes ao tribunal de Haia 26 foram ilibados. Diga-se, ainda, que dez morreram de causas naturais durante os respectivos processos. Outras duas pessoas à guarda do tribunal suicidaram-se. O número de condenados fica pelos 43. É este o balanço provisório quatro anos antes de terminar o mandato do tribunal.

Grandes processos ainda estão por realizar como o julgamento dos acusados pelo massacre de Srebrenica que começará em Julho. Políticos e militares croatas, o ex-primeiro-ministro do Kosovo e antigo líder do Exército de Libertação do Kosovo, Ramush Hardinai, contam-se entre os acusados que ainda terão de comparecer em tribunal.

Milosevic foi o único dos chefes de estado da ex-Jugoslávia a ser julgado. O processo contra Franjo Tudjman foi encerrado com a morte do presidente croata, em Dezembro de 1999, e igual sorte teve o inquérito ao líder bósnio Alija Izetbegovic, falecido em Setembro de 2004. 

Num conjunto de processos que excluem as responsabilidades políticas dos estados que apoiaram os diversos contendores e em que se repartem acusações por políticos e militares sérvios, croatas, muçulmanos bósnios, albaneses e macedónios, Milosevic era a figura mais simbólica.

Ora, a estratégia da acusação contra Milosevic errou ao avançar com demasiadas acusações a necessitarem de prova, em vez de optar por uns quantos crimes cujas provas materiais e testemunhos justificassem uma possível condenação mais expedita.

A acusação visou reunir um relato detalhado de testemunhos para a história e, pelas contingências do destino, acabou por falhar no objectivo principal: pronunciar um veredicto sobre a eventual culpabilidade do réu nos termos da lei internacional.

Acresce que boa parte das acusações tinha a ver com responsabilidades políticas da linha de comando de prova muito difícil. Além disso, os conflitos na Croácia (1991-1992), na Bósnia (1992-1995) e no Kosovo (1999) tiveram características bastante diferentes e revelou-se politicamente abusivo e inoperante amalgar as três situações num único processo judicial.

As garantias concedidas à defesa foram correctas, mas não evitaram que Milosevic fizesse do tribunal uma tribuna política durante as 466 sessões do julgamento, o que é inevitável nestes casos. Os cuidados de segurança a ter com os detidos à guarda do tribunal revelaram-se um fiasco.

Um tribunal frágil. São estes erros e opções falhadas que terá de levar em conta o Tribunal Penal Internacional (TPI) que se prepara para entrar em cena numa situação comparativamente mais frágil do ponto de vista político e com recursos a orçamento e meios bem mais escassos.

Em Outubro o Tribunal emitiu mandados de captura contra seis líderes do Exército da Resistência do Senhor, o bando que há duas décadas aterroriza o norte do Uganda. Nenhum dos acusados, a começar pelo líder dos rebeldes, Joseph Kony, foi ainda detido. O Tribunal pretende, ainda, julgar membros de milícias congolesas suspeitos de crimes graves e começou, igualmente, a investigar, por incumbência do Conselho de Segurança da ONU, a situação no Darfur.

Instituído com carácter permanente a 1 de Julho de 2002, o Tribunal da Haia, julga crimes de genocídio, crimes de guerra e crimes contra a humanidade cometidos a partir dessa data.

A sua jurisdição abarca estes crimes graves cometidos nos territórios dos estados signatários dos Estatuto de Roma de 1998, que deram origem ao Tribunal, ou por cidadãos desses países, sempre que as justiças nacionais não possam ou não pretendam abrir processos.

O Conselho de Segurança da ONU pode, igualmente, à semelhança de qualquer um dos estados signatários dos Estatuto de Roma, remeter casos para o Tribunal presidido pelo canadiano Philippe Kirsch, como aconteceu com a investigação do Darfur.

Como organização internacional independente o TPI pode abrir investigações por iniciativa própria, mas só dispõe dos meios postos à disposição pelos estados aderentes, designadamente para fazer cumprir mandados de captura.

Apenas cem países aderiram até agora ao TPI, entre eles Portugal. Os Estados Unidos, depois de receberem garantias de que cidadãos norte-americanos não seriam alvo de investigação no Darfur, acederam a não vetar o primeiro endosso pelo Conselho de Segurança de um caso para o TPI, mas mantêm a recusa em ratificar o Estatuto de Roma, alegando violação da sua soberania em matéria de justiça criminal.

Os riscos de politização, entendida como a abertura de inquéritos injustificados para pôr em causa a legitimidade das autoridades nacionais, e a recusa em aceitar limitações de soberania levaram a que estados como a Índia, a Indonésia, o Paquistão, a Turquia e a China não tenham aderido ao TPI. Países como a Rússia, o Irão, o Egipto e Israel seguiram o exemplo de Washington e não ratificaram o Estatuto, estando ainda de fora o Japão e todos os estados árabes, com excepção da Jordânia.   

A controvérsia que assola o primeiro tribunal criminal permanente e as insuficiências reveladas nos processos conduzidos pela ONU em relação à ex-Jugoslávia e ao Ruanda são sinais de monta.

Para o TPI se afirmar como entidade reconhecida e imparcial terá de optar por procedimentos expeditos, com prazos não superiores a dois anos para conclusão dos processos.

O tribunal de Haia deverá contar com a participação na instrução dos processos, sempre que possível, de juristas dos países de origem dos suspeitos, concentrando-se num número limitado de acusações que permitam prova material e testemunho irrefutáveis.

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