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28 de Maio de 2024 às 17:58

A história já nos diz como será o futuro da IA

Ainda é possível ter uma IA a favor dos trabalhadores, mas só se conseguirmos alterar a direção da inovação na indústria tecnológica e implementar novos regulamentos e instituições.

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A inteligência artificial (IA) e a ameaça que representa para os bons empregos parece ser um problema totalmente novo. Mas podemos encontrar ideias úteis sobre como dar resposta, no trabalho de David Ricardo, um fundador da economia moderna que observou em primeira mão a Revolução Industrial britânica. A evolução do seu pensamento, incluindo alguns pontos que deixou de lado, contém muitas lições que nos podem ser úteis nos dias de hoje.

 

Os líderes tecnológicos do setor privado prometem-nos um futuro mais promissor, com menos pressão no trabalho, menos reuniões aborrecidas, mais tempo de lazer e talvez até um rendimento básico universal. Mas será que devemos acreditar neles? Muita gente poderá simplesmente perder o que considerava ser um bom emprego – vendo-se obrigada a encontrar trabalho com um salário mais baixo. Afinal de contas, os algoritmos já estão a assumir tarefas que atualmente requerem o tempo e a atenção das pessoas.

 

Na sua obra seminal de 1817, Princípios de Economia Política e de Tributação, Ricardo tinha uma visão positiva da maquinaria que já tinha transformado a fiação do algodão. Seguindo a sabedoria convencional da época, disse celebremente à Câmara dos Comuns que "as máquinas não diminuíam a procura de mão de obra".

 

Desde a década de 1770, a automatização da fiação reduziu o preço do algodão fiado e aumentou a procura da tarefa complementar de tecer o algodão fiado em tecido acabado. E como quase toda a tecelagem era feita à mão antes da década de 1810, esta explosão da procura ajudou a transformar a tecelagem manual de algodão num trabalho artesanal bem remunerado que empregava várias centenas de milhares de homens britânicos (incluindo muitos fiandeiros pré-industriais deslocados). Esta primeira experiência positiva com a automatização terá, provavelmente, fundamentado a visão inicialmente otimista de Ricardo.  

 

Mas o desenvolvimento de maquinaria em grande escala não se ficou pela fiação. Pouco tempo depois, os teares a vapor estavam a ser utilizados nas fábricas de tecelagem de algodão. Os "tecelões artesanais" já não iriam ganhar bem a trabalhar cinco dias por semana a partir dos seus chalés. Em vez disso, teriam de batalhar para alimentar as suas famílias enquanto trabalhavam muitas mais horas sob uma disciplina rigorosa nas fábricas.

 

À medida que a ansiedade e os protestos se iam espalhando pelo norte de Inglaterra, Ricardo foi mudando de ideias. Na terceira edição do seu influente livro, publicada em 1821, acrescentou um novo capítulo, "Sobre as Máquinas", onde acertou em cheio: "Se as máquinas pudessem fazer todas as tarefas que os trabalhadores fazem atualmente, não haveria procura de mão de obra". A mesma preocupação aplica-se atualmente. O facto de os algoritmos assumirem tarefas anteriormente desempenhadas por trabalhadores não será uma boa notícia para os trabalhadores deslocados, a menos que estes consigam encontrar novas tarefas bem remuneradas.

 

A maioria dos artesãos de tecelagem em dificuldades durante as décadas de 1810 e 1820 não foi trabalhar para as novas fábricas de tecelagem, porque os teares mecânicos não precisavam de muitos trabalhadores. Enquanto a automatização da fiação criou oportunidades para mais pessoas trabalharem como tecelões, a automatização da tecelagem não criou uma procura de mão de obra compensatória noutros setores. A economia britânica, em geral, não criou um número suficiente de novos empregos bem remunerados, pelo menos até ao arranque dos caminhos-de-ferro na década de 1830. Com poucas outras opções, centenas de milhares de tecelões artesanais permaneceram na profissão, mesmo com os salários a cair para mais de metade.

 

Outro problema crucial, embora não tenha sido abordado pelo próprio Ricardo, era o facto de o trabalho em duras condições fabris – tornando-se uma pequena engrenagem nas "fábricas satânicas" controladas pelos empregadores no início do século XIX – não ser atrativo para os tecelões de teares manuais. Muitos tecelões artesanais operavam como empresários independentes que compravam algodão fiado e depois vendiam os seus produtos elaborados no mercado. Obviamente, não estavam entusiasmados com o facto de se submeterem a horários mais longos, mais disciplina, menos autonomia e salários tipicamente mais baixos (pelo menos em comparação com o apogeu da tecelagem em tear manual). Em testemunhos recolhidos por várias Comissões Reais, os tecelões falaram amargamente sobre a sua recusa em aceitar tais condições de trabalho, ou sobre o quão horrível as suas vidas se tornaram quando foram forçados (pela falta de outras opções) a aceitar esses empregos.

 

A IA generativa atual tem um enorme potencial e já alcançou alguns feitos notáveis, inclusive na investigação científica. Poderia muito bem ser utilizada para ajudar os trabalhadores  a tornarem-se mais informados, mais produtivos, mais independentes e mais versáteis. Infelizmente, a indústria tecnológica parece ter em mente outros fins. Tal como explicamos em Poder e Progresso, as grandes empresas que desenvolvem e implementam a IA favorecem esmagadoramente a automatização (substituição de pessoas) em detrimento do incremento (tornar as pessoas mais produtivas).

 

Isso significa que corremos o risco de uma automatização excessiva: muitos trabalhadores serão deslocados e os que permanecerem empregados serão sujeitos a formas de vigilância e controlo cada vez mais degradantes. O princípio de "automatizar primeiro e fazer perguntas depois" exige – e, portanto, incentiva ainda mais – a recolha de quantidades gigantescas de informação no local de trabalho e em todos os setores da sociedade, pondo em causa os limites da privacidade.

 

Um futuro assim não é inevitável. A regulamentação da recolha de dados ajudaria a proteger a privacidade e regras mais rigorosas no local de trabalho poderiam evitar os piores aspetos da vigilância baseada em IA. Mas a tarefa mais fundamental, recorda-nos Ricardo, é mudar a narrativa geral sobre a IA. Provavelmente, a lição mais importante da sua vida e do seu trabalho é que as máquinas não são necessariamente boas ou más. O facto de destruírem ou criarem empregos depende da forma como as utilizamos e de quem toma essas decisões. No tempo de Ricardo, era um pequeno grupo de proprietários de fábricas que decidia, e essas decisões centravam-se na automatização e na máxima opressão dos trabalhadores.

 

Atualmente, um grupo ainda mais reduzido de líderes tecnológicos parece estar a seguir o mesmo caminho. Mas se nos concentrarmos na criação de novas oportunidades, de novas tarefas para os seres humanos e no respeito por todos os indivíduos, isso garantirá resultados muito melhores. Ainda é possível ter uma IA a favor dos trabalhadores, mas só se conseguirmos alterar a direção da inovação na indústria tecnológica e implementar novos regulamentos e instituições.

 

Tal como no tempo de Ricardo, seria ingénuo confiar na benevolência dos líderes empresariais e tecnológicos. Foram necessárias grandes reformas políticas para criar uma verdadeira democracia, legalizar os sindicatos e mudar o rumo do progresso tecnológico na Grã-Bretanha durante a Revolução Industrial. Hoje, enfrentamos o mesmo desafio essencial.

 

Daron Acemoglu, professor de Economia, nomeado com o título académico mais elevado (Institute Professor), no MIT, é coautor (com Simon Johnson) de Power and Progress: Our Thousand-Year Struggle Over Technology and Prosperity (PublicAffairs, 2023). Simon Johnson, antigo economista-chefe do Fundo Monetário Internacional, é professor na MIT Sloan School of Management  coautor (com Daron Acemoglu) de Power and Progress: Our Thousand-Year Struggle Over Technology and Prosperity (PublicAffairs, 2023).

 

Direitos de autor: Project Syndicate, 2024.
www.project-syndicate.org

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