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09 de Março de 2021 às 19:47

Os espinhos da contradição

Ninguém ali tem medo de ser cancelado, dizem o têm para dizer, no limite do insulto (às vezes para lá até dessa linha) e mesmo assim... continuam amigos. Talvez até fiquem mais.

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O impossível não existe. Impossível só aquilo que nunca foi imaginado. Qualquer contador de histórias sabe disto. Com alguns adendos: mentiras sinceras interessam; em ficção só é mentira o que não parece ser bem contado.

Podemos tomar como exemplo “One Night in Miami”, longa que está na fila para ganhar alguns Óscares e que pode (e deve) ser visto na plataforma Amazon PrimeVideo.

“One Night in Miami” é todo ele uma efabulação. Relata uma determinada e precisa noite que nunca existiu em que o lutador Cassius Clay (a.k.a Muhammad Ali), o ativista Malcom X, o jogador de futebol americano Jim Brown e o músico Sam Cooke reuniram-se num quarto de hotel para celebrar a amizade e quase terminam aos estalos.

Tal embate serve de alegoria para compreendermos as diferentes visões de mundo que podem ter os negros americanos em relação às suas vivências. Todos sofreram com o racismo, mas cada um tem a sua experiência única (ninguém vive o inferno do outro). Trata-se de estudo de tese importante e que encontrou um filme (baseado numa peça teatral) bastante inspirado.

Filmes como estes não são escritos nem realizados, são coreografados. Há quatro personagens e nenhum protagonista, todos têm o seu tempo de ecrã, todos têm qualidades e defeitos, forças e fraquezas, momentos de drama e de humor.

O facto de ser baseado numa fraude (o tal encontro imaginário) em vez de tirar credibilidade à história só acrescenta. Aqueles tipos pensam, dizem e fazem coisas coerentes com o que disseram e fizeram as personagens reais. Eles parecem de carne e osso. E levam-nos a sonhar com a hipótese de nos metermos na conversa.

Melhor: nos relembra de um tempo onde as conversas eram físicas, os embates de ideias não precisavam ser feitos só com os inimigos, ao contrário, os amigos tinham a função de nos criticar, contestar, nos fazer pensar.

Ninguém ali tem medo de ser cancelado, dizem o têm para dizer, no limite do insulto (às vezes para lá até dessa linha) e mesmo assim... continuam amigos. Talvez até fiquem mais.

“One Night in Miami”, além de uma viagem histórica, é um passeio agridoce a um mundo de afetos, carinhos, abraços, ressentimentos e murros. Não necessariamente nessa ordem. Saudades.

Ou como diria o meu Tio Olavo, a citar Camilo Castelo Branco: “A rosa da profunda amizade não se colhe sem ferir a mão em muitos espinhos da contradição.”

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