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13 de Janeiro de 2021 às 09:40

O xamã da pós-verdade

A eleição de mentirosos compulsivos para a liderança de países foi apenas mais um reflexo do ambiente que escolhemos viver.

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Jake Angeli tem 33 anos não tem profissão conhecida, mas tem uma página da Wikipedia dedicada só a ele. Jake é o xamã do QAnon, um daqueles personagens improváveis que quando surgem no noticiário deixam-nos perdidos e incrédulos: “Isto é mesmo verdade?”

Agora, Jake está preso, depois de ter invadido o Capitólio. E, segundo o relato que a sua doce mãezinha fez a vários jornais do mundo, está a recusar-se a comer. Não, não é greve de fome. É que a comida servida na cadeia onde se encontra não é orgânica e Jake cuida muito da sua alimentação. Não é um fofo?

A história acima casa bem com a da “Elizabeth from Knoxville”. Para quem não está a ligar o nome à pessoa, trata-se daquela rapariga que apareceu num vídeo chorosa, inconsolável por ter levado com gás lacrimogéneo só por estar a fazer uma revolução.

Enquanto Jake e Elizabeth brincavam de derrubar o regime, cinco pessoas morreram e dezenas ficaram feridas. Ou seja, apesar de serem alívios cómicos, o relato em que estão inseridos é de uma tragédia.

Uma das leis básicas do storytelling é a de que “sempre é preferível uma impossibilidade plausível a uma possibilidade improvável”. Em outras palavras, as pessoas acreditam mais facilmente numa mentira que parece ser verdade do que numa realidade que não pareça ser crível.

Aí está a fonte principal do negacionismo (seja em relação ao formato da Terra ou à eficácia das vacinas). Só mesmo os que se tornaram trumpistas ou bolsonaristas ou venturistas é que sabem o universo paralelo onde vivem.

O problema é que os guionistas do planeta enlouqueceram. Desde que passámos a achar razoável escolher apenas os factos que nos interessam que a coisa começou a ir ralo abaixo. A eleição de mentirosos compulsivos para a liderança de países foi apenas mais um reflexo do ambiente que escolhemos viver. Sendo que fique claro que a novidade não é a de que mentirosos sejam eleitos, isto sempre foi assim, mas antes eles temiam ser descobertos. Hoje eles sabem que podem fabular qualquer teoria, fazer qualquer coisa, dizer e se contradizer na mesma frase que, para os seus adeptos, não há mal algum.

A discussão sobre o banimento de Trump do Twitter é mais um reflexo disto. Sob qualquer ângulo, Trump cometeu crimes atrozes na semana passada. E usou as redes sociais para isto. E os seus fãs defendem que nem mesmo a perda ao direito de mentir, insuflar, provocar distúrbios através de tweets deveria ocorrer.

Se fosse uma série da Netflix, os últimos episódios que vimos seriam chumbados liminarmente pelos produtores. Só mesmo uma pessoa muito excêntrica poderia sentir empatia por um tipo vestido de viking que ajuda a destruir a imagem do seu próprio país. Mas o certo é que a coisa foi para o ar. E deu audiência.

Jake é a musa dos tempos de hoje. Nos seus cornos pairam os nossos destinos. Mais fácil ele do que eu ou você sermos eleitos o futuro Presidente dos EUA.

Ou como diria o meu Tio Olavo, a parafrasear Nietzsche: “Quanto da verdade você consegue suportar?”

 

Publicitário e Storyteller

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