Opinião
Leia sem respirar
"Não Respire" acaba por ser também um importante documento sobre a comunicação social portuguesa dos últimos 30 anos. Pedro esteve por dentro de alguns dos projetos mais interessantes do jornalismo cá do burgo.
Estou numa das mais improváveis situações. Participo de um painel sobre o livro "Não Respire", obra póstuma do meu saudoso amigo Pedro Rolo Duarte.
Alinhar as palavras "póstuma" e "saudoso" seguidas do nome do Pedro seria algo impensável há pouco tempo. Mas é o que está a acontecer.
Ao meu lado está o Miguel Esteves Cardoso e os jornalistas Sónia Morais Santos e João Gobern (além de António Maria, filho do autor). À minha frente, há uma multidão de gente, talvez mais de quinhentas pessoas.
Revejo rostos conhecidos: amigos, ex e atuais colegas de trabalho, ex, atuais e futuros clientes, parece que os meus quase 30 anos de Portugal estão ali sentados, calados à espera de nos ouvir.
Tento achar um fio narrativo qualquer: em que ponto da nossa jornada comum (minha, do Pedro e de todas aquelas pessoas) começou a ser escrito o trecho que nos levaria àquele lugar?
O nosso cérebro está treinado para dar sentido às coisas. Até as que não fazem sentido.
Contamos e recontamos o que vivemos como se houvesse um começo, um meio e um fim. Estabelecemos relações causais em eventos meramente casuais. Fazemos planos, escolhemos futuros como se fossem pizzas na ementa de um restaurante italiano.
- "Quero um futuro quatro queijos, com pouco roquefort e sem aborrecimentos familiares. Ah, e uma Coca Zero."
Enquanto relato factual, as nossas vidas não existem. Há versões, vestígios, e fabulações a que chamamos de memórias.
É o que sinto sobre este livro que tenho em mãos.
Pedro escreveu um painel curioso da própria vida. Através de textos publicados em jornais e revistas pelos quais passou, notas sobre o dia a dia, poemas de fundo de gaveta, cartas e reminiscências várias, ele quis manter-se cioso aos factos.
Tenho a certeza de que ele publicou a verdade, ao menos, a verdade como se lembrava. E é isso o que basta (ou que me basta).
"Não Respire" acaba por ser também um importante documento sobre a comunicação social portuguesa dos últimos 30 anos. Pedro esteve por dentro de alguns dos projetos mais interessantes do jornalismo cá do burgo.
Muitas das histórias relatadas não são para mim novas, que pude conviver com o autor ao longo de um quarto de século. Nalgumas delas até sou personagem ou, ao menos, vivenciei-as por estar perto quando aconteceram. Se eu as contasse, contaria diferente. Mas, como diria Pedro, essa é que é essa, não seriam mais as memórias dele.
Recomendo vivamente a leitura de "Não Respire". Não como uma homenagem, mas sim porque ele é bom mesmo.
Após os nossos depoimentos, ao fim do evento, é fácil sentir um sentimento de desagravo e comunhão entre os presentes. Rituais servem para isto: restabelecer uma espécie de ordem cronológica às nossas biografias. Não passa de um truque de magia. Mas funciona. Resta-me imaginar o que acharia Pedro de tudo isto.
Ou como diria o meu Tio Olavo, citando o escritor Caio Fernando Abreu: "Muita coisa que ontem parecia importante ou significativa amanhã virará pó no filtro da memória. Mas o sorriso... ah, esse resistirá a todas as ciladas do tempo."
Publicitário e Storyteller
Artigo em conformidade com o novo Acordo Ortográfico