Opinião
A vida não é estática
A maior tragédia da vida é a rotina, aquele jeito todo nosso (e todo errado) de fazer as mesmas coisas de sempre como se isto pudesse trazer diferentes resultados. Não traz. Adiante.
Escrevo esta crónica no Dia de Reis. Em Espanha ainda estão a trocar presentes. Cá já ninguém suporta as decorações festivas de rua e as poucas árvores de Natal que ainda não foram para a caixa.
Sorrisos e otimismos se desmancham conforme avançamos janeiro adentro. Para trás ficaram as promessas. Esquecemos de mudar a dieta, de largar o tabaco, de começar a ir a pé para o trabalho, de terminar aquela relação ruim. A maior tragédia da vida é a rotina, aquele jeito todo nosso (e todo errado) de fazer as mesmas coisas de sempre como se isto pudesse trazer diferentes resultados. Não traz. Adiante.
Daqui a pouco já só vamos falar do Óscar. Será desta que cumpriremos a vontade de ver todos os filmes candidatos ao troféu de melhor do ano antes da cerimónia? Para quem vai atrasado na lista seguem duas indicações que podem ser vistas em casa: "Marriage Story", de Noah Baumbach, e "Dois Papas", de Fernando Meirelles, ambos na Netflix.
As duas longas partilham muitas coisas: são produções de médio orçamento mas que têm a envergadura dos grandes filmes; trazem duplas de atores que passam o tempo a competir, no bom sentido, pelo protagonismo; têm diálogos afiados, profundos, irónicos, que fazem sorrir, chorar, pensar (às vezes, tudo ao mesmo tempo); apresentam visões macro do mundo a partir do micro, das experiências únicas de vida das suas personagens, que demonstram não ter controlo absoluto sobre as suas histórias e os seus destinos, apenas são seres humanos, com talentos e fraquezas, capazes de coisas belas e feias, como todos nós.
Numa análise mais técnica sobre as narrativas, cada elemento de cada dupla passa por uma jornada completa de transformação bem às nossas vistas. E isto é uma demonstração do soberbo domínio sobre o artesanato do storytelling pelos seus guionistas e realizadores.
Em "Marriage Story", através de Charlie, personagem de Adam Driver, vemos pela primeira vez um drama realista pelos olhos de um millennial do sexo masculino. Está tudo lá: a dificuldade em amadurecer, a inabilidade em aceitar recusas e, ao mesmo tempo, a certeza de querer lidar com o mundo de maneira melhor e diferente do que fariam os seus pais. Enquanto retrato de época, "Marriage Story" é perfeito. Quem tem idade e memória vai lembrar de "Kramer contra Kramer", de 1979, claro. Mas as semelhanças ficam só pela temática. Os animais que vemos no ecrã são de outra espécie, vivem noutra savana, respiram os ares de outro tempo.
Já em "Dois Papas" é difícil tirar os olhos de Jonathan Pryce, o Papa Francisco mais Papa Francisco do que o Papa Francisco. No filme descobrimos Jorge Mario Bergoglio, o homem cheio de vida, energia e falhas que havia antes do papado. A dialética que ele estabelece com o Ratzinger, do igualmente soberbo Anthony Hopkins, acaba por nos enredar numa teia de empatia a qual já não conseguimos sair mesmo depois de apagar a TV. Penso até que o efeito será mais forte para quem não for um católico fervoroso. "Dois Papas" faz mais pela Igreja do que muito bispo zangado que anda por aí.
Assim, se queria boas desculpas neste começo de ano para ver bons filmes e melhorar enquanto pessoa, tem aí duas sugestões. Se quer evoluir enquanto profissional de comunicação também. As duas longas ajudam a perceber o quanto é importante construir pontes para falar com o outro, com o diferente, com quem pensa o contrário.
Ou como diria o meu Tio Olavo, a citar diálogos de "Dois Papas": "A vida não é estática. A verdade pode ser vital, mas, sem amor, ela é insuportável."
Publicitário e Storyteller