Opinião
Não há melhor regulação sem mudar a cultura
Deixemos de lado o contexto: o cerco político, personalizado, ao governador do Banco de Portugal. Há razões objectivas para alterar o modelo de supervisão financeira em Portugal?
Sim, se essas alterações reduzirem conflitos de interesse e afinarem os incentivos dos supervisores - e sim se, paralelamente a essas alterações, houver um esforço constante para mudar a cultura da regulação em Portugal. Há lugar a dúvidas sobre se o primeiro critério será cumprido com a alteração descrita em termos muito gerais pelo ministro Mário Centeno. Já sobre o segundo, os sinais são claramente negativos.
Tirar das mãos do Banco de Portugal a autoridade sobre bancos de transição, algo defendido pelo próprio governador, é um afinamento que levanta pouca discussão: o supervisor não deve ser responsável por um regulado. Já retirar a política macroprudencial, que olha para os riscos do sistema como um todo, só porque esta não funciona bem dentro do Banco de Portugal - o Departamento de Estabilidade Financeira já conheceu vários directores nestes últimos anos - levanta dúvidas. Que ganho concreto há com isso? Que vantagem na coordenação traz face ao Comité Nacional para a Estabilidade Financeira criado há dez anos? O Banco de Portugal tem a dupla missão de evitar crises nos bancos (supervisão prudencial) e de escrutinar a sua relação com os clientes (supervisão comportamental), o que significa incentivos opostos em momentos delicados, como se viu no BES - a esvaziar o Banco de Portugal não seria mais indicado retirar a supervisão comportamental?
Não há respostas únicas para estas perguntas - mas estas e outras são perguntas importantes antes de mudar de modelo. Tal como é importante perguntar como é que a criação de uma nova super-entidade vai resolver os problemas de articulação que o Conselho Nacional de Supervisores Financeiros, com competências reforçadas em 2008, não resolveu. Ou questionar como é que, para uma maioria política que concentra na pessoa do Governador todos os males da supervisão, este novo modelo ajuda a superar um défice de atitude e competência.
Este último ponto leva-nos à questão da cultura regulatória - e da cultura política sobre a regulação. Quando o Banco de Portugal e a CMVM deixam passar aquele aumento de capital do BES um mês antes do colapso, isso é reflexo do modelo ou da cultura? Se um administrador do Banco de Portugal é contra uma maior exigência para a almofada de capital dos bancos para não lhes dificultar mais a vida, isso é um problema do modelo ou da cultura? Quando pelo menos doze pessoas, entre governadores, vice-governadores, administradores e directores do Banco de Portugal transitaram entre regulados e reguladores desde 2000 isso é culpa do modelo ou da cultura?
As maiores contribuições recentes para a mudança de cultura vieram com os fracassos e com a passagem para o BCE da responsabilidade de supervisão dos maiores bancos. Mesmo assim, as idiossincrasias locais triunfam. Os sinais dados pelo Governo, de resto, confirmam que o défice cultural está bem vivo: quando premeia o ex-presidente da CMVM com a liderança do grupo que estuda a reforma do modelo; quando fica em silêncio perante exemplos gritantes de porta giratória e de desresponsabilização, como o regresso do ex-director de supervisão ao Banco de Portugal; ou quando fragiliza, em palavras e acções, a independência das entidades reguladoras. Contra estes atavismos não há modelo que resista.