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Estaleiros com lamentações públicas e esperanças privadas

Sem trabalho e com o orgulho ferido. Durante quase três anos, os mais de 600 trabalhadores dos antigos Estaleiros Navais de Viana do Castelo limitaram-se a picar o ponto. Mas agora há um mar de esperança no “novo” Grupo Desportivo e Cultural.

29 de Março de 2016 às 00:01
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"Depois de ‘passar o cartão’, era a ‘conversa da treta’ e o perlongar até à hora da ‘bucha’ (comer a sandes diária e tomar café), continuar com os jogos, caminhadas ou outros entretimentos, até chegar a hora do almoço no refeitório da empresa, onde quase  todos os trabalhadores, uns às 12 horas e outros às 13, se encaminhavam para a dita refeição, servida por colegas. Estas, sim, tinham sempre o seu trabalho diário, que era criar as condições necessárias para servir atempadamente a comida, numa correria desenfreada, por vezes com enormes dificuldades laborais."

Durante quase três anos, entre Junho de 2011 e Março de 2014, Portugal teve na capital do Alto Minho mais de 600 trabalhadores numa empresa estatal que, praticamente sem trabalho, se limitaram a "picar o ponto". A descrição do dia-a-dia no estertor da empresa Estaleiros Navais de Viana do Castelo (ENVC) é feita por Manuel Ramos, 57 anos, 35 dos quais ao serviço  daquela que foi a maior empregadora do distrito.

"Cartas, dominós, computadores, jornais, rádio, televisão... tudo servia para passar o tempo. Depois vieram as caminhadas em grupo no interior da empresa. Por fim, o desespero. Passar o tempo era desesperante", lembra Ramos, um dos últimos a rescindir com os ENVC e um dos primeiros a ser contratado pela West Sea, empresa do grupo Martifer que ganhou a subconcessão dos estaleiros navais de Viana.

A conversa decorre na nova sede do Grupo Desportivo e Cultural dos Trabalhadores dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo, uma instituição que, após ter servido de "ponto de encontro, muro das lamentações e apoio psicológico" aos seus sócios, durante os tempos mais difíceis dos ENVC, foi abandonado via postal pela empresa.

Estaleiros afundam empresa e sede do Grupo

"Em Junho de 2014, recebemos uma carta da administração dos ENVC a informar que ‘a sede social deve ficar liberta de pessoas e bens a partir de 31 de Agosto de 2014’. O contrato de arrendamento ia ser denunciado ao senhorio, sem que tivesse sido acautelada nenhuma defesa para que o Grupo pudesse permanecer num espaço que tinha sido seu quase 50 anos", lamenta Ramos.

A juntar à angústia de trabalharem numa empresa sem trabalho e com a falência à vista, os trabalhadores sofriam agora mais um rude golpe. A renda do imóvel, que foi sempre paga pela empresa pública desde a fundação do Grupo, em 1967, teria que passar a ser assumida pelos seus sócios. A direcção liderada por Ramos tentou negociar com o senhorio, que exigia um aumento dos então 515 euros para 1.400 euros mensais. Incomportável.

O Grupo ainda conseguiu permanecer no imóvel contra o pagamento de 515 euros até Julho do ano passado e de 800 euros nos cinco meses seguintes, mas teve que procurar um novo espaço. A 9 de Fevereiro passado, no dia em que celebrou 49 anos de existência, inaugurou a sua nova sede, num antigo "stand" de automóveis, situada a poucas dezenas de metros dos Paços do Concelho.

A pagar em prestações as rendas vencidas relativas à antiga sede, depois de terem gasto as suas "economias de 25 mil euros" nas obras de construção da nova, o Grupo continua à espera do apoio prometido pela autarquia. "A Câmara aprovou a atribuição de um subsídio de 500 euros por mês, durante um ano, mas ainda não recebemos um cêntimo", insurge-se Manuel Ramos.

Indiferente à conversa do seu presidente com o Negócios, uma dúzia e meia de sócios entretém-se a jogar "snooker" e cartas.  Ouve-se gargalhadas. "Isto deixou de ser o muro das lamentações. Pouco a pouco, a esperança vai renascendo", reage o líder de uma agremiação que conta cerca de mil sócios, a maioria dos quais antigos trabalhadores dos estaleiros navais.

"Mas dos actuais 200 da West Sea,  150 continuam como sócios do Grupo." E tudo mudou. É verdade que "nada poderá fazer esquecer" a gigante ENVC, que chegou a empregar duas mil pessoas e despediu os seus últimos 609 trabalhadores, "mas o semblante vai ficando menos carregado. O tempo acaba por curar algumas feridas", remata o presidente do Grupo.

Ex-trabalhadores de regresso aos estaleiros

Foi há cerca de dois anos que a participada do grupo Martifer assumiu a subconcessão dos estaleiros, até 2031, por uma renda anual de 415 mil euros.  Com a promessa de fazer renascer a construção naval em Viana, o grupo liderado por Carlos Martins já emprega mais de 200 pessoas, três quartos das quais ex-ENVC, número que pretende duplicar em breve.

Depois de ter reparado algumas dezenas de navios, esta subconcessionária enche a carteira de encomendas de construções. Há duas semanas, entregou à Douro Azul o Viking Osfrid, a primeira embarcação construída pela West Sea. Segue-se, nas próximas semanas, a entrega da segunda, no caso a um cliente australiano. E vai construir dois navios-patrulha para a Marinha portuguesa.

Dos 609 trabalhadores despedidos dos ENVC, apenas 10 não aceitaram a rescisão e foram para tribunal, num processo conjunto que ainda decorre. A conclusão do procedimento de liquidação da empresa estatal está marcada para esta quinta-feira, 31 de Março.

De volta ao Grupo Desportivo e Cultural dos Trabalhadores dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo, Manuel Ramos traz para junto de si Vítor Dantas. Franzino, de bigode farfalhudo, ninguém diria que teve a ser cargo, "durante 41 anos de trabalho" nos ENVC,  uma das tarefas "mais duras e perigosas" da actividade de construção naval – a montagem de escotilhas.

"Era o melhor emprego de Viana. Entrei com 17 anos na empresa. Tinha lá o meu  pai e dois irmãos – um deles foi contratado pela West Sea; o outro, mais velho, está reformado. Eu tenho 64 anos e reformei-me em 2010", conta. Pára de falar. Os olhos humedeceram.

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