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Os desafios da saúde no pós-covid-19

O sistema de saúde respondeu à primeira vaga de covid-19, mas com custos como a suspensão de parte da sua restante atividade. Este facto teve consequências muito negativas em termos de morbilidade, qualidade de vida, no limite, na mortalidade, além dos efeitos na economia e em termos sociais.

16 de Setembro de 2020 às 12:00
As unidades de saúde têm de respeitar a lei dos compromissos e pagamentos em atraso, que obriga a diversos proce  dimentos para concretizar compras públicas.
Sara Matos
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"O impacto da covid-19 nos cuidados de saúde foi muito relevante. Os bons resultados que obtivemos na resposta a doentes suspeitos ou confirmados com SARS-CoV-2 traduziram-se fundamentalmente numa suspensão da restante atividade eletiva (excluindo nomeadamente oncologia, patologia cardiovascular ou neurológica grave).

 

Este facto teve consequências muito negativas em termos de morbilidade, qualidade de vida, no limite, na mortalidade, além dos efeitos na economia e em termos sociais", afirma Fernando Araújo, presidente do conselho de administração do Centro Hospitalar de São João.

 

"O vírus parou quase tudo no SNS e, conforme instruções da DGS, também nos hospitais privados. No caso dos hospitais privados, a atividade chegou a cair 67% em abril, face a mesmo mês do período homólogo", salientou Óscar Gaspar, presidente da Associação Portuguesa de Hospitalização Privada (APHP).

 

Neste aspeto, Julian Perelman, professor associado na Escola Nacional de Saúde Pública, ressalta que, além da diminuição das consultas e dos tratamentos em algumas especialidades, houve a "redução das urgências nomeadamente as pulseiras vermelha, amarela e laranja, e as deslocações do INEM, o que significa que houve pessoas que deixaram de recorrer às urgências". O que pode explicar o excesso de mortalidade.

 

Mais mortalidade entre quem tem mais de 75 anos

 

De março a agosto morreram mais 5.882 pessoas do que no ano passado, ou seja, um aumento de 11%, e mais quase 3.757 que dois anos antes (+7%). Na comparação com 2019 o aumento sente-se, em grande medida, em quem tem mais de 75 anos que representa 88% da mortalidade extra. Segundo os dados da Direção-Geral de Saúde a covid-19 matou nesse período 1.855. Para Óscar Gaspar "deve promover-se, com verdade, um plano de confiança junto dos cidadãos sobre as garantias de segurança quando se frequentam as instituições de saúde".

 

"Estou preocupado com a falta de gestão do Serviço Nacional de Saúde", refere Julian Perelman, para quem "tem de se dar autonomia e responsabilizar os gestores e não infantilizar a gestão com excesso de regras e limitações na execução dos orçamentos". Estes devem poder ter meios para contratar os melhores "como faz o privado, para o SNS não ficar para trás". Considera que falta planeamento e organização ao SNS e que "há médicos que estão a fazer coisas que não deviam estar a fazer, como trabalho de gestão e de enfermeiros, deviam especializar-se".

 

Fernando Araújo chama a atenção para o facto de as soluções para recuperar listas de espera, consultas, tratamentos e exames passarem pelos profissionais, "uma linha de base já limitada e desmotivada, que foram sujeitos a um período de enorme exigência e complexidade, cujos efeitos psicológicos e físicos ainda estamos a identificar".

 

O gestor alerta ainda que uma segunda vaga de covid-19 "poderá voltar a ser de uma enorme exigência física e psicológica e temos algumas dúvidas e apreensão se vão conseguir responder com a mesma capacidade e voluntarismo. Precisamos rapidamente de mais profissionais, um maior reconhecimento do seu trabalho e estímulos concretos à sua motivação e diferenciação, com o risco de não conseguirmos responder às pessoas".

 

Papel dos privados no tratamento

 

Miguel Guimarães, bastonário da Ordem dos Médicos, diz que: "O plano extraordinário já devia estar em marcha. No inverno, com a gripe e outras doenças respiratórias próprias da época, será sempre mais difícil recuperar atividade. Não podemos voltar a cometer o erro de fazer uma gestão política da pandemia, focando todos os recursos nos doentes covid e parando a restante atividade."

 

"Para fazer face aos elevados números de cuidados de saúde que não foram efetuados entre março e junho, há que definir e implementar urgentemente um plano de recuperação das listas de espera, há que investir na motivação dos profissionais", refere Óscar Gaspar. Isto para "evitar que as listas de espera no SNS se tornem ainda mais ingeríveis, com prejuízo e riscos para os doentes, para as famílias e para a saúde pública".

 

Óscar Gaspar refere ainda que, em Inglaterra, "o NHS, em que se inspira o SNS, prepara-se para, em regime de concurso público, avançar no final de setembro para os tratamentos nos hospitais privados no sentido de fazer face ao impacto negativo da covid-19. O plano britânico de recuperação do tempo de acesso à saúde prevê a aquisição de consultas e cirurgias, durante um período de quatro anos, a hospitais independentes".

 

"É urgente procurar uma resposta rápida junto de todos os parceiros do sistema de saúde, focada em resolver os problemas das pessoas. Isso implica não renegar o setor social e privado, mas sobretudo dar autonomia aos hospitais e centros de saúde para fazerem todos os reforços que considerem necessários", acentua Miguel Guimarães. Adianta que "o coração do SNS são os seus profissionais. Sem eles não há SNS. E a verdade é que os médicos e as equipas são muito reduzidas para tantos desafios".