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Jorge Portugal: “Tem de haver mais foco na produtividade material”

As economias ainda retêm pouco a matéria-prima, mas no futuro haverá mais reutilização para se atingirem os objetivos de neutralidade carbónica.

Filipe S. Fernandes 19 de Julho de 2022 às 15:30
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Foto em cima: João Ferreira moderou o debate sobre descarbonização que contou com a participação de Vítor Abreu, Ricardo Barbosa, Pedro Gaspar e Jorge Portugal.


"O grande desafio para as empresas é continuar a investir na eficiência operacional, como um fator-chave de competitividade, e compatibilizar essa eficiência operacional em termos de sustentabilidade. E isto significa ser menos exigente nos recursos materiais, fazer mais com menos", afirmou Jorge Portugal, diretor-geral da Cotec, no painel de debate sobre Descarbonização e Sustentabilidade que integrou a conferência Caixa Negócios em Portugal.

 

Jorge Portugal explicou que na eficiência operacional há três grandes variáveis que têm de ser compatibilizáveis. A primeira é a qualidade, a segunda, fazer mais rápido do que os outros e a terceira é fazer mais barato. "Mas, como se diz em termos industriais, consegue-se trabalhar duas variáveis e deixa-se a outra." Contudo, este novo paradigma e nova ambição, com a Europa a querer ser líder na sustentabilidade, colocam nas empresas uma quarta dimensão em termos de equação da eficiência produtiva. "Se apenas se olhar para a questão da sustentabilidade como uma restrição de negócio, uma necessidade de responder à regulação e um custo em que se tem de incorrer, vai ser um caminho muito limitativo para as empresas e que, em alguns casos, poderá ser fatal. A ideia é continuar a manter a competitividade e a eficiência operacional através da inovação e da procura de incorporação na cadeia de abastecimento, nos materiais que se utilizam", elaborou Jorge Portugal.

Se apenas se olhar para a sustentabilidade como uma restrição de negócio, uma necessidade de responder à regulação e um custo em que se tem de incorrer, vai ser um caminho muito limitativo para as empresas e que, em alguns casos, poderá ser fatal.  Jorge Portugal
Diretor-geral da Cotec

"Há sempre um foco muito grande na produtividade do trabalho e do capital, mas pouco foco na produtividade material, em ser mais eficiente na utilização das matérias-primas, nos recursos naturais, na energia, na água, no processo produtivo e de transformação em produtos e serviços, na distribuição e na reciclagem", salientou.

 

O diretor-geral da Cotec defende que as economias ainda retêm pouco a matéria-prima, mas no futuro haverá mais reutilização. "Na construção, utilizam-se resíduos de demolição ou matérias-primas recicladas em cerca de 10% sabendo que 70% dos resíduos de uma economia são resíduos de demolição e construção. Isto mostra quão longe e na perspetiva de qual é a oportunidade que ainda existe para as empresas de serem mais eficientes na utilização de recursos, dos resíduos e desperdícios nos processos produtivos próprios e na reutilização das matérias-primas", exemplificou Jorge Portugal.

 

Estado da arte

 

Numa análise ao estado da arte na descarbonização, Jorge Portugal definiu que há três níveis de maturidade em que as empresas estão e que correspondem ao âmbito do tipo de emissões. No primeiro nível de maturidade, são as emissões próprias, dentro do processo produtivo, sendo este "o nível mais fácil porque está dentro do perímetro da gestão direta da empresa". Depois, "temos um segundo nível, que é a gestão da energia, que é adquirida em fontes externas ou é produzida pela própria empresa e, neste caso, a possibilidade de utilização de energias renováveis também tem impacto." 

 

O terceiro nível "é o mais difícil" e que coloca a necessidade de colaboração e de um olhar para fora, para as emissões na cadeia de abastecimento, tanto a montante como a jusante. "Este é o grande quebra-cabeças porque exige que a empresa contabilize a sua exposição às emissões de carbono, aos materiais e matérias-primas que adquire, o transporte e a logística para os locais de transformação, e depois toda a cadeia de distribuição, de consumo e de reciclagem", salientou. Entre 60 e 70% das emissões correspondem a empresas do âmbito 3 e que são geradas ao longo de toda a cadeia de abastecimento, o que significa esta interligação entre as cadeias de valor e de abastecimento.

 

O diretor-geral da Cotec chamou ainda a atenção para o Fit for 55, proposto pela União Europeia, que vai ser um dos grandes mecanismos de reorganização das cadeias de abastecimento globais e europeias. "É um mecanismo de ajustamento de carbono transfronteiriço, que é na prática uma taxa de carbono sobre as importações e as exportações. Outro fator de aceleração da descarbonização é a banca por causa dos objetivos ESG (Environmental, Social and Corporate Governance) para a mitigação dos efeitos climáticos."

 

App de descarbonização premiada pela Google e UE

 

O CEiiA - Centro de Engenharia e Desenvolvimento de Produto sempre valorizou as emissões evitadas, como o caminho a seguir e acelerar a neutralidade carbónica. A aplicação AYR Platform surge neste contexto "para acelerar a descarbonização nas cidades através de opções mais sustentáveis na mobilidade e criar valor a partir de novos modelos de negócio, de novas tecnologias, de pensar de maneira diferente tudo o que tem sido feito até agora", adiantou Pedro Gaspar, future business technology director da CEiiA. "Criar novos serviços e processos que nos permitam enfrentar o que temos pela frente, porque não vai ser com o mesmo frame de pensamento que criou a revolução industrial ou a revolução digital que vai avançar e resolver a revolução climática", afirmou.

Não vai ser com o mesmo frame de pensamento criado na revolução industrial ou a revolução digital que se vai resolver a revolução climática. Pedro Gaspar
Future business technology director da CEiiA

A abordagem que durante muito tempo existiu foi a de compensar as emissões. Aferia-se a quantidade de emissões de CO2 que se produzia e compensava-se através de projetos de eficiência energética, ou reflorestação, por exemplo. Mas, para Pedro Gaspar, o resultado não foi o pretendido. "Basta ver a quantidade de CO2 que neste momento existe na atmosfera e, por outro lado, a maior parte destes programas tiveram muitos problemas de fraudes de créditos, double accounting, em que se utiliza o mesmo crédito para compensar várias vezes diferentes emissões", afirmou.

 

Funcionamento e prémios

 

O CEiiA sempre valorizou as emissões evitadas, como o caminho a seguir e acelerar a neutralidade carbónica e, acima de tudo, "um zero verdadeiro". "Procuramos conectar o dia a dia das pessoas com esta temática porque quando falamos de mercado de carbono, transações, fica longe do dia a dia, mas era mais complicado saber com rigor o impacto de uma deslocação. Era necessário começar pelo impacto real e pelas opções mais sustentáveis, que é o que faz a AYR", disse o responsável do CEiiA.

 

Por isso, a AYR incentiva a mobilidade suave e elétrica, o transporte público, "no momento em que a pessoa vai tomar uma decisão de deslocação". "Quantificamos a emissão que é evitada, quanto CO2 não foi produzido e trouxemos para aqui o repensar as tecnologias e trazemos uma nova tecnologia que hoje já está mais divulgada que é o blockchain que me permite criar um token, uma moeda, a partir de cada 100 gramas de CO2 que são evitados. Em cada cidade onde nós lançamos, criamos um mercado local, que permite transacionar esta moeda por mais minutos de mobilidade ou por bens e serviços no ecossistema que nós criámos", descreveu Pedro Gaspar.

 

Este é um primeiro passo, o seguinte será o de fomentar a criação de mercados locais voluntários de carbono, que vão conectar aos mercados maiores. "O mercado da compensação tem validade, mas tem de se complementar porque há muito valor localmente com opções mais sustentáveis e é preciso garantir que fica onde é criado e capturado para ficar num ecossistema de círculo virtuoso", considerou.

 

A AYR já teve um prémio da Google, que foi dado pelo Google.org, o braço filantrópico da tecnológica, que em 2021 identificou a nível mundial onze soluções para o combate às alterações climáticas no futuro e que fossem ser escaláveis. Por isso, "estamos a trabalhar com a Google para a escalabilidade". A outra foi da União Europeia, através da The New European Bauhaus, que procurou nos 27 países tendo chegado a 2100 projetos apresentados e depois identificaram dez, entre os quais a AYR. "Isto traz-nos o reconhecimento do caminho que estamos a fazer, e cria esta atenção da temática."

 

Descarbonizar dá dinheiro

 

Ricardo Barbosa, coordenador da área de energia do INEGI – Instituto de Ciência e Inovação em Engenharia entende que "descarbonizar dá dinheiro porque aumenta a competitividade das empresas". "Existe sensibilidade por parte dos industriais, que são muito proativos para aumentar a sua eficiência de processos, que é mandatória, porque a indústria tem de produzir o produto com qualidade, da forma mais eficiente possível e com o menor impacto ambiental."

Há sensibilidade por parte dos industriais, que são proativos para aumentar a eficiência de processos, que é mandatória, porque a indústria tem de produzir o produto com qualidade, da forma mais eficiente e com o menor impacto ambiental. Ricardo Barbosa
Coordenador da área de energia do INEGI

Para este responsável, os empresários têm cada vez mais "a consciência de que a descarbonização não é um fardo nem um custo". Tudo isto tem um contexto porque existem metas definidas como 2030 para a descarbonização e redução de emissões dos vários setores e 2050 para se atingir a neutralidade carbónica.

 

O coordenador da área de energia no INEG lembra que tem de se limitar o aquecimento global em até 1,5 graus até à era pré-industrial e todos os modelos dizem que a redução deve ir até 43% do nível das emissões até 2030 e depois garantir a neutralidade carbónica em 2050, porque só assim conseguimos restringir o aumento da temperatura global. "É uma missão possível, mas muito complicada", afirma Ricardo Barbosa.

 

A Europa e Portugal

 

A Europa é pioneira, criou o Pacto Ecológico Europeu, que traça estratégias, objetivos e metas para a descarbonização dos vários setores da economia, depois, com a pandemia de covid-19, aumentou a ambição com um pacote de medidas que é Fit for 55, que prevê as reduções até 55% para 2030, e, mais recentemente, lançou mais um conjunto de iniciativas que é o Repower Europe e que tem a ver com o conflito na Ucrânia, para pôr fim à dependência energética.

 

"A Europa consome, em média, 30% do gás russo, a Alemanha 40%, e o Repower estabelece um conjunto de ações a curto, médio e longo prazo que passa, primeiro, pela racionalização do consumo energético até com medidas comportamentais como a temperatura de aquecimento das habitações e dos edifícios e que podem atingir os 5% de poupança na Alemanha, por exemplo", refere Ricardo Barbosa.

 

Portugal desenhou o seu roteiro para a neutralidade carbónica que é até 2050 e o seu plano nacional de Energia e Clima 20-30, que define a estratégia para esta década e antecipa muitas metas. "Por exemplo, deixámos de produzir eletricidade através de carvão muito antes do previsto", disse Ricardo Barbosa.

 

"As empresas sabem que existe este enquadramento, estas metas, mas não podem ver isto como um fardo. A descarbonização dos seus processos produtivos diminui os custos operacionais e os da energia, mas, quando falamos de descarbonização, não falamos só de energia, mas, esquecendo a logística que tem um peso significativo nas emissões, olhando para o processo produtivo e para as emissões de tipo 1 e tipo 2, diretas e indiretas, que estão relacionadas com o consumo de energia, se nos tornarmos mais eficientes, vamos diminuir os nossos custos de operação, vamo-nos tornar mais competitivos e se estes são benefícios tangíveis, há também os intangíveis, pois teremos um produto com menor pegada carbónica", concluiu Ricardo Barbosa.

 

"Uma empresa parada  não polui"

 

Para Vítor Abreu, presidente da Endutex, a sustentabilidade económica, a descarbonização e a economia circular "são temas diários e incontornáveis no mundo de negócios". "Uma empresa parada não polui", ironizou, por isso a Vítor Abreu preocupam-no as "questões da competitividade, dos custos, do ambiente regulatório, que não são iguais para todos, há diferenças globais". A Endutex é um dos principais "players" em têxteis técnicos com centros de produção em Portugal e no Brasil.

O mundo global real tem várias velocidades, nomeadamente em termos ambientais, o que pode ter algumas vantagens, mas tem custos. Vítor Abreu
Presidente do conselho de administração da Endutex

O gestor considera que se as empresas vivessem num ambiente de equidade regulatório global, "os melhores sobreviveriam, mas o mundo global real tem várias velocidades, nomeadamente em termos ambientais, o que pode ter algumas vantagens, mas que tem custos". No seu grupo industrial, existe uma área de tinturaria e acabamentos em que os custos energéticos representam 26%, e que tiveram um aumento de 150% entre 2021 e 2022. A parte energética é "muito importante na competitividade de um setor como os têxteis e, por isso, se da parte dos clientes, às vezes, essas exigências são bem-vindas porque separam as boas empresas das que não têm inovação e desenvolvimento, noutras situações complica-se a vida das empresas".

 

Investimento ambiental

 

Vítor Abreu refere que o ambiente regulatório legal é definido por legisladores que nem sequer olham para os custos de um processo produtivo. "Legisla, e depois as empresas que resolvam os seus problemas. Não falo só da descarbonização, da sustentabilidade, mas da legislação que condiciona o uso de certas matérias-primas, por exemplo. Todas estas soluções ambientais não são mais baratas. Muitas vezes o cliente exige e está disposto a pagar, mas noutras situações, não."

 

Refere ainda que "quando se analisam todas estas exigências que hoje em dia são colocadas às empresas, diariamente têm impacto na componente da competitividade das empresas, da economia das empresas".

 

"É perigoso tomar decisões nesta altura porque é conjuntural, será estrutural, um pouco das duas coisas, mas quando uma empresa toma decisões na questão energética é de médio prazo, por isso, não se deveriam criar enquadramentos com base apenas numa fotografia, mas devia ter-se em conta as várias dinâmicas", concluiu o empresário.