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Gonçalo M. Tavares: “Uma economia que não tem peso, no limite, não tem pessoas”

“Se o trabalho tem que ver com o humano, temos de pensar em taxar os robôs e os computadores. Mais tarde ou mais cedo vai ter de se pôr essa questão, porque não é possível que quem empregue mais pessoas possa ser penalizado por isso”, afirmou Gonçalo M. Tavares.

29 de Setembro de 2020 às 15:00
Gonçalo M. Tavares elogiou a economia aldeã. Pedro Catarino
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"Escrevi um texto em 2008-2009 que tinha que ver com a entrada de Portugal na União Europeia em que houve uma fase, que vista a posteriori, é de completo delírio, demência, em que se destruíram barcos, deitaram-se abaixo árvores, mataram-se animais. Elias Canetti diz que as tribos primitivas só matavam os animais que eram o seu alimento, e deitavam abaixo árvores quando pressentiam que podia chegar o apocalipse. Não há nada de mais absurdo do que matar o alimento, matar a árvore, a matéria direta que me alimenta. Se alguma espécie animal tivesse olhado para nós naqueles anos diria "estes humanos estão completamente loucos", referiu Gonçalo M. Tavares.

O escritor fez uma distinção entre "uma economia de peso". Hoje estamos "a recuperar o peso porque há uma economia com peso, como uma vaca tem peso, uma máquina tem peso", e a "economia do abstrato", " uma Igreja do abstrato, que pensa no abstrato, num papel que passo para ti e digo que vale 15 mil euros".

O porquinho do mealheiro

Para Gonçalo M. Tavares, "há uma economia do peso, que é aldeã no maravilhoso sentido. O porco-mealheiro tinha a ver com isto. No campo, os animais, como um porco, uma vaca, eram uma riqueza, eram dinheiro, nós, os urbanos, trouxemos o campo através do porquinho-mealheiro. Simbolicamente é um animal que representa dinheiro. O que acho interessante hoje é pensar-se nesta economia que tem peso, em que temos uma balança, em que uma vaca pesa, em que uma balança pesa, as pessoas pesam. Esta economia do peso versus a economia do não peso, do digital, é interessante como combinar estas coisas".

Por sua vez Pedro Abrunhosa recorre à parábola dos talentos no Evangelho São Lucas. "Talento em grego significa simultaneamente uma virtude, há quem seja forte, inteligente, belo, bom, o talento é um dom, mas significa também uma moeda e nesse sentido a economia das ideias, do impalpável, do imaterial, já não falo do digital, a economia do imaterial, do bem, a economia do outro, tem peso. Terá o mesmo peso que a economia das máquinas, porque não existem máquinas sem imaterial", afirmou o músico e compositor.

Uma economia que não tem peso, no limite, não tem pessoas (...). Há qualquer coisa que quebrou um limite do humano. Gonçalo M. Tavares
Escritor
Para Gonçalo M. Tavares, "uma economia que não tem peso, no limite, não tem pessoas. Nós hoje temos algumas grandes empresas em termos digitais que têm o mesmo número de trabalhadores que a cafetaria a que vamos no nosso bairro. Há qualquer coisa que quebrou um limite do humano. Se o trabalho tem que ver com o humano, se as ideias têm que ver com o humano, tem de haver humanos. O Obama falou um pouco disso em que temos de pensar em taxar os robôs e os computadores. Mais tarde ou mais cedo vai ter de se pôr essa questão, porque não é possível que quem empregue mais pessoas possa ser penalizado por isso".

Economia digital

Pedro Abrunhosa fez uma reflexão sobre a economia e o consumo digital e à dependência de grandes operadores como o Google, a Amazon, o Facebook, a Apple, que "são absolutos monólitos, são localizadas, têm donos, são buracos negros, não permitem o aparecimento de nova concorrência, são cartéis, e no caso do consumo dos bens culturais, e não só, não há outra forma de o fazer tendo em conta que o físico desapareceu. Segundo uma notícia, um músico recebe um euro por cada 300 pessoas que veem o vídeo no Youtube. A questão é que vídeo gera riqueza, gera publicidade, é alojado em servidores e gera uma série de mais-valias que não são contempladas, portanto, uma nota para essa economia digital que está em franca expansão e aqueles que fornecem conteúdos como é o meu caso e o teu caso são remunerados como serventes".

O pensamento mesmiza-se, mas tu distingues-te pela diferença, as empresas afirmam-se pela diferenciação. Pedro Abrunhosa
Músico
Leu o excerto de uma obra de Gonçalo M. Tavares: "Na cidade as infâncias são retangulares, do tamanho do quarto, ninguém sai à rua com menos de 15 anos e sem arma. O Outono já fica melhor nas fotografias quando vista da janela, a natureza perde densidade quando admirada através de um vidro duplo, mas o que protege da bala, protege do vento. Se não saíres de casa o vento torna-se apenas em mais um ficção. Se não existisse natureza as doenças seriam diminutas, disse um dia um médico."

Este foi o ponto de partida de Pedro Abrunhosa sobre o que a "algoritmização do pensamento", e o facto de o músico se algoritmizar para encaixar no padrão dos que vão procurar porque as plataformas privilegiam o que já se conhece. "O pensamento mesmiza-se, mas tu distingues-te pela diferença, as empresas, creio eu, afirmam-se pela diferenciação e pela qualidade. Não faz sentido uma economia numa indústria de restauração especializada na fatia de queijo em que se pode ver a luz à transparência. Mas muitos empresários da restauração acham que vão enriquecer se cortarem no queijo."