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A pressão do turismo e a implosão social e cultural

A pressão do turismo pode fazer sair os locais para a periferia e desertificar e descaracterizar as cidades. No entanto foi a reabilitação promovida pelo turismo que evitou a ruína dos centros urbanos. Argumentos de um debate.

01 de Junho de 2017 às 11:31
Mário Ferreira, COE da Douro Azul, alertou para o papel do turismo na reabilitação. Bárbara Coutinho, presidente do MUDE, teme a perda da autenticidade. Inês Lourenço
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"É urgente um debate muito sério e sem preconceitos para perceber bem a relação entre a cultura, o investimento na cultura e no turismo, perceber como os dois se podem relacionar, mas são lógicas que não são exactamente as mesmas, não tratam exactamente da mesma coisa" afirma Bárbara Coutinho, presidente do MUDE-Museu de Design. Acrescenta que "estamos a viver uma fase de transição, um momento muito oportuno para debater um pouco para onde vamos e que estratégia nacional terá que ser definida para as duas coisas".

"Começa a existir a gentrificação em Lisboa e também tem a ver com a cultura ou com a sua ausência. Se se perde a autenticidade o que é que as pessoas vêm a Lisboa ver? As lojas do Bangladesh, que têm todo o direito de existir, mas quem vem a Lisboa procura comer um bom peixe, ver o artesanato e a nossa cultura popular", diz Bárbara Coutinho.

Não se pode fazer uma diabolização do turismo porque essa desertificação não tem uma relação de causa-efeito tão directa com o turismo. Mário Ferreira
CEO da Douro Azul

Mário Ferreira, que dá o exemplo do Porto, diz que "se não fosse o turismo a cidade estava a cair de podre, as casas estavam vazias e ainda há várias ruas com prédios todos entaipados. É uma ilusão. Quis fazer um hotel na baixa de Lisboa e vi muitos edifícios grandes e totalmente abandonados". Mas para Carlos Vargas isso não anula a dimensão brutal de gentrificação que está a acontecer em Lisboa. "É a implosão social da desertificação" afirma. "Mas não ia acontecer na mesma com a implosão dos edifícios?" argumenta Mário Ferreira.

"Não se pode fazer uma diabolização do turismo porque essa desertificação não tem uma relação de causa-efeito tão directa com o turismo. No Porto os prédios estavam a ruir e as pessoas a sair para os bairros sociais e a periferia" refere o CEO da Douro Azul. Adianta que o número de pessoas a viver nos centros das cidades vai aumentar, ainda que a procura seja diferente.

Neste pêndulo os centros urbanos perderam população porque as condições de vida melhoraram em outros territórios, mas hoje colocam-se novos problemas. Segundo Bárbara Coutinho, "esta situação está mudar radicalmente de uma forma muito rápida com um afastamento das pessoas do centro que tem a ver a com a falta de qualificação do espaço público, a mínima qualidade de acessos e de mobilidade". E que resulta de uma conjugação de vários factores, como os efeitos das novas leis de arrendamento e de alojamento local, "que têm, por exemplo, repercussão nas lojas históricas. Parece que o turismo é a única solução para os nossos problemas, é a única existência e estamos a ir tão rapidamente que quem é local começa a sentir-se estrangeiro na sua própria terra" conclui.

A tendência do produtor consumidor

Se para Bárbara Coutinho a cultura é para todos, para Carlos Vargas, presidente do Teatro Nacional de São Carlos, o discurso da "cultura para todos é retórico, porque um objecto sofisticado como uma ópera de Wagner, que dura cinco horas, é cantada em alemão e se não se souber a história não se percebe nada, não é para todos". É um objecto difícil, complexo, que exige competências e aprendizagem. "É um objecto que se nos opõe e por isso se distingue dos objectos de entretenimento que não se opõem" diz Carlos Vargas.

Carlos Vargas refere o paradigma que se tem imposto nas práticas culturais nos países do Norte da Europa e que tarda em chegar aos países da Europa do Sul, e com as quais o turismo teria a beneficiar. Os cidadãos não querem apenas assistir mas participar e fazer. "Eu não tenho o direito de ver ópera, eu tenho o direito de fazer ópera" resume Carlos Vargas.

Como se caminha para uma sociedade de ócio e não de emprego, pois este vai escassear, e será preciso garantir novos tipos de ocupação do tempo. É um dos desafios que se vai colocar em que o cidadão é captado para trabalhar um projecto que se pode não materializar num espectáculo, mas em que o próprio processo é em si um resultado. "Esta é uma transformação extraordinária que vamos ter de enfrentar e a que maioria das instituições culturais do sul da Europa não consegue dar resposta". Estas continuam ainda a fazer espectáculos e produtos finais em que o espectador é um sujeito passivo, mas a tendência futura passa por objectos em que o espectador é sujeito activo juntamente com os profissionais, que continuam a fazer falta. "Ainda temos um sistema muito nas mãos da corporação profissional que exclui" diz Carlos Vargas, que conclui: "o entretenimento é que é para todos, a cultura é para os que quiserem trabalhar".