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É necessário apostar na formação de especialistas

“O SNS paga mal, as condições de trabalho são precárias e há muitos médicos em formação e especialistas que abandonam os hospitais públicos”, diz Rui Sarmento e Castro, e sustenta que há uma “grande necessidade de reforçar a formação de especialistas em doenças infeciosas”.

11 de Outubro de 2021 às 14:00
José Poças faz parte do gabinete de crise para a covid do Centro Hospitalar de Setúbal DR
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"Recentemente, dois jovens médicos em formação para a especialidade de infeciologia foram aliciados por hospitais alemães para complementar a formação na Alemanha. Duplicam a remuneração e, num dos casos, vai fazer duas especialidades em simultâneo, infeciologia e medicina interna", revela Rui Sarmento e Castro, diretor de Infeciologia no Hospital de Santo António do Porto e professor universitário. O recrutamento internacional de especialistas é "mais um problema sério para o Serviço Nacional de Saúde que já tinha o sistema de saúde privado a recrutar e a remunerar melhor os profissionais de saúde. O SNS paga mal, as condições de trabalho são precárias e há muitos médicos em formação e especialistas que abandonam os hospitais públicos".

Rui Sarmento e Castro sustenta que há uma "grande necessidade de reforçar a formação de especialistas em várias áreas mas, sobretudo, em doenças infeciosas, mais infeciologistas para responder a problemas com a recente pandemia de covid-19". Sublinhou que na região Norte há vários hospitais sem infeciologistas. O diretor de Infeciologia no Hospital de Santo António do Porto defende que, como se faz nas Forças Armadas, os especialistas formados nos hospitais públicos deveriam ter um período obrigatório de ligação à função pública após a especialidade. "Se durante esse período quiserem sair têm de pagar a formação".

Rui Sarmento e Castro dirige o serviço onde foi confirmado o primeiro caso de covid-19 em Portugal, e refere que durante as quatro vagas pandémicas foi feito tudo para manter o contacto com os doentes que eram seguidos sobretudo por telefone mas também por videoconsulta. Quando abrandavam as vagas de covid-19, as consultas presenciais eram retomadas, primeiro a 25%, depois a 50% até se chegar a 100%.

"São sobretudo doentes de VIH, hepatites, não se trata de neoplasias, portanto, podem estar algum tempo sem consultas presenciais. Em caso de doença aguda eram tratados na urgência e no internamento", refere Rui Sarmento e Castro. As consultas do viajante, sobretudo para as zonas tropicais, foram as mais afetadas porque as pessoas deixaram praticamente de viajar.

Sete enfermarias

"Durante a pandemia de covid-19, no serviço que dirijo, com um grande esforço de reorganização e de mobilização de todos os seus colaboradores, não houve interrupção da atividade, tendo tal sido conseguido mediante a separação dos circuitos do ambulatório, da urgência e do internamento", afirmou José Poças, diretor do serviço de doenças infeciosas e elemento do gabinete de crise para a covid do Centro Hospitalar de Setúbal.

Durante as primeiras semanas, nem sequer os doentes queriam vir aos hospitais e por isso, as consultas passaram a ser realizadas sobretudo por telefone, e não tanto por vídeo, que "é bastante mais próxima de uma consulta presencial". Com o tempo, os próprios doentes sentiam falta das consultas presenciais. A partir de maio de 2021 as consultas voltaram a ser presenciais.

Há uma grande necessidade de reforçar a formação de especialistas em várias áreas mas, sobretudo, em doenças infeciosas. Rui Sarmento e Castro, Diretor de Infeciologia do Hospital de Santo António do Porto

Mas José Poças não esquece a experiência que foi ter o hospital mais atingido pela covid-19 na terceira vaga, em que das quatro unidades de cuidados intensivos três estavam ocupadas inteiramente com doentes de covid-19. "Um dos pavilhões pré-fabricados que estava preparado para 25 doentes, chegou a ter 125", para além dos mais de 200 doentes que chegaram a encher sete das enfermarias do Centro Hospitalar de Setúbal. Considera, contudo, que a situação pandémica não está hoje completamente "normalizada e a incerteza é ainda grande quanto ao futuro a médio e longo prazos". Recordou, no entanto, que o "impacto dos vírus respiratórios no ano passado foi, felizmente, bastante reduzido".

"As políticas de saúde, no futuro, devem caminhar no sentido da identificação mais precisa e precoce das principais infeções emergentes que comportam maior potencial impacto, pelo que terá de haver maior coordenação estratégica, para o que importa ter uma forte determinação e liderança neste complexo processo, refere José Poças.

O valor da teleconsulta

Sublinhou, também, a importância de vários exemplos, tais como o das doenças provocadas pelos vírus da imunodeficiência adquirida (HIV que é responsável pela sida), o das hepatites virais (que causam cirrose hepática e cancro do fígado), o da reemergência da velha tuberculose que tem vários cambiantes sempre que as condições de saúde pública se degradam e atingem imigrantes ilegais e trabalhadores sazonais, e, ainda, o da emergência e disseminação da resistência de certas bactérias aos antibióticos. "Há estimativas que apontam para que, a meio do presente século, poderão falecer mais pessoas deste último tipo de infeções do que de cancro". José Poças alertou ainda para a extrema necessidade da investigação científica "não se dever concentrar apenas no âmbito das doenças da causa viral, importando assim retomar o aturado estudo de novas moléculas alternativas para o tratamento das afeções de causa bacteriana".

Rui Sarmento e Castro defende a importância da teleconsulta porque "olhamos para a cara do doente e sabemos que há qualquer coisa, e no VIH e na hepatite, onde hoje há uma taxa de cura boa, que estão em tratamento ou controladas a teleconsulta poderia ter um papel para evitar vindas ao hospital". Dá ainda o exemplo dos emigrantes, que muitas vezes vem uma vez por ano para verificar se o vírus está controlado e as defesas continuam elevadas poderiam ter mais contactos.

"Os fármacos biológicos que estão a ser usados na imunologia, na oncologia e na hepatite C, por exemplo, têm custos elevados, mas como se verificou na hepatite com o tempo os preços caem" diz Rui Sarmento e Castro, avisando que "há áreas em que as empresas deixaram de fabricar medicamentos". Há 30 mil pessoas com o VIH controlado, o que implica tomar comprimidos todos os dias, mas que estão em desenvolvimento fármacos em forma de injeção para um ou dois meses de tratamento. "Provavelmente pode ser o futuro, mas o preço vai ser mais elevado."