Outros sites Medialivre
Advogados 2019
Notícia

“A advocacia vive momentos difíceis”

Setor fundamental para o Estado de direito mantém-se resiliente. Pelo menos, para já. Mas os perigos estão à espreita.

28 de Novembro de 2019 às 18:35
  • ...

Guilherme Figueiredo, bastonário da Ordem dos Advogados, explica nesta entrevista como é a atualidade da advocacia em Portugal. Fala das custas judiciais que afastam a classe média da justiça, da morosidade dos processos, do pagamento inadequado à prestação dos serviços no âmbito do apoio judiciário e muito mais.

 

Como está o setor da advocacia em Portugal neste momento? Pode fazer um pequeno balanço?

 

A advocacia é uma profissão liberal, dependente, salvo as exceções, do mercado. Portugal, como o mundo e em particular a Europa, passa tempos difíceis economicamente desde 2008, embora de forma temporal e geograficamente assimétrica. A globalização económico-financeira foi acompanhada por uma ausência da globalização social, por uma fragmentação do poder, com consequências próprias de sociedades em trânsito, com a quebra do poder de compra de uma classe média. A este pano de fundo associam-se na sua complexificação as custas judiciais, cujo valor afasta, desde logo, aquela classe média da reivindicação dos seus direitos, uma errada visão sobre a importância dos tribunais, desvalorizando-os enquanto centro de coesão social, e um acesso ao direito e aos tribunais com uma base subjetiva de acessibilidade estreita.


Acresce, ainda, a utilização das novas tecnologias, que, por vezes, criam a miragem de que a justiça se alcança, de forma rápida e indolor, fora do seu espaço próprio, negando a importância da advocacia – na sua singular interpretação e reinvenção parcial do direito, tantas vezes incompreendida e detraída. Advocacia que transporta um exercício profissional técnica e ético-deontologicamente qualificado que o tempo cinzelou com os exemplos de múltiplas e ímpares personalidades de vulto, enriquecendo-se com o testemunho pessoal das virtudes que estas lhe emprestaram, fosse através da coragem contra os poderes injustos, em tempos de chumbo, ou através de uma cidadania presente ao serviço do outro, quando este se afeiçoa à caricatura ou se dilui na multidão, esquecido na sua dignidade intrínseca pela normalização e a normalidade do quotidiano. Hoje, aspira-se, como se ar existisse, um admirável mundo novo tão enganadoramente apresentado pela OCDE, rasurando a matriz humana das profissões, professando antes a nova fé na inteligência artificial e na valia indiscutível dos subsídios e substituições que proporciona.


A advocacia vive momentos difíceis, é certo, igualmente incompreendida pela sua importância na defesa do Estado de direito, dos direitos, liberdades e garantias, que àquela estão normativamente encarregados. Mas mantém-se resiliente, pelo menos enquanto não se autoimplodir por permeável às narrativas populistas, demagógicas e, tantas vezes, ignorantes.

 

O balanço…

 

… por força da atividade da Ordem dos Advogados, através de todos os seus órgãos nacionais, regionais e locais e dos advogados na sua ação quotidiana, o balanço, em tempo de contas, continua a ser positivo.

 

Quais são os principais desafios para o futuro do setor da advocacia?

 

São vários: adequar as custas aos rendimentos das pessoas; o tempo dos processos no âmbito dos tribunais administrativos e fiscais, tribunais do comércio e dos processos criminais transformados em megaprocessos; o justo e adequado pagamento da prestação dos serviços no âmbito do apoio judiciário (para usar uma expressão que seja compreensível); uma reforma com o pressuposto de serem os tribunais a principal instância de coesão social e um dos pilares da soberania do Estado. A colocação dos meios tecnológicos ao serviço e não contra qualquer das profissões, nessa criação da "santa" aliança entre tecnologia e economia. A compreensão das razões éticas e deontológicas, da qualidade técnica profissional e da sua função enquanto terminações sensíveis dos atropelos sociais, e vanguardas da negociação entre valores, poderes e interesses que o direito sintetiza e sublima permanentemente. 
No seu dia a dia, os advogados são, devem ser, permanentes radares para deteção de todos os ataques e de todos os inimigos do Estado de direito. O advogado constitui um verdadeiro contrapoder ao serviço das liberdades individuais, ao serviço dos direitos fundamentais.

 

Quais são os desafios para o presente e o futuro da Ordem dos Advogados? E – já agora – que expetativas tem para as Eleições do Triénio 2020-2022?

 

De tecer novamente os laços esgarçados por uma pós-moderna publicização do privado, que em nome da fundamental luta contra micropoderes, formas de dominação, violências normalizadas e institucionalização de desigualdades de cariz situacional, se arrisca a subverter núcleos importantes dos direitos liberais, destruindo as esferas de intimidade, privacidade e resguardo. Sem falar no segredo, ao mesmo tempo que privatiza questões fundamentais da vida comunitária em condições de igualdade.  Ocorre, pois, a importância do advogado, da profissão advocatorial, da prática da advocacia e da sua institucionalização.
Sobre esta base, uma Ordem de Advogados, com a configuração portuguesa, há de recordar aos membros as responsabilidades que lhes competem, interpretando o interesse público na sua determinação, exigência e controlo. Mas também exprimir para a sociedade e junto de outras instâncias a perspetiva própria dos advogados, terminações sensíveis dos atropelos sociais e vanguardas da negociação entre valores, poderes e interesses que o direito sintetiza e sublima permanentemente, como acima referi.

 
Numa reconfiguração das relações internas, com promoção da igualdade de género e o apoio aos mais velhos e aos mais jovens, favorecendo a liberdade profissional sem descurar a segurança, hoje fundamental e que exige um olhar sistémico e social sobre a ação assistencial. O que requer lutas difíceis, num tempo de incompreensões, áspero para a virtude da prudência, intolerante com a complexidade, pouco atreito, senão mesmo de todo desafeito, à difícil arte dos equilíbrios, das composições, da consensualização, como da autocrítica.  

Mais notícias