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Quando a cabeça não tem juízo...

...o corpo é que paga. Esta é a conclusão de um estudo etnográfico que seguiu, durante quase 10 anos, cerca de duas dúzias de trabalhadores da banca de investimento de Wall Street, mas que serve de alerta às várias áreas da economia do conhecimento, nas quais os intervenientes, por uma aparente livre escolha, chegam a trabalhar mais de 120 horas por semana.

24 de Fevereiro de 2012 às 14:40
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Doenças físicas e do foro psicológico são inevitáveis e só agora algumas empresas – uma minoria, ainda – começam a fazer contas dos custos inerentes a ter pessoas permanentemente ligadas e voluntariamente disponíveis a qualquer hora






No início do ano, a Volkswagen, na Alemanha, chegou a um acordo com um dos sindicatos que representa parte dos seus funcionários para que o servidor de emails, ligado aos seus BlackBerrys, fosse “fechado” meia hora a seguir ao final do horário de trabalho e apenas ligado meia hora antes do início do dia seguinte. O acordo, para já, afecta apenas 1150 dos 190 mil trabalhadores do produtor de automóveis na Alemanha, mas representa um bom início para encorajar os trabalhadores a desligarem não só os telemóveis, como as cabeças, abrindo caminho para novos (e esquecidos) olhares sobre o mundo que os rodeia, famílias incluídas.

Em termos simples, a decisão da Volkswagen reflecte as evidências crescentes de casos de exaustão, relacionados com o stress e com a incapacidade dos colaboradores separarem as suas vidas profissionais das pessoais numa altura em que a sociedade que nos rodeia está ligada 24 horas por dia, sete dias por semana. O esgotamento físico e psicológico de muitos trabalhadores começa a ser encarado, por algumas empresas (muito poucas ainda, por sinal) como sinal de preocupação. Ou seja, muito gradualmente, o mundo organizacional começa a fazer contas e a perceber os custos relacionados com aqueles que fazem da sua vida o trabalho.

O que aconteceu ao presidente executivo do grupo bancário britânico Lloyds, o português António Horta-Osório, obrigado a dois meses de baixa médica por “excesso de trabalho”, teve eco na imprensa portuguesa, mas não originou qualquer tema mais aprofundado sobre esta tendência, na maior parte das vezes até descrita com orgulho pelos próprios trabalhadores, de uma disponibilidade total face aos “chefes” e às exigências do trabalho. Como referia o The New York Times a propósito de Horta-Osório, este é mais um caso de uma denominada maldição moderna – a incapacidade de desligar – com direito a sigla própria em inglês “ITSO – Inability to switch off”. O jornal norte-americano revelou que Horta-Osório tomou a decisão de “abrandar” depois de ter estado cinco noites seguidas sem dormir e o seu médico lhe ter explicado que a sua “condição física era similar a uma bateria prestes a ficar descarregada”.

A comprovar a ideia de que não existe corpo e mente que resistam a horários contínuos de trabalho, a investigadora Alexandra Michel, especialista em cultura organizacional na University of Southern California, terminou, depois de nove anos, um estudo etnográfico, no qual acompanhou, ao longo deste período, cerca de 24 profissionais da área da banca de investimento, desde a sua “estreia” na profissão, passando pela altura em que 60% dos mesmos foram forçados a “tratar os seus corpos”, na maior parte dos casos por volta do 6º ano de permanência nas funções. O estudo, que irá ser publicado no final deste mês na revista Administrative Science Quarterly, teve como principal objectivo mostrar de que forma os dois bancos de investimento em causa controlam, incluindo a socialização, os corpos dos banqueiros acompanhados, de que forma a relação destes com o seu próprio corpo evoluiu e quais as consequências organizacionais deste controlo. Sem se alongar nas questões mais técnicas e científicas do estudo, o VER resume as suas principais conclusões sendo que, destas, algumas são verdadeiramente surpreendentes.

120 horas de trabalho semanal e “estou disposto a morrer por este trabalho”
Ambição, cheques chorudos no final do mês, benefícios vários e a aspiração a uma vida de luxo no futuro… se lá chegarem. Estes são os benefícios mais visíveis para quem decide entrar no mundo louco da banca de investimento (mas não só…). Todavia, existe um preço que pode ser demasiado alto para se pagar em troca destas benesses: é uma factura, emocional e física, a que não se escapa por se trabalhar demasiado, por se viver no escritório e por se viver na obsessão de ganhar dinheiro.

O estudo de Alexandra Michel demonstra que se há quem acuse Wall Street pelas doenças actuais do sistema financeiro, são os mestres que ali trabalham que mais doenças desenvolvem. Todos os indivíduos, em graus diferentes mas sem excepção, desenvolveram algum tipo de doença física ou emocional ao longo dos nove anos de pesquisa efectuada por Michel. As mais comuns incluem a insónia crónica, problemas cardíacos diversos, distúrbios alimentares, vários tipos de dependências, alergias ou, em casos mais graves, doenças de longa duração como a doença de Crohn, a psoríase, a artrite reumatoide ou desordens na tiroide. O que não é de admirar pois, pelo menos nos três primeiros anos de trabalho, nos quais os níveis de energia ainda se mantêm elevados, estes banqueiros trabalham em média 120 horas semanais, com horários que começam às seis da manhã e se prolongam pelo menos até à meia-noite (fins de semana incluídos).

Vejamos a descrição de Michel relativamente às culturas organizacionais que encontrou nos dois grandes bancos estudados (mantidos no anonimato, tal como os sujeitos estudados. “O banco eliminou as distinções entre trabalho e lazer, ao fornecer apoio 24 horas por dia, através da oferta de comodidades diversas, que incluem creche para os filhos, estacionamento gratuito, manutenção dos carros e refeições. Alguns dos controlos (subliminares) dos bancos concentravam-se na gestão da energia dos colaboradores, com a simpática oferta de bebidas repletas de cafeína e comidas energéticas, a contratação de jovens – para os quais os níveis de energia representavam o principal critério de contratação- e sem esquecer o despedimento de funcionários de baixa performance devido ao esgotamento das suas reservas energéticas”.

Ao traçar a progressão nesta escalada organizacional, Michel começa por referir que, nos três primeiros anos – a fase por ela descrita como “período de lua-de-mel” – “os bancos beneficiaram, de forma elevada, do trabalho árduo destes trabalhadores”. Mas vale igualmente a pena reescrever as citações de alguns dos colaboradores estudados: “Estou disposto a matar-me no trabalho porque esta é uma oportunidade que surge apenas uma vez na vida”, refere um deles. Ou, “o trabalho tem a minha total prioridade. Preocupar-me-ei com a minha saúde mais tarde”. De salientar igualmente que todos estes trabalhadores percepcionam o seu trabalho árduo como algo que é imposto por eles mesmos – o denominado paradoxo da autonomia, que será melhor esclarecido ao longo deste artigo – e nunca imposto pela entidade para a qual trabalham.

O caso começa a mudar de figura a partir do 4ª ano. Apesar dos esforços dos trabalhadores, Michel refere que, a partir sensivelmente desta altura, os seus corpos tornam-se “antagónicos”. Ou seja, tal significa que quando um corpo não gosta da forma como está a ser tratado, começa a manifestar-se. No caso dos banqueiros de investimento estudados, estas manifestações começaram por incluir dores nas costas, aumento de peso, insónia e depressão, a par de “tiques embaraçosos ocasionais, como roer as unhas, esfregar o nariz ou enrolar os cabelos”. De realçar igualmente que, alguns dos mais jovens trabalhadores confessaram “as compras, as festas e o consumo de pornografia” como formas de aliviar o stress.

Sensivelmente por volta do 4º ano, os discursos começam a mudar. Cai-se na realidade e na inevitável depressão: “Sou a pessoa mais disciplinada que conheço. Mas, por vezes, parece que é o meu corpo a gerir o show e a obrigar-me a fazer coisas que abomino, as quais simplesmente não consigo parar. Estou desesperado”.

Apesar de ser nesta altura que os corpos começam a capitular, os indivíduos lutam consigo mesmos para manter o ritmo e, embora lhes comece a pesar o custo do sucesso, sentem-se absolutamente incapazes de mudar as suas vidas.

No 6º ano do estudo, os participantes acabaram por se dividir em dois grupos: cerca de 60% continuaram em “guerra” com o seu corpo, mas os 40% restantes decidiram colocar a saúde no topo das suas prioridades, o que significa tomar atenção redobrada às horas de sono, ao exercício e à dieta e estabelecendo limites à quantidade do trabalho. Um vice-presidente descrevia o seu trabalho como um pesadelo interminável, acordando todas as manhãs a desejar que o dia anterior nada mais fosse do que “um sonho mau”.

E, no final do estudo, cerca de um quinto do universo estudado, acabou por deixar a profissão. Por temerem a exposição dos resultados, os dois bancos em causa proibiram a investigadora de detalhar a dimensão exacta do grupo estudado, a taxa de desgaste e a data precisa de início do estudo.

Não é novidade nenhuma que, graças a uma enorme volatilidade inerente à profissão, a banca de investimento apresenta riscos elevados de esgotamentos físicos e psicológicos. Num outro estudo realizado há uma década, pelo psicólogo Alden Cass e com 26 correctores de bolsa, o investigador revelou que, destes, cerca de 25% reportavam elevados níveis de depressão clínica, um resultado três vezes superior à taxa média da população no geral. E, quando fez o seu estudo, o clima económico sorria para Wall Street, bem como os resultados compensatórios dos próprios banqueiros. Outros estudos indicam ainda que o excesso de trabalho tem resultados sérios para a saúde, nomeadamente no que respeita às doenças cardíacas: os riscos de se ter um ataque de coração aumentam para 67% entre os colaboradores que trabalham 11 ou mais horas por dia.

O paradoxo da autonomia
Apesar do estudo de Alexandra Michel ter-se concentrado na banca do investimento, uma das suas premissas para o iniciar apoiou-se em um dos maiores paradoxos existentes na economia do conhecimento: os denominados trabalhadores do conhecimento percepcionam os seus esforços como autónomos, apesar de existirem evidências mais do que suficientes de que estes estão bem integrados no controlo organizacional. Os trabalhadores com qualificações académicas elevadas e que prestam serviços “intelectuais” acreditam ter uma enorme autonomia no que respeita aos horários de trabalho e à forma como os utilizam, apesar de, na verdade, as suas horas serem mais uniformes do que um modelo de escolha pessoal poderia prever e muito mais elevado do que em outras épocas e culturas.

Alexandra Michel cita, no seu estudo, algumas evidências desta realidade, já comprovadas por vários investigadores. “De forma surpreendente, muitos dos profissionais com níveis académicos elevados, e que gozam de opções de emprego extremamente atractivas – grupo no qual se incluem os engenheiros de software, os consultores, os advogados e outros – optam por trabalhar pelo menos 120 horas por semana (…), estão, de forma voluntária, 24 horas por dia e sete dias por semana, electronicamente disponíveis (…), preenchem os seus relatórios de horas, ‘diminuindo-as’, resistem a diretrizes para trabalhar menos e, em nome da empresa, trabalham para além das suas capacidades físicas e psicológicas.

Uma das conclusões de Michel refere-se aos mecanismos de controlo visíveis e invisíveis da cultura organizacional em causa. Para a investigadora, os valores “abraçados” e visíveis pelos dois bancos estudados enfatizam a autonomia e a conciliação entre vida pessoal e profissional; do outro lado do espelho, contudo, os mecanismos de controlo menos visíveis transformam o excesso de horas de trabalho em algo rotineiro e, mais importante que tudo, como uma livre escolha por parte dos colaboradores.

E a extensão desta denominada autonomia é exactamente o que diferencia as organizações baseadas no conhecimento, desde os anos de 1960. Como refere Michel, estes bancos praticam a autonomia, o que significa que aos seus banqueiros é confiada a gestão das suas próprias tarefas, tal como a definição e implementação de objectivos, o que representa um tipo especial de colaborador: extremamente competente e motivado, com normas organizacionais internalizadas e com preferências fortes pela autonomia.

Para a investigadora, aos controlos cognitivos (que, de uma forma muito geral, são os mecanismos utilizados pelas organizações para “controlar” a mente dos trabalhadores) visíveis já citados – com o enfoque na autonomia e na conciliação vida-trabalho – juntam-se outros, explicitamente declarados, nomeadamente a inexistência de mapas de horas oficiais, a ausência de horários rígidos, de medidas de avaliação da produtividade, de supervisão e de registo do tempo gozado em férias. Por seu turno, aqueles que são menos visíveis e que acabam por atingir não só a mente, como também o corpo, encorajam o excesso de trabalho indiscriminado, neutralizam os objectivos que entram em conflito com este, bem como as necessidades do próprio corpo. Este tipo de mecanismos de controlo promove técnicas de auto-monitorização para que os trabalhadores se controlem a si mesmos e se ajustem às horas de trabalho. Os despedimentos por fraca performance, geralmente feitos à vista dos colegas, constituem igualmente uma “ajuda” para reforçar a consciência das acções perpetradas pelos trabalhadores. E é por isso que este tipo de organizações consegue, de forma notável, fazer com que o empregado se sinta “em casa”, oferecendo as comodidades anteriormente referidas e esbatendo as linhas entre vida pessoal e profissional.

Mais uma vez se chama a atenção para o facto de nenhum dos colaboradores estudados ter sequer tentado infligir algum tipo de responsabilidade ao seu empregador. “Eu nunca conseguiria trabalhar num sítio que me exigisse entrar às 9 da manhã e sair às 5. Quero ser eu a controlar o meu horário”, é uma declaração com eco na grande maioria dos entrevistados.
A investigadora acrescenta ainda que estes banqueiros trabalhavam as tais 120 horas semanais, mesmo quando não existia qualquer tipo de urgência para tal. E só passados vários anos é que perceberam, alguns deles, que controlos discretos, como a sua própria auto-vigilância, intensificavam os seus esforços de trabalho.

Quando o trabalho não é o que fazemos, mas o que somos



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