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IA: Da "deslocalização" de talento, ao "dilema" da regulação, até à (falta de) escala
A Europa tem talento e competências para dar cartas ao nível das tecnologias, em particular da inteligência artificial, mas tem uma série de desafios como a falta de uma "verdadeira" escala europeia. O problema essencial resume-se à ausência de uma estratégia.
Será a Europa alguma vez capaz de criar um gigante tecnológico com poder para rivalizar com a Meta, a dona do Facebook? Como diria o físico dinamarquês Neils Bohr, "é difícil fazer previsões, especialmente sobre o futuro", mas especialistas ligados à transição digital identificam o "dilema" da regulação, a falta de uma verdadeira escala, por força de uma desfragmentação dentro do próprio bloco, ou a "deslocalização" de talento como os principais obstáculos.
A presidente da Associação Portuguesa para a Inteligência Artificial (APPIA), Goreti Marreiros, concede que a pergunta, que descreve como "difícil", acaba por estar relacionada com o papel da regulamentação, em concreto, sobre "até que ponto está a travar a inovação". "Há o dilema da regulamentação: não pode ser nem de mais nem de menos. Há um conjunto de direitos que têm de ser preservados e garantidos, mas deviam existir mecanismos mais céleres de atualização da regulamentação", dado que "a tecnologia está num período de aceleração muito grande". "Era um passo importante", afirmou, durante uma intervenção no debate "Desafios à Europa: Crescimento ou barreira à competitividade", inserido na conferência "O Poder de Fazer Acontecer 2.0" do Negócios, que decorre nesta quinta-feira, em Lisboa, dedicada aos desafios da inteligência artificial.
Arlindo Oliveira, professor do Instituto Superior Técnico, que há "mais de 40 anos" se dedica a esta área, subscreveu, sinalizando anacronismos nas primeiras versões do que viria a ser o regulamento europeu sobre inteligência artificial - o AI Act -, em vigor desde 1 de agosto. "Começou a ser discutido há uns quatro anos e não referiu uma única vez modelos de linguagem, até que, entretanto, chegou o ChatGPT, e foi todo reescrito no último ano".
Para o especialista, o AI Act, descrito como "o primeiro regulamento abrangente sobre inteligência artificial no mundo, é "positivo", na medida em que "vivemos muito melhor num mundo em que a IA seja regulamentada para salvaguardar direitos" como à privacidade, ao bom nome ou ao esquecimento. Só que - assinalou - "quando regulamos armas nucleares não regulamos só nos EUA, mas em todos os países que as têm" e, neste caso, "estamos a regular a nós mesmos".
Arlindo Oliveira sublinhou, por um lado, que há "esperança" num "efeito Bruxelas" que venha a inspirar os EUA ou a China mas, por outro, que a realidade parece deixar pouco espaço para isso, por "razões opostas": Nos EUA não se pode colocar nenhum obstáculo, enquanto na China está-se a "marimbar" para os direitos e liberdades individuais. "Estamos no meio, por isso, gosto de pensar que estamos no sítio certo, onde está a virtude. Vivíamos melhor num mundo em que este regulamento fosse adotado". Para o académico, a solução para uma cooperação com os EUA pode passar por "manter canais de comunicação abertos", entre políticos, cientistas e mesmo membros da sociedade civil, mas as perspetivas não são muito otimistas.
Joana Mendonça, também do Técnico, chamou a atenção para "a forma como a Europa integra a regulação", apontando que existe uma "diferença muito significativa" no modo como os Estados-membros "estão a responder aos requisitos do IA Act, especificando que Portugal, nomeadamente por causa da sua escala e maturidade tecnológica, "não consegue ainda dar resposta", o que "pode ser limitativo de inovação".
Outro ponto "crítico" para a especialista prende-se com a cadeia de valor, na medida em que "está totalmente dominada por empresas americanas". "As pessoas estão mais despertas e com mais vontade" de aderir à IA, mas, ressalvou a académica, "não é muito claro" o impacto do AI Act no aparecimento de startups ou no "scale-up" das suas ideias, que "têm tendência a emigrar para os EUA", não só pela questão do mercado, mas também por causa de maior acesso a financiamento.
E há também mexidas dentro de portas. "Temos talento em Portugal e na Europa" para lidar com este admirável mundo novo, mas resta saber se conseguimos "alimentar" com projetos de interesse ou incentivos. "O que se tem observado no contexto da IA é que há grande apetência para o talento sair da academia, porque as empresas começam a ter incentivos também à investigação e têm parcerias com universidades. Está-se a observar deslocalização de talento para as empresas", onde pode encontrar "outras possibilidades que não têm na academia", como acesso a infraestruturas.
Para Joana Mendonça é preciso "uma estratégia tecnológica". "Fazemos muito pouco, a Europa tem feito algum trabalho mas timidamente", criticou, contrapondo, por exemplo, com os EUA que está a estudar as tecnologias críticas. "Em Portugal há trabalho a fazer. Onde queremos investir? Onde queremos apostar? Temos de olhar para estas tecnologias do ponto de vista estratégico", argumentou.
Para Pedro Siza Vieira, ex-ministro da Economia e da Transição Digital, o problema da Europa é que parece haver "incapacidade para mudanças" quando não é confrontada com crises, como a das dívinas soberanas, o que não é compatível com "o momento difícil" que vivemos hoje, razão pela qual deve pôr em marcha as recomendações "claras" do relatório Draghi que passam, por exemplo, pela "eliminação de barreiras que impedem as empresas de poderem verdadeiramente funcionar no mercado comum".
Para esse momento difícil contribui, pelo menos em parte, o que se passa do outro lado do Atlântico: "O vencedor, avassalador, das eleições americanas, com um mandato muito claro do povo americano, tem uma visão claramente distinta da forma de organização política dos EUA e do mundo, que é verdadeiramente revolucionária", e em que, entre outros, "não acredita no comércio livre", sendo "o mais forte nome da tendência isolacionista americana, o que coloca a Europa numa situação em que tem de adotar essas recomendações muito mais depressa".
No que toca à regulamentação, falando designadamente do Regulamento dos Serviços Digitais, Pedro Siza Vieira sinalizou que "no setor tecnológico as empresas americanas cresceram muito rapidamente num espaço de vazio" a esse nível, e "muito depressa o mundo ficou dependente do que eles tinham para oferecer", pelo que "tentar meter estas 'bestas' dentro de baias é um tema difícil e pode ser complicado", sustentou o jurista, lembrando que "há muitas coisas em que precisamos dos americanos", já que "têm uma capacidade tecnológica que vai ser muito difícil a Europa adquirir nos próximos anos".
A questão da escala
Para o antigo governante, a escala europeia "ainda não existe" e atacar este problema da competitividade tecnológica tem de ser à escala europeia - e não nacional, em que "cada um tem as suas regras e mecanismos de proteção" - só que há "toda uma fragmentação" , isto mesmo sem falar em talento e financiamento.
E, neste sentido, apontou: "Podemos ter vantagens nos próximos anos neste jogo", referindo-se, em particular, à capacidade, por exemplo, que a Península Ibérica tem ao nível da oferta de "energia limpa, abundante e barata que o resto da Europa não tem", um ponto fundamental no âmbito do armazenamento e tratamento de dados, e que tem atraído inclusive investimento.
José Queirós de Almeida, CEO da Greenvolt Comunidades, também salientou o "papel fundamental" de Portugal ao nível da energia, mas também o da Europa, no caso concreto dos desafios que a guerra da Ucrânia lhe trouxe ligados à dependência do gás russo. "Foi extraordinário, poucas pessoas acreditavam que a Europa ia reagir. "Portugal tem tido um papel fundamental" ao nível da energia, mas que tendemos a focar "nos maus exemplos", quando há "boas histórias para contar".
No entanto, o gestor discorda no que diz respeito à escala, contrapondo com o caso da Estónia - que tem uma dezena de unicórnios e uma população de 1,3 milhões de habitantes - para sustentar que tudo depende "como estamos organizamos e onde pomos o dinheiro público", ou seja, das "condições" que forem criadas. "A Bolt, que é da Estónia, concorre com a Uber, que é americana. Lá nunca se diz que o mercado é pequeno. Devemos desafiarmo-nos um bocadinho. Não está na altura de pensarmos grande?", questionou.