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Guardiã de fortuna não se deixa seduzir por unicórnios
Quando o magnata do retalho Abilio Diniz convidou Flavia Almeida para trabalhar numa das suas empresas, há cerca de 15 anos, ela recusou.
Flavia Almeida já tinha uma carreira sólida como sócia na McKinsey & Co. Vários anos depois, voltou a dizer não a Abilio Diniz antes de finalmente aceitar uma proposta em 2013. Flavia Almeida passou a trabalhar na empresa familiar do empresário, a Península Participações. A responsável lembra que Diniz lhe disse: "Então, Flavia Almeida, está pronta para ser feliz?"
Se a felicidade pode ser medida pela ascensão na carreira, Flavia Almeida está exultante hoje. Flavia Almeida, que assumiu o cargo de presidente da Península em agosto, é a primeira mulher a comandar uma grande "family office" no Brasil. A Península gere 3,7 mil milhões de dólares de Diniz e da sua família, cuja fortuna foi construída no negócio de retalho fundado pelo pai do empresário.
Flavia Almeida, de 52 anos, tem uma longa carreira a trabalhar junto dos principais decisores nas empresas, o que a ajudou a conquistar a confiança de Diniz, de 82 anos. "Gerir é colocar as pessoas certas nos lugares certos", afirmou Diniz numa mensagem por WhatsApp. "Flavia alcançou a posição de presidente porque é muito competente, preparada e sólida na sua liderança."
Um dos empreendedores mais polémicos do Brasil e autor de duas autobiografias best-sellers, que são um misto de autoajuda e estratégia de gestão, Diniz esteve no centro de duas grandes batalhas corporativas. Uma delas foi com Jean-Charles Naouri, do Groupe Casino, uma disputa que terminou em 2013 quando Diniz perdeu o controlo da rede de supermercados Pão de Açúcar, fundada pelo pai em 1948. Após um embate com investidores da processadora de alimentos BRF, Diniz renunciou à presidência do conselho da empresa em 2018.
Flavia Almeida, que fez mestrado na Harvard Business School, tenta minimizar a reputação de chefe temperamental de Diniz. "O Abilio é uma pessoa que se reinventou muito ao longo do tempo, e isso é uma das coisas que eu mais admiro nele", revelou numa entrevista no escritório da Península, em São Paulo. "Mesmo na BRF, que foi uma crise na qual eu participei ativamente e ajudei a solucionar, eu vi o Abilio a tentar ser um conciliador. Que bom que chegámos a um consenso sobre uma pessoa para substituir o presidente, e que bom que estamos a fazer com que dê certo."
Embora Diniz não seja mais presidente do conselho de administração da BRF, Flavia Almeida ainda tem um assento representando a Península, o sexto maior acionista, com uma participação de 3,9%, segundo dados compilados pela Bloomberg. Ela também se senta ao lado de Diniz no conselho do Carrefour SA, no qual a Península é o terceiro maior acionista, segundo a retalhista francesa.
Além da BRF e do Carrefour, os investimentos da Península incluem um vasto portefólio de imóveis comerciais, uma fazenda de produtos orgânicos gerida por um dos filhos de Diniz e uma participação no Mind Lab, empresa especializada em tecnologia educacional. A Península também tem uma parceria com Jorge Paulo Lemann, o homem mais rico do Brasil, com uma participação na rede Benjamin a Padaria.
"Flavia tem uma visão de longo prazo de uma companhia, uma visão estratégica; não é guiada por resultados de curto prazo", diz Patricia Moraes, responsável pela empresa de private equity da família Trajano, que controla a retalhista Magazine Luiza.
Patricia conheceu Flavia através de amigos em comum na McKinsey. Flavia Almeida, que trabalhou na McKinsey de 1989 a 2003, foi a primeira mulher a tornar-se sócia da consultora na América do Sul. Aproximou-se de Patricia quando foi nomeada diretora da Fundação Bienal de São Paulo. Naquela altura, o marido de Patricia estava a investir em pinturas e esculturas. Um dos traços que Patricia destaca em Flavia é o seu esforço para promover a diversidade e os direitos das mulheres.
Nascida em São Paulo, Flavia Almeida iniciou a carreira como "trainee" na McKinsey. Depois de mais de uma década, assumiu o cargo de presidente na Participações Morro Vermelho, holding da família Camargo Corrêa, que acumulou fortuna no ramo da construção [comprou a Cimpor em Portugal]. "Os projetos que eu mais gostei na minha vida foram quando trabalhei com o dono do projeto, com a pessoa que ia decidir", diz.
Desde 2004, Flavia Almeida já ocupou assentos em conselhos de administração de mais de 20 empresas de capital aberto ou fechado, em muitas delas como a primeira ou a única mulher nesse papel. Não é de surpreender que a desigualdade salarial entre homens e mulheres e piadas sexistas estejam entre os desafios enfrentados por ela numa indústria dominada por homens.
Flavia Almeida admite que houve situações nas quais, como a única mulher numa reunião, se sentiu desrespeitada a ponto de precisar de ir à casa de banho para se recompor. Até isso pode ser um desafio, diz Flavia Almeida: num dos primeiros conselhos de administração dos quais participou, não havia casa de banho feminina.
A gestora diz que tenta reagir com sentido de humor, diplomacia e muito trabalho. "Eu vim de uma família na qual estudar e trabalhar era uma ética importante", afirma Flavia Almeida. Casada há 29 anos, diz que não teria conseguido criar os dois filhos sem a ajuda do marido, Rodrigo Ferreira Leite, que é publicitário.
Na Península, Flavia Almeida ajudou a criar uma equipa na qual mais da metade dos 164 funcionários são mulheres. Mas opõe-se a cotas que determinam uma percentual de mulheres num conselho de administração. "Uma mulher deve ter um cargo importante numa empresa porque merece", salienta Flavia Almeida. "Acredito na meritocracia."
Flavia Almeida, que fala fluentemente francês, espanhol, inglês e português, entrou na Península com a missão de estruturar o negócio de investimentos diretos, que incluem private equity. A gestora diz que está aberta a novas tecnologias, mas olha as startups com cautela. "A Península olha para a inovação, sim quer participar na aceleração de crescimento, mas com responsabilidade", diz Flavia Almeida. Embora a tecnologia esteja a mudar muitos setores, "isso não quer dizer que duas pessoas com uma ideia e um PowerPoint" sejam uma startup legítima, afirma.
Flavia Almeida diz que vê uma bolha na qual alguns dos maiores investidores do mundo estão a despejar milhares de milhões de dólares. "Temos um nível de unicórnios totalmente desproporcional para o tamanho da nossa economia", avalia. "O dinheiro que gerimos aqui é o dinheiro que os nossos acionistas suaram muito para ganhar. Não dá para a brincarmos com bolhas."
Flavia Almeida tem evitado inúmeras startups de tecnologia na região, que caíram na graça de investidores como o SoftBank Group Corp. e o Goldman Sachs Group Inc. Por outro lado, a Península não abre mão das suas participações na BRF e no Carrefour.
Flavia Almeida não se sente tentada a seguir a multidão, apesar dos 2,6 mil milhões de dólares em venture capital investidos em startups latino-americanas no primeiro semestre de 2019. O valor é o triplo do investido no mesmo período do ano anterior, segundo a Latin American Private Equity & Venture Capital Association.
O último investimento em private equity da Península ocorreu há três anos, quando comprou uma participação no site de comércio eletrónico de vinho Wine.com.br. "Alguns fundos têm sido muito arrojados, à beira da irresponsabilidade", diz Flavia Almeida. "Olhar para um negócio e entender se tem viabilidade económica é fundamental."
O SoftBank investiu mais de 3,5 mil milhões de dólares em novas empresas de tecnologia na América Latina desde 2017, segundo dados compilados pela Bloomberg. Goldman Sachs, Sequoia Capital e Tencent Holdings também estão a investir em startups na região.
Nos últimos cinco anos, o Brasil oscilou entre recessão e baixo crescimento económico devido à turbulência política marcada por um impeachment, um governo transitório de dois anos e a chegada de Jair Bolsonaro à presidência numa eleição profundamente dividida. A Península vendeu algumas participações neste período.
Os desinvestimentos incluíram a empresa de educação Anima Holding, e a Península reduziu a sua posição no Atacadão, unidade do Carrefour no Brasil. Ao mesmo tempo, a "family Office" aumentou a participação na operação global do Carrefour. Houve especulações de que Diniz queria assumir o controlo da empresa francesa, mas isso nunca aconteceu.
A Península gere os seus próprios fundos multimercado e avalia se vai abrir captação a investidores externos devido ao boom da indústria no Brasil. A family office também investe em fundos oferecidos por gestoras globais. O Instituto Península, braço social da família, investe em iniciativas focadas na educação e no desporto, paixões da filha de Diniz, Ana Maria, e do seu filho João Paulo.
Flavia Almeida diz que a família Diniz quer "construir uma agenda de investimentos positivos" para o Brasil. "Era muito mais fácil pegar nesse dinheiro, de uma família como esta, e pôr em gestores de fundos em Nova Iorque, em meia dúzia de caras", afirma. "Mas a família está comprometida em transformar o Brasil através do empreendedorismo."
(Texto original: Gatekeeper of a Brazilian Fortune Isn’t Letting Unicorns Inside)