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Como fica a Europa depois do referendo britânico?
Desde 1972, houve 57 referendos sobre a Europa. Esta é a segunda vez que os britânicos o fazem. Mas esta é uma vez muito diferente – e, por isso, uma primeira vez. Como vai ser o dia seguinte?
É a segunda vez que os britânicos fazem um referendo sobre a Europa. A primeira foi em 1975, escassos dois anos após a adesão, quando os protestos dos sindicatos à criação do mercado único - curiosamente, a parte do acervo comunitário que hoje mais querem conservar, incluindo os que querem o "Brexit" - forçou uma consulta directa. Ganhou o "sim", com 67,2%, e a integração europeia seguiu o seu trilho, com o Reino Unido sempre com um pé de fora.
Outros países tiveram, entretanto, a oportunidade de se pronunciar sobre etapas e projectos da União – embora nunca sobre a sua pertença a ela - em referendos que, em boa parte dos casos, resultaram em respostas negativas. Yves Bertoncini, director do Instituto Jacques Delors fez as contas e chegou à conclusão que, desde 1972, houve 57 referendos relacionados com desenvolvimentos da UE.
Foi o caso na Dinamarca (que ficou de fora do euro e disse em referendo querer manter-se de fora da integração europeia em matéria de cooperação judicial e policial), na Irlanda (onde há a obrigação constitucional de referendar todos os tratados internacionais), na Holanda e em França, países onde foi chumbado o projecto de dotar a UE de uma Constituição própria, que foi depois transformada num texto menos ambicioso que resultou no Tratado de Lisboa, em vigor desde Dezembro de 2009. A Grécia fez há um ano um referendo sobre o memorando do terceiro resgate, a Hungria anunciou que fará em breve um sobre as quotas de refugiados, e a Holanda referendou em Abril último o acordo de associação entre a UE e a Ucrânia - poucos foram votar (participação de apenas 32%) mas 61% dos que o fizeram foi para dizer "não" a uma aproximação vista por muitos como uma afronta desnecessária a Moscovo.
Alguns analistas desvalorizam o risco de o referendo britânico gerar uma "referendomania" porque, afinal, ela já anda por aí. Porém, o que está agora directamente em jogo é continuidade de um país na UE - não uma consulta sobre uma política ou opção concreta da qual se possam extrapolar conclusões mais profundas e perenes. Pelo que, independentemente do resultado do referendo de hoje, é relativamente seguro antecipar que, tendo os britânicos testado a possibilidade de sair da União Europeia – que só ficou formalmente aberta com o Tratado de Lisboa – por todo o lado partidos eurocépticos vão pressionar ainda mais para que se realizem igualmente consultas populares nos seus países.
Há já petições nesse sentido na Holanda, na Finlândia e na Suécia. Em França, Marine Le Pen, que tem boas chances de passar à segunda volta nas eleições presidenciais do próximo ano como candidata da Frente Nacional, também já acenou com um referendo. E se a UE pode sobreviver sem o Reino Unido, é muitíssimo duvidoso que faça sequer sentido sem a França.
E se os britânicos disserem "não"?
A onda mais imediata e potencialmente severa será função da reacção dos mercados financeiros e dos seus efeitos nas decisões dos agentes económicos: empresas, famílias e Estado. E será o Reino Unido a sofrê-la numa primeira instância. "A elevada incerteza deverá ser mais fortemente repercutida no investimento, com as empresas a adiar decisões até que obtenham maior clareza sobre o que poderão ser os acordos pós-UE do Reino Unido", escrevia nesta semana o HSBC.
Numa nota enviada aos seus clientes, o maior banco do mundo com sede na City londrina antecipa que, em resultado de um "Brexit", a taxa de crescimento será 1% a 1,5% mais baixa em 2017 do que em caso de "Bremain", que a libra desvalorizará até 15% face ao dólar e que, em resultado de uma moeda mais fraca que torna mais caras as importações, se assista a uma subida da taxa de inflação de 3% a 4,5%.
Ao contrário do que próprio tem afirmado, o HSBC antecipa ainda a demissão a breve trecho do primeiro-ministro David Cameron e um Partido Conservador mergulhado numa crise interna profunda, rachado pelas clivagens em torno da Europa, não obstante ter há pouco mais de um ano obtido nas urnas a primeira maioria em 23 anos.
Com o pedido de divórcio entregue em Bruxelas, nada mudará no imediato. Até que se conclua um acordo de saída, o que pode demorar até dois anos e incluir um novo acordo de co-habitação com a UE (tipo Suíça ou Noruega, por exemplo), o casamento mantém-se, mas o Reino Unido passa a "dormir na sala" - sem direito a voto sobre as decisões que lhe respeitem. "O membro do Conselho Europeu e do Conselho que representa o Estado-Membro que pretende retirar-se da União não participa nas deliberações nem nas decisões do Conselho Europeu e do Conselho que lhe digam respeito", lê-se no artigo 50 do Tratado de Lisboa.
E o resto da Europa? A economia pode também sofrer – mas pouco. O HSBC estima um corte de duas décimas nas previsões de crescimento do PIB em 2016 e 2017. Em contrapartida, o "contágio político pode ser significativamente mais prejudicial".
"No referendo no Reino Unido, os principais argumentos da campanha do ‘Leave’ resumem-se essencialmente a questões sobre a imigração e soberania, que são preocupações de grande parte do eleitorado da União Europeia."
Em muitos países europeus, onde a extrema-direita e extrema-esquerda estão a ganhar terreno com o seu discurso anti-europeu e anti-globalização, como é o caso da Finlândia, da Suécia, da Holanda, da Grécia e de França, estas forças poderão ganhar ainda mais adeptos e aumentar o clima de incerteza sobre a sustentabilidade do próprio projecto de integração europeia.
A saída da sua segunda maior economia, membro central da NATO e – last but not least - do país cujo idioma é, de facto, a língua oficial de trabalho e de nenhum outro Estado-membro abrirá uma caixa de Pandora na UE com consequências muito difíceis de prever. Até porque é muito distinta a interpretação que alguns fazem das consequências de um "Brexit" e das janelas que ele abre ou fecha.
Se entre os que apoiam a saída do Reino Unido estão claramente os que defendem o regresso dos centros de decisão aos Estados-Nação e os que querem pôr travões à globalização, em especial à livre circulação de trabalhadores (não necessariamente à de mercadorias, serviços ou capitais), o facto é que, entre os apoiantes do Brexit, se podem encontrar também os que pensam exactamente o oposto: os que vêem na saída do Reino Unido uma oportunidade de ouro para avançar para uma genuína federação europeia - os verdadeiros federalistas.
Nos meios académicos, há correntes de pensamento assumidas segundo as quais o projecto europeu só pode sobreviver se deixar pelo caminho os que têm estado com um pé dentro e outro fora (caso do Reino Unido, que não é membro do euro, nem de Schengen, nem da união bancária, por exemplo) mas também aqueles, que participando nos projectos mais ambiciosos, se mostram relutantes em cumprir as regras acordadas. Quem fala de núcleo duro, de refundação da UE em torno de "coligações de vontades" tem muitas vezes em mente a necessidade de um processo de "depuração" e a convicção de que a saída da Grécia do euro não é uma questão de "se" mas de "quando", assim como a saída do espaço Schengen e de cooperação judicial e policial dos países de Visegrado, os mais relutantes em receber os muitos milhares de refugiados que continuam a chegar à Europa.
No cruzamento entre estas duas dinâmicas, o maior ponto de interrogação será porventura perceber para que lado a França vai tender. Com eleições presidenciais marcadas para 2017, será que Paris vai dificultar ao máximo um novo contrato com o Reino Unido para que o "Brexit" possa servir de vacina contra os eurocépticos? Sendo tradicionalmente um país soberanista (os verdadeiros federalistas sempre moraram acima do Reno), será que um François Hollande enfraquecido ousará, ao mesmo tempo, dar um passo em frente na aliança franco-alemã para tentar contrariar a ascensão de Marine Le Pen? E em que áreas? Segurança – com forças policiais conjuntas, por exemplo, para lutar contra o terrorismo? Fiscalidade – avançando com o velho projecto de uma IRC comum para as empresas alemães e francesas?
A UE é lenta, porque as democracias são lentas, e nada se faz em pouco tempo. Mas nos próximos meses terá de encontrar algumas boas respostas para contrariar a espiral de incerteza que será desencadeada por um "Brexit".
E se os britânicos disserem "sim"?
Há mexidas ao virar da esquina, porque entrará em vigor o acordo fechado pelos líderes europeus em Fevereiro para ajudar David Cameron a vencer o referendo. Isso significa, desde logo, que os trabalhadores dos demais países da UE que cheguem a partir de agora ao Reino Unido terão de descontar até quatro anos antes de poder aceder a "prestações não-contributivas ligadas ao trabalho", de que são exemplo subsídios de alojamento. À partida, esse travão só pode estar accionado durante sete anos, até 2023.
Ficou ainda decidido que será produzida legislação para dar opção de escolha aos Estados sobre o valor das prestações familiares quando, por exemplo, se está perante um polaco a trabalhar no Reino Unido mas cujos filhos permaneceram na Polónia. Nessa situação, as prestações familiares pagas pelo Estado social britânico poderão ser "indexadas" às condições do país onde os filhos residem.
Esse acordo de Fevereiro foi feito à medida das preocupações britânicas, mas todos os Estados-membros podem aplicar as suas disposições, o que quer dizer que muitos outros países podem vir a replicar esta "excepcionalidade" – mais uma – britânica.
Ainda decorrente desse pacto com Londres, a Comissão prometeu que produzirá em breve legislação para desincentivar os chamados casamentos de conveniência, "excluindo do âmbito de aplicação dos direitos de livre circulação os nacionais de países terceiros que não tenham tido residência legal num Estado-membro antes de se casarem com um cidadão da União ou que casem com um cidadão da União só depois de esse cidadão ter fixado residência no Estado-membro de acolhimento".
Bruxelas prometeu ainda legislar sobre expulsões por razões de segurança ou ordem públicas. O que, para já, ficou estabelecido é que "por razões de natureza preventiva" e tendo em conta o "comportamento no passado", os Estados-membros podem "tomar medidas" em relação a uma pessoa que constitua uma "ameaça actual" para a ordem ou para a segurança públicas, "mesmo na ausência de uma condenação penal anterior".
E nesse acordo esclarece-se algo que muitas vezes é esquecido no plano mediático: que o direito de uma pessoa economicamente inactiva residir noutro país depende, já hoje e nos termos do direito da UE, da circunstância de "essa pessoa dispor de recursos suficientes para si própria e para os membros da sua família, a fim de não se tornar uma sobrecarga para o regime de segurança social do Estado-membro de acolhimento, e de dispor de uma cobertura extensa de seguro de doença".