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Gonçalo Ribeiro Telles distinguido com o “Nobel” da Arquitectura Paisagista

O arquitecto paisagista Gonçalo Ribeiro Telles foi hoje distinguido com o “Nobel” da Arquitectura Paisagista, o Prémio Sir Geoffrey Jellicoe, pela Federação Internacional dos Arquitectos Paisagistas (IFLA). Recorde a entrevista concedida ao Negócios em Abril de 2009

10 de Abril de 2013 às 13:41
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Recordamos aqui a entrevista de Anabela Mota Ribeiro a Gonçalo Ribeiro Telles, em Abril de 2009, intitulada: “A minha vida interior é a cidade tudo o resto é a paisagem.”

 

É um monárquico que viveu sob o signo da República. “Eu não me importo nada de servir a República. Tenho bilhete de identidade, servi, fui deputado”.

É um arquitecto paisagista que fala de jardins como se falasse do paraíso.

 

“Na Bíblia, quando se fala do jardim, é um lugar concreto, circunscrito. Os hebreus não andavam à procura do jardim, andavam à procura do Éden, o vale fértil onde estava o jardim. Depois vem a casa do Homem. A certa altura a casa do Homem é tão grande que começa a ser necessário o jardim público, o parque, a ligação de parques e de jardins, os espaços verdes. Não chega, porque 84% da população mundial vai viver para as cidades, que ficam desmesuradas, ou então são todas torres, o que é desumano. Temos de criar um Éden para esta cidade, e temos que criar dentro do Éden o paraíso, que é o jardim”. Um idealista? Um realista. Empenhou-me em fazer um mundo mais próximo daquele onde gostaria de viver.  

 

É um homem de outro tempo. Do tempo em que se brincava na Avenida da Liberdade. A cidade era outra. “Eu tinha uma tia que morava numa casa que hoje é um hotel de luxo, na Rua de Santa Marta. Essa tia não tinha filhos e tinha um sobrinho, que era o meu avô; vendeu o palácio e fez uma casa na Avenida da Liberdade (que já foi abaixo). A minha avó, por sua vez, vinha de uma casa de São Paulo, ao Cais do Sodré; depois de casar, ocupou a casa na Avenida da Liberdade. Trouxe com ela o irmão coxo, que [se instalou] nas águas-furtadas. Vivia sozinho com uma criada, o marido da criada, que era carteiro, e os livros. O resto da família vivia por andares, no prédio; eu vivia no 3º”. Visitava-o muito.

 

Gonçalo Ribeiro Telles é um contador de histórias. Passei uma tarde com ele a ouvir histórias. É esta a sua história.  

 

Para o entender, devemos começar por falar do seu tio-avô, Joaquim Cardoso Gonçalves?

Como é que você sabe do meu tio Joaquim? É uma pessoa fundamental na minha vida. Era irmão da minha avó. Uma particularidade: tinha tido uma paralisia infantil e ficou aleijado de um braço e de uma perna. Era uma pessoa com muitas preocupações, e a preocupação menor era ser aleijado. Dedicou uma parte importante da vida aos deficientes. O grande amigo dele era o António Sérgio. Tinha o curso correspondente à Economia actual, o curso superior de Comércio; trabalhou na Junta de Comércio Público, a antiga Caixa Geral dos Depósitos. Mas tinha outra vida, que interessava mais do que esta: era intelectual e dedicou-se a escrever sobre iluminuras. Fez trabalhos muito interessantes sobre os Livros de Horas.

 

O que são Livros de Horas?

São os calendários do Renascimento e da Idade Média, onde cada folha do mês representa uma cena: a cena que mais marca esse mês. Os das casas reais eram iluminados por grandes artistas. Para um miúdo como eu, era fascinante ver essas gravuras.

 

Cervantes também era maneta, e escreveu o Quixote. A vida do seu tio-avô foi menos marcada pela deficiência do que poderia ter sido. O que quer dizer muito da têmpera deste homem… Um homem é muito mais do que o corpo que o transporta.

Ah, com certeza. [Levanta-se e vai buscar um livro] Talvez isto lhe dê uma visão [do trabalho que desenvolveu]. É o principal estudo que ele fez. Mostro-lhe para que perceba qual era a atmosfera.

 

Porque é que se interessava pelas iluminuras?

Porque tinham bonecos [risos]. E porque o meu tio me explicava o que é que representavam. O meu tio fez uma descoberta sobre o Apocalipse de Lorvão, e comparou os cavaleiros (do Apocalipse do Lorvão) com os cavaleiros da gravura do Dürer. A Peste vem com a foice da morte, a Guerra vem com um espadalhão, a Fome vem com um tipo muito esquelético; o quarto vem com uma balança.

 

A Justiça? Como pode ser?

Toda a gente julgou que era a Justiça; o meu tio disse que era a Injustiça. Como é que a Justiça vinha como um cavaleiro da maldade, a cavalgar ao lado da Fome, da Peste e da Guerra? O que vem é a injustiça social. Porque era com uma balança que se pagava o salário dos trabalhadores; as moedas não se contavam, pesavam-se. A balança desequilibrada é a injustiça social, é o dinheiro mal pago ou roubado ao trabalhador.

 

O que é que há em comum entre todas as gravuras?

A cidade ao fundo.

 

Ou seja, uma relação entre o campo e a cidade, a natureza e o espaço construído.

Há uma identidade, uma coisa não vive sem a outra. A cidade extravasou por todo o lado. Onde é que está agora – como estava nas iluminuras – a actividade agrícola? Isso é uma das causas desta crise.

 

O desequilíbrio?

Sim. Destruiu-se uma unidade que havia. Nas iluminuras, a cidade está sempre presente na actividade agrícola. Na Catedral de Siena, nos frescos que estão à entrada, há uma representação de uma cidade: dentro de umas muralhas, as portas estão abertas e há uma comunicação permanente entre o campo e a cidade, com gente a entrar, a sair, e o campo organizado; do outro lado, está a mesma cidade com as portas fechadas e cá fora não há nada. Na primeira está o título “O Bom Governo”, na segunda está “O Mau Governo”.

 

Tudo o que teve peso na sua vida estava enunciado aí. A sua vida fez-se nessa oposição, nesse diálogo.

Eu tinha duas possibilidades: ou ia para Arquitectura ou para Agronomia. Eu desenhava bem, e ainda desenho – dizem. Mas para entrar em Arquitectura, tinha de desenhar a cabeça de um romano, o Vitélio. O Vitélio era muito gordo…, não tinha graça nenhuma. “Então vou para Agronomia”. Aí dá-se um golpe de sorte: no dia em que entrei para Agronomia, vinha da Alemanha montar o curso de Arquitectura Paisagística o [Francisco] Caldeira Cabral. Juntei as duas coisas.

 

Tem à sua volta, nesta sala, os Livros de Horas onde aprendeu com o seu tio-avô, os soldadinhos com que brincou, os frescos nas paredes. São amostras do passado. Conte mais deste mundo que era o seu.

As pessoas do campo que eu tinha, como o meu pai e os meus tios, eram juristas que depois abandonavam a profissão e ficavam nas terras como proprietários. Ou então eram oficiais do exército. O meu pai era oficial do exército e era veterinário; foi quem comprou os garranos em Trás-os-Montes para servirem na tropa, como depois serviram as mulas. Este lado marcou-me muito. A visão que eu tinha da cidade era a Avenida da Liberdade, onde brincava à tarde com outros meninos e meninas, principalmente no Verão. Os táxis estavam parados no meio da faixa de rodagem, todos enfileirados por ali fora. Uma figura principal, que gostava muito de ver, era o polícia sinaleiro. Por outro lado, tinha uma influência muito grande, da parte da minha mãe e do meu tio-avô, do mar. Isto é uma confusão tremenda...

 

Entre a terra e o mar.

Está aqui o barómetro [enorme, preso na parede]. Herdei-o de um tio, o chamado Capitão Menino. Foi um fulano que saiu de casa com 16 ou 17 anos para ir navegar. O barómetro é do Brigue Florinda.

 

Florinda era quem?

Era uma das minhas tias. O barco tinha de ter o mesmo nome.

 

Como é que se chamava a sua mãe?

Gertrudes Guilhermina, um nome horrível, não se pode arranjar pior! É uma figura importantíssima. Era filha única, e como filha única vivia bem.

 

Provinha do mesmo estrato social do seu pai?

A mesma coisa. Era inteligente, gostava de ir ao São Carlos. Não lia muito, mas ouvia o meu tio, e estava naquele ambiente. Não se abria com facilidade. Era capaz de gostar muito de uma criança porque tinha uns olhos bonitos ou porque era magrinha.

 

Parece, a partir dessa descrição, uma personagem de um romance de Agustina. Espirituosa e com um carácter caprichoso.

Sim, sim. Quando as cozinheiras tinham umas grandes cabeleiras elas pedia-lhes para lhes cortar o cabelo, só porque achava graça. E aqui na rua havia uma loja de hortaliças, onde viviam uns miúdos, coitados, que tinham pouco; ela adorava vê-los na cama. Achava aquilo um quadro espantoso. E depois auxiliava-os.

 

Auxiliava-os, a esses e outros, por via do catolicismo?

Ela não se organizava com ninguém, era independente. Essas da Agustina também devem ser… Com um mundo próprio, e pouca gente lá entrava. Não tinha grandes amigas. A minha mãe gostava das pessoas humildes. Talvez fosse para ela um drama ainda viver numa sociedade em que uns eram humildes e outros não.

 

Era afectuosa?

Para mim era muito afectuosa. Gostava mais de rapazes, dos sobrinhos, do que das raparigas. Achava-as impertinentes. Coisa espantosa: na família do meu pai, a primeira menina que nasceu, ao fim de 70 anos, foi uma filha minha.  

 

Uma casa de varões.

Só havia uma tia. Vivíamos na Rua das Pretas e o meu pai, volta e meia, saía a cavalo e subia a Avenida [da Liberdade] com um impedido atrás, também a cavalo.

 

O seu pai era uma encarnação destes soldadinhos com que brincava e que agora tem em exposição?

Não. Era um militar sui generis. Dedicava-se mais à veterinária e aos cavalos do que à tropa. Acabou por sair tenente, nem a capitão chegou.

 

Era suposto que fosse jurista, veterinário, proprietário?

Para proprietário, ninguém me educou!, felizmente. Em relação ao que queria fazer, sempre tinha um objectivo: polícia sinaleiro, oficial de marinha por causa do barómetro, depois agrónomo por causa de Coruche, depois intelectual e arqueólogo como o meu tio-avô. Quis ser tudo ao mesmo tempo, ou antes, numa catapulta sucessiva. Até que caí, já com 22 ou 23 anos na arquitectura da paisagem.

 

A arquitectura paisagística é um dos eixos essenciais da sua vida. O outro é a causa cívica, seja no Centro Nacional de Cultura, seja, já em democracia, como ministro – para citar apenas dois exemplos. A política também estava em sua casa?

O meu tio-avô era um “liberalão” de todo o tamanho, a minha mãe não era uma “liberalona”, mas não podia com o Salazar. Quando as primas todas assinavam aqueles papéis a favor do Salazar, recusava-se a assinar. Quando chegaram lá com o papel das Mães Agradecidas, não assinou.

 

E o seu pai?

O meu pai acabou muito cedo em termos de poder físico e intelectual, com aquilo que é hoje conhecido como Alzheimer, (ou coisa parecida). Fechou-se muito cedo. Mas era monárquico, como toda a família. Não era salazarista, e não era tão acintoso como a minha mãe. A minha avó, quando já não estava assim muito bem do miolo [risos], ainda esperava que chegasse o Paiva Couceiro com os monárquicos do norte no dia tantos, às tantas horas; se não chegavam, ficava muito triste.

 

Eles falavam, por exemplo, da morte de D. Carlos?

A minha família de Coruche, do lado do meu pai, era toda D. Carlos. A família da minha mãe tinha uma costela miguelista. Os miguelistas tinham duas facções, os absolutistas e os realistas. Não podiam uns com os outros. A família da minha mãe era realista e a do meu pai era monárquica, mas liberal. Isto hoje não tem interesse nenhum…

 

Na altura, entusiasmava-os muito essas discussões, essas disputas?

Sim. Em casa discutia-se muito.

 

Se Portugal tivesse entrado na Segunda Guerra, uma vez que nasceu em 1922, podia ter sido mobilizado. Era um mancebo entre 39 e 45.

Ah, lá ia eu.

 

O que queria perguntar é se esse fantasma pairou sobre a sua família e sobre a sua vida?

Não. Você, agora, é que está a levantá-lo. O meu pai é que esteve mobilizado, em 1918, para ir para a Primeira Guerra. Não foi porque a guerra acabou. Eu nasci em 22. Eles já tinham tido uma criança que morreu, depois vim eu e depois o meu irmão.

 

A coragem, a tenacidade e a frontalidade são coisas que se notam em toda a sua intervenção pública. Gostava de perceber de onde vêm.

Eu tive medos terríveis.

 

Em que situações teve medos terríveis?

Por exemplo, vou comemorar, com todos os que ainda são vivos e que assinaram aquele papel da Igreja do Rato, a ida à Assembleia da República. Entrámos dois, eu e outro, não me lembro quem foi o outro. Queríamos entregar aquilo à pessoa mais importante da Assembleia. Percorremos os corredores todos, um empregado mandava-nos para o outro, e para o outro. Até que estávamos outra vez na rua e tínhamos ainda a carta na mão... Então, resolvemos deixá-la ficar na recepção.

 

Era medo de quê? Ir preso?

Bem, ir preso não era muito brilhante, naquela altura...

 

Mas esse não é um gesto de medo, e esse gesto é de afrontamento.

É medo, medinhos, de fugir. Às vezes também fujo. Todos temos uma costela de cobarde – terrível. Quem é que faz de juiz das situações? Eu estava metido no barulho. Tinha medo de ir preso por aquilo que se contava dos presos. Também tinha medo do que pensava a família.

 

O que pensaria a família aristocrática de um filho revolucionário…

Não era fácil, não tendo uma estirpe de revolucionário. Tinha receio da família numerosa, onde havia todos os leques possíveis e imaginários; não era da minha mãe. Portanto, não era medo, era a chatice. Houve uma época em que, para os comunistas, era um furioso tipo contrário a eles, e para os contrários a eles eu era um furioso comunista! [riso]  

 

Como é que tresmalhou, se posso dizer assim, e se meteu com os revolucionários?

Desde pequenino, desde muito pequeno, o meu tio tinha um espírito muito liberal. Quando fui para a universidade, apanhei logo o grupo que deu origem ao Centro Nacional de Cultura.

 

Com quem é que se dava, quem eram os seus amigos e os seus interlocutores?

O [Francisco] Sousa Tavares, o mentor daquela gente, o Fernando Amado, do teatro, o Afonso Botelho, também muito amigo e que escreveu umas coisas, o Gastão Cunha Ferreira, o Henrique Ruas, o João Camossa, que deu em anarquista. (Conhece a história? Morreu há relativamente pouco tempo. Vivia andrajosamente na rua).

 

O que havia em comum nesse grupo?

Foi um grupo de monárquicos extraviados da causa monárquica, que tinham apanhado uma lambuzadela do António Sardinha e daquela gente do liberalismo lusitano. Não aceitavam a causa monárquica porque era muito conservadora, porque estava feita com o Salazar. Isso é que deu origem ao CNC e às primeiras listas de monárquicos independentes, que foram escondidas pela imprensa porque não convinha ao Salazar aparecer gente com esse cariz na oposição. E deu origem a que o Congresso Democrático de Aveiro fosse Democrático. Era para ser Congresso Republicano, mas para esta gente poder entrar, mudou.

 

Foi ao Congresso?

Não consegui lá chegar por cobardia minha. Podia ter ido a correr mais depressa para Aveiro e não fui. Não fui por causa da família. Mas não tive medo porque mandei a papelada toda. Podia ter sido preso na mesma.

 

É uma geração. Foi um tempo. De transição.

A oposição era republicana, jacobina, e alguma parte ainda é. Vivia ainda toda a problemática da Primeira República. Aqueles que eram monárquicos, mas que não queriam nada com o Estado Novo, consideravam a Segunda República uma Primeira República. Ou se confundiam com esse jacobinismo, o que não queriam nem podiam, ou eram atirados para a zona de apoio ao Estado Novo. Assim nasceu todo este grupo de que estou a falar, que mete católicos, contra a situação. Daí a entrega dessa carta dos monárquicos e da Igreja do Rato.

 

Quando vai entregar essa carta, teme a reacção da família?

Não, a carta não, nem o conteúdo da carta. O que havia era as ausências perigosas que eu fazia…

 

O que é isso das “ausência perigosas”?

Ir para onde não devia ir! Estivemos metidos em muitas revoluções anteriores ao 25 de Abril. Mas isso é uma coisa que não se conta.

 

Porque é que não se pode contar?

Tem que ser com mais gente. Tenho medo de já ter transformado a realidade a que assisti, e em que estive, num imaginário meu. Coisas em que pensei na época e que nunca realizei, hoje aparecem como se tivessem existido. Não quero isso de maneira nenhuma! Já vi dois ou três casos em que isso sucedeu e não quero que suceda comigo. Não quero morrer a dizer: “Afinal, não foi bem aquilo que disse”. E afinal, disse porque o que era da memória estava transformado em imaginário.

 

Quando é que percebeu isso? Que é um modo de perguntar quando é que começou a envelhecer.

Exactamente. Lá para os 78, 79.

 

Aconteceu alguma coisa de especial?

Não. Mas sente-se perfeitamente. Começamos a não saber: “Mas isso teria sido assim mesmo ou fui eu que imaginei?, como é que isto surge?”. Há coisas que perdem a racionalidade, e a gente começa a duvidar se existiram.

 

Receou que se abatesse sobre si a doença que se abateu sobre o seu pai, e ficar com períodos de ausência?

Tenho medo. É preciso muito cuidado com a memória – não esteja eu já a viver noutra [dimensão]. Acho que todas as pessoas passam por isso.

 

Isso aconteceu há quase 10 anos, tem agora 87. Está óptimo.

Ainda estou bom, ainda posso dizer-lhe isto! A primeira condição para não estar bem era dizer-lhe tudo com imagens.

 

Vamos voltar aos anos da oposição, nomeadamente a 1958. Decide apoiar a candidatura de Humberto Delgado. Nessa altura, o CNC funcionava como uma plataforma de liberdade, uma congregação de gente desigual que não se encaixava em nenhuma das suas casas de origem.

Era um espaço de liberdade, de encontro. Havia gente católica da Igreja do Rato, o Tareco [Francisco Sousa Tavares], o Nuno Vaz Pinto, a Sophia de Mello Breyner, o Alçada Baptista.

 

O Alçada, quando dirigia a Seara Nova, publicou-lhe um artigo que ficou famoso: “O homem perante a paisagem”.

O artigo é muito bera! Já escrevi muito melhor sobre a paisagem. O Delgado: lembro-me de ir com um grupo a casa dele e convidá-lo para ir connosco. E ele disse-nos que não, porque já estava comprometido com uma gente do Porto! Isto antes de se ter candidatado. Mas tinha muito respeito por nós, e para o mostrar tinha lá um quadro a óleo comprado em Londres, na Feira da Ladra: o da Dona Catarina de Bragança!

 

Essa veia monárquica, era uma coisa inflamada e central na sua vida, ou era só um dos seus aspectos?

Era central. Por duas coisas: a minha família, o meu pai, o meu avô, sofreram bastante. A República chateou muita gente. Não lhes roubaram nada mas tratavam-nos mal e com pouca consideração. Aquilo foi um sarilho de liberdade, só visto e percebido. Portanto, venho com essa leitura: de horror. Conhece a Ilustração Portuguesa?, sabe o que fizeram aos padres jesuítas?

 

Não. Mas a sua cara transfigurou-se ao falar disso.

Raparam-lhes a cabeça! Mediram-nos de alto a baixo, os homens de bata, do Hospital Júlio de Matos, para saber porque é que eles eram jesuítas! Consideravam uma anormalidade ser jesuíta. Está a ver a lata que hoje era precisa para chegar ao pé de um padre, metê-lo num hospital e medi-lo para ver por que é padre… A irracionalidade tinha chegado a este ponto. Eu vivia muito isso e contra isso.

 

Deu-se com jesuítas?

Sim, o padre Eugénio Jalhay, que era arqueólogo. O meu tio, como tinha interesse pela arqueologia, tratava muito com o padre Jalhay.

 

Ou seja, foi educado num mundo em que se odiavam os excessos da Primeira República.

Eu vivia muito contra esse pecado da Primeira República. Não a aceitava porque tinha conhecido familiarmente tudo o que tinha sucedido.

 

Que relação tem, e foi tendo, com a religião e com o catolicismo? É convicto?

Pretendo ser, porque ninguém é o que é. Tive uma grande influência familiar e do padre Jalhay. Talvez a pessoa menos religiosa fosse o meu tio. Fui apoiante do bispo do Porto. Escrevi um livrinho sobre a reforma agrária que lhe é dedicado, [a propósito da] pastoral sobre “A Miséria Imerecida do Nosso Mundo Rural”. Ele depois foi corrido pelo Salazar.

 

Estava a dizer que pretendia ser profundamente católico.

E por isso fui presidente da Juventude Agrária Católica antes do 25 de Abril. Tive lá umas coisas engraçadas e outras em que nos estendemos ao comprido. Havia a Juventude Agrária, para os tipos do campo, e havia a Juventude Universitária, [de onde saiu] o Nuno Portas, o Teotónio Pereira e parte do grupo da Capela do Rato. Há outra coisa: andei a ter lições e a procurar saber filosofia. Achei que era necessário.

 

Que questões é que o inquietavam?

Tudo.

 

Quem somos, o que fazemos, o problema do Homem?

Porque é que somos, porque estamos aqui.

 

Apoiava-se na religião para responder a isso, ou, pelo menos, para se sentir mais amparado?

Não há ninguém com quem isto não dê na religião. Tem de dar. A pessoa não tem é certezas. Agora, procuras, tem de as fazer. Todos fazem.

 

E dúvidas, teve muitas? E crises?

Toda a gente tem crises, toda a gente tem dúvidas, todos os dias. O conhecimento absorve sempre a dúvida. Como é que há certeza sem haver dúvida? Claro, quando uma pessoa se sente completamente esclarecida, o melhor é ir-se embora, é a altura de partir…

 

Foi um homem sempre muito gregário; a partir de que momento é que se sentiu autónomo, até em relação ao seu tio e aquela forma de tutoria?

Foi na universidade. Mas não é uma coisa que diga: “Amanhã vou ser diferente”. Uma pessoa, a certa altura, descobre-se de outra maneira.

 

Quais foram as grandes questões políticas que discutiu? Que filosoficamente e na prática o ocuparam.

Liberdade, igualdade, fraternidade, mutualismo, solidariedade: tudo isso é uma coisa linda. Mas quando nos impingem a cidadania, a coisa complica-se… O que é o cidadão? Para mim, não é só ter direitos e deveres: é ter que servir. Foi aí que compreendi melhor o problema da monarquia. Porque o cidadão fica-se na Revolução Francesa, não vai ao serviço. Os ingleses têm a ideia do serviço, que nós perdemos. Têm o serviço do rei, da rainha – é indiscutível. É uma condição. Não é para estar, é para ser. Através de uma simbologia e de um veículo humano.

 

O veículo humano é o rei e a rainha?

É. Inventou-se agora uma palavra para substituir o serviço, mas falta-lhe a humanização: é solidariedade. O Cavaco todos os dias a atira para o ar! [riso]

 

Quando é que despertou para as questões ecológicas?

Houve um período em que fui muito a África, porque fiz grande parte da urbanização de Nova Lisboa. Tinha lá um amigo que me integrou nas visões ecológicas, para além da arquitectura paisagística: o Eduardo Cruz de Carvalho. Ele teve de sair do país e foi parar a Los Angeles. O seu conhecimento de África era espantoso; tudo o resto que se tinha, era um conhecimento cinematográfico, do Tarzan, dos escravos e dos pretos com um caldeirão. Ele foi caçado pela universidade de LA onde foi dar a disciplina de África, e de onde trouxe, para Portugal, a Ecologia.

 

Quando teve poder na política, além de ser Ministro de Estado, foi ministro de uma coisa chamada Qualidade de Vida. É uma designação bonita. Deu-se bem, gostou de ter poder?

Dei, dei. Porque achei que estava lá para servir qualquer coisa. Ainda bem que lá estive.

 

Foi Pinto Balsemão que o convidou?

Não, foi o Sá Carneiro. Mas não foi para ministro.

 

Como é que se conheceram?

Foi antes do 25 de Abril. Uma vez, quando eu funcionava neste grupo do Fernando Amaro e do Sousa Tavares, lembrei-me de conquistar o Sá Carneiro! Ele já estava na Assembleia Nacional e resolvi ter uma conversa muito séria no Grémio Literário. Fiquei amigo dele. Ele sabia perfeitamente como eu pensava. Foi por isso que o PPM entrou, mais tarde, na AD.

 

Por causa dessa relação entre os dois?

Mas não entrei eu para ministro! Fiquei de fora. Inteligentemente. O Sá Carneiro tinha toda a razão de só me deixar ir como deputado… Eu não era muito maleável em termos políticos, para além de certos limites. Fez bem porque tinha que avançar num sentido e eu era um trambolho ao lado. Eu já tinha sido Secretário de Estado e sub-Secretário de Estado.

 

Foi logo no primeiro governo provisório que foi sub-Secretário de Estado.

Foi o Nuno Portas, o Teotónio Pereira e essa gente que me chamou. Eu era considerado mais à esquerda do que eles! Por isso é que alguns Capitães do 25 de Abril me chamaram para o governo provisório. E quando vieram os governos constitucionais, não fiquei no governo com a AD, fiquei como deputado.

 

No rescaldo da revolução, foram os Capitães de Abril que o chamaram. Já não era um monárquico perigoso cujo campo não estava bem definido… Como é que era olhado?

Era olhado como uma pessoa que conhecia muito bem os problemas da Ecologia.  

 

Mais tarde, Balsemão vai buscá-lo.

E eu fui. Fui porque naquela altura era jogar tudo por tudo – sentia-se isso perfeitamente. Foi quando joguei a RAN [Reserva Agrícola Nacional], a REN [Reserva Ecológica Nacional] e os Planos Regionais de Ordenamento do Território, o Ordenamento do Território. Antes, não se tinha jogado [nada disto], nem se tinha jogado a conservação da natureza, os parques naturais, a defesa do solo vivo, etc. Em força, [a criação da] reserva agrícola e da reserva ecológica [avançaram] com o Balsemão.

 

Tudo isso que criou e implementou aprendeu com quem?

Com o Caldeira Cabral, com o Cruz de Carvalho. Outras áreas, mais específicas, aprendi com pessoas específicas. E com o café.

 

Com as conversas de café?

Exactamente, com os meus colegas do café.

 

Que cafés é que frequentavam?

Havia muita conversa de café onde essas coisas se debatiam muito. Eram conversas muito importantes que daí alargavam para o CNC. O Martinho do Rossio era mais virado para as agronomias e para os solos e a Brasileira do Chiado era mais para as Artes, para as Agronomias. Eu andava de um lado para o outro.

 

E tinha tempo para tudo.

Às cinco horas fechava a loja e abriam os cafés!

 

Ao mesmo tempo tinha a sua vida pessoal. Casou com que idade?

Casei tarde. Em 1952, com 29 anos. Porque é que casei tarde?

Não sei, tinha muito que fazer.

 

Olhando para o seu percurso, temos a ideia de que é um homem do espaço exterior, e não é só por causa da ligação à Ecologia ou aos jardins; é também por causa da intervenção cívica. Como se tudo se passasse no espaço social. Por isso queria saber que importância teve a construção de um espaço interior e da família.

Teve muita importância. É como nas iluminuras: a actividade agrícola está à volta da cidade. A minha vida interior é a cidade, tudo à volta é a paisagem.

 

O espaço interior é o da cidade, que é o espaço das ideias?

Das ideias, da família, até de coisas de que estou a fazer um esforço enorme para me libertar, que é dos objectos. Às vezes, o espaço interior também é um espaço de objectos. Os soldadinhos, o barómetro, muitos livros. Isso é o espaço interior em que as pessoas vivem. Por vezes, é terrível.

 

Porquê?

Porque é uma obsessão. Quando tiver a minha idade percebe que os objectos vão perdendo valor. Ou antes, vão adquirindo um valor imaginário. Suponha que um objecto me foi roubado: o objecto continua a existir nesse imaginário. É um penduricalho, é muito chato. Passam a ser fantasmas.

 

O que é que resiste? E o que é que na sua vida tem valor?

Os objectos só têm valor se tiverem uma história. O que não é objecto só tem valor se serviu para alguma coisa. Preciso de mandar a história passear! Só que ainda não fui capaz de mandar a história passear… O que é um objecto com história? Responder a isso já é uma coisa mais complicada. O que é a essência de um objecto com história?

 

E da sua intervenção pública?

Importam as que serviram. A REN, por exemplo. Vanglorio-me muito com isso, mas não quero andar a apregoar que fui eu: foi o Café Martinho e uma data de gente que meti a fazer estas coisas.

 

Profissionalmente, entre as coisas que fez e de que mais se orgulha, estão também os jardins da Gulbenkian? É uma obra em que se pensa imediatamente quando se pensa no seu trabalho enquanto arquitecto paisagista.

É uma obra minha e do António Viana Barreto. A parte de terraços e plataformas, que é muito importante, é mais dele do que minha. Depois há a parte exterior, que é pensada pelos dois e por quem fez a classificação do que lá estava antes de se construir a Fundação. Acho bem. Mas há outra de que gosto muito e que pouca gente conhece: a Capela de São Jerónimo, em Belém.

 

Tem alguma planta de que goste especialmente, com que sinta uma especial identificação?

Há uma planta que caracteriza o país em termos científicos; são os carvalhos; e nas zonas húmidas, os salgueiros. Mas planta emblemática, para mim, é a laranja. Se for a uma quinta no norte verifica que tem a mata com carvalho, tem a horta e o pomar de caroço. Se for a uma quinta no sul tem a horta, tem a mata, e uma coisa que não varia: as laranjas.

 

Mas isso é a planta do país. Queria perguntar se há alguma de que o senhor goste especialmente.

Não. Mas num texto que fiz para os Caminhos de Ferro, descrevo uma viagem que fazia com nove, dez anos a partir da estação do Rossio para a terra do meu pai, Coruche. Era uma viagem de quatro horas, actualmente são meia dúzia de quilómetros. Passava pelo vale do Tejo, parava num intercâmbio para o sul, aí apanhava outro comboio, atravessava o Tejo e entrava num montado de sobro. Faço a descrição do que é que me dizia esse montado de sobro. Primeiro, os braços dos sobreiros, depois, a profundidade e escuridão que se adivinhava quando se vinha de comboio. Ao mesmo tempo aparecia uma luzinha ao longe; era uma casa que existia e de que só se via a luz. Fiquei sempre com uma admiração ao montado de sobro.

 

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