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Luis Sepúlveda: Quero que os meus livros sejam um grande exercício de memória

O escritor Luis Sepúlveda faleceu esta quinta-feira em Espanha, vítima de coronavírus. Veja em baixo a entrevista que deu ao Negócios em 2017.

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Ninguém consegue subtrair-se à perseguição da sua própria sombra, escreve Luis Sepúlveda no livro "O Fim da História", romance que revisita um bloco de acontecimentos do século XX, da Rússia de Trótski ao Chile de Pinochet. E vai muito mais além. A sombra de Sepúlveda persegue-o. O passado vive dentro dele. Activista político chileno nos tempos da Guerra Fria, foi guarda pessoal de Salvador Allende e presenciou a História a acontecer. Escapou da morte, percorreu a América Latina, ingressou nas fileiras sandinistas, morou na Alemanha, trabalhou como motorista de autocarros, foi correspondente de guerra em Angola. Autor de obras como "O Velho que Lia Romances de Amor", o escritor continua a encontrar-se com os sobreviventes do GAP, o Grupo de Amigos Pessoais de Allende, e em cada encontro a História aviva-se. É essa memória que Luis Sepúlveda quer registar nos seus escritos.


No Chile, o Maio de 68 aconteceu antes de França. Pelas ruas andavam estudantes com cartazes e sonhos. Luis Sepúlveda e Carmen Yáñez conheceram-se nesses tempos de entusiasmo. Partilhavam o mesmo herói, Salvador Allende, partilharam um filho, Carlos Lenin. Casaram. Depois do golpe de Estado de 1973 e da morte de Allende, vieram os anos de ditadura de Augusto Pinochet. Luis e Carmen choraram os companheiros mortos. Ele foi detido, ela também. Perderam­-se um do outro. Ele julgava-a morta. Mas ela sobreviveu à tortura no centro de detenção Villa Grimaldi e à lixeira onde foi depositada junto de corpos sem vida. Encontram-se anos depois, com vidas refeitas. Ele na Alemanha, ela na Suécia. Voltaram a casar. Moram em Gijón, nas Astúrias, com o mar bem perto. Luis Sepúlveda e Carmen Yáñez são dois protagonistas da História da segunda metade do século XX. E a essência desta biografia de amor e de resistência está no último romance do escritor chileno, "O Fim da História", apresentado na Feira do Livro em Lisboa.

 

Este livro é dedicado à sua esposa, Carmen Yáñez, "Sonia", a prisioneira 824, e a todas e todos os que passaram pelo inferno de Villa Grimaldi, "o reino do cossaco". É uma homenagem à resistência e também ao amor?

Sim, é um pouco um acto de justiça e um acto de amor, um reconhecimento e uma homenagem a muitas pessoas que estiveram nesse campo terrível a que chamaram Villa Grimaldi. Muitos companheiros nossos passaram por lá, alguns saíram vivos, outros não. É um reconhecimento muito justo. Passaram os anos, passaram-se muitas coisas, mas conservou-se algo muito bonito e valioso, que é a integridade moral. Muitos homens permaneceram íntegros, fortes, firmes. Outros não. Outros converteram-se em defensores do sistema inumano. Mas aqueles que pessoalmente me interessam são os que conservaram a integridade moral. Sempre quis contar as últimas horas de Allende do ponto de vista dos companheiros que estavam no Palácio de La Moneda, mas é um projecto muito difícil porque pode sempre ser abordado de diferentes maneiras – há um filme que eu considero muito mau, "El último día de Salvador Allende", acho que não representa quem realmente foi Allende e não mostra como foram dramáticos aqueles últimos dias, aquelas últimas horas. Sempre quis contar aquilo que de facto aconteceu e este romance é uma parte disso.

 

Houve um pacto de silêncio muito forte no Chile para silenciar a História.
Este livro é um acto de justiça e um acto de amor.

 

Ainda há muito por contar? De cada vez que vai ao Chile, reúne-se com o GAP [Grupo de Amigos Pessoais] de Allende. Falam de filhos e de netos, mas há sempre um detalhe esquecido do passado que aparece nas conversas, como disse numa entrevista.

O passado vive sempre dentro de nós. O passado é uma parte de nós. O passado é como a sombra que temos, que nos acompanha, e não podemos escapar dessa sombra. Eu tentei ir contando sempre, de forma gradual, as coisas que me pareciam mais significativas, colocando-as sempre ao serviço de uma história. Quando escrevo um romance, coloco sempre uma dose deste passado porque sinto que serve a narrativa e, interessa-me, sobretudo, que os meus livros sejam um grande exercício de memória, um registo de memória, porque esta é uma memória que não deve ser esquecida.

 

A memória aviva-se nesses encontros.

Sim. Eu e as pessoas da minha geração vivemos uma época muito interessante, que foi a segunda metade do século XX. Aconteceu sermos protagonistas dos grandes eixos que moviam a humanidade – a guerra do Vietname, os processos de descolonização em África, o Movimento dos Países Não Alinhados (MNA), a revolução cubana, os projectos políticos emergentes na América Latina, o Maio de 68, a libertação da mulher, a libertação sexual, a libertação política da imaginação… A minha geração foi protagonista destes movimentos e isso proporcionou-nos uma memória muito rica. Pessoas como eu são uma soma de muitas influências, de muitas coisas que aconteceram no mundo, e isso determinou a nossa forma de pensar e actuar. Tínhamos uma vida muito rica, muito intensa. Hoje, em dez segundos, entro em contacto com uma pessoa que vive na Austrália. Naquela altura, entrar em contacto com alguém para avançar com uma acção política era difícil e era arriscado. Tudo isto faz parte de uma memória que eu não quero que se perca e por isso insisto em escrever sobre estes assuntos.

 

Este seu "O Fim da História" interliga vários países durante vários anos. É a História do século XX que aqui está.

Neste livro estão intrincadas as histórias que vão desde a revolução russa até ao ano 2010. E trata-se também um pouco de responder a uma pergunta que tem que ver com a casualidade. Por exemplo, sempre me questionei se o dirigente revolucionário russo Trótski, ao perdoar a vida ao chefe dos cossacos Piotr Nikolaevich Krasnov, terá pensado que essa acção iria arruinar a vida dos chilenos 70 anos mais tarde, porque o neto desse cossaco chegou ao Chile e foi um dos maiores torturadores – Miguel Krassnoff foi brigadeiro do Exército do Chile, participou no golpe de Estado de 1973 e foi condenado por violações dos direitos humanos durante o regime de Augusto Pinochet. A História está cheia de armadilhas, está cheia de coisas inexplicáveis. Juntando-as, vai-se tecendo uma espécie de filigrana que une a própria História.

 

A sua geração vivia e morria por ideais. Vivia nas ruas. Onde estão os ideais hoje?

Sim, calhou-nos uma intensa vida social, que acontecia na rua, que acontecia no trabalho, no sindicato, na universidade, e tudo estava relacionado. No Chile, fizemos um Maio de 1968 antes dos franceses. Começámos em 1967 e o nosso 68 durou os anos de 67, 68, 69 até 1970. Durante mais de três anos tivemos as universidades ocupadas pelos estudantes, mas continuaram a funcionar, e funcionavam melhor, tornaram-se mais democráticas. Esse processo que começou com os estudantes, em pouco tempo passou a ser apoiado pelos professores, pelos operários, pelas gentes do campo, pelos pescadores. Fomos capazes de acreditar numa mudança democrática, pacífica e limpa. Tentámos fazê-lo. O nosso grande erro foi não termos dado conta de que, neste tempo da Guerra Fria, para os Estados Unidos, o exemplo chileno era mais perigoso do que a revolução cubana. Porque era democrático, era aberto, era plural. Se a nossa ideia de sociedade triunfasse no Chile, iria contagiar os países vizinhos. Era uma possibilidade real. E por isso é que o efeito do golpe militar de 1973 foi tão terrível. Vou tentando contar tudo isto através das personagens da literatura.

 

A Europa tem-se convertido num continente de diletantes da política, e eu não confio em diletantes. 

 

"Estes homens foram abandonados, tornados órfãos", esquecidos dentro e fora do país, escreve diversas vezes no livro.

Sim, sofreram abandonos sistemáticos. Primeiro, sentiram uma grande dificuldade em continuar com a sua vida no exílio. Ao mesmo tempo, assistiam a grandes mudanças no mundo – caiu o muro de Berlim, terminou a União Soviética, impôs-se uma única ordem mundial. Muita gente sentiu-se, de facto, abandonada, sem um referente, sem uma orientação. Para muitos homens, o partido era a orientação mais lógica. No caso de outros chilenos, a situação foi ainda mais dura. Durante os anos de 1982, 83, 84, 85, um grupo forte de jovens fez a luta armada contra a ditadura, não lhe deu um único minuto de paz, muitos morreram e isso obrigou o ditador a negociar uma saída pacífica. Mas, depois, aqueles que lutaram e obrigaram o ditador a negociar não estiveram presentes nas negociações. Foram esquecidos. Chegou uma nova democracia em 1990 e uma grande parte da esquerda tradicional chilena tinha mudado, os socialistas chilenos tinham-se convertido em neoliberais e deixou de existir uma diferença de projecto político entre o centro-esquerda e a direita, o que gerou uma grande apatia social. As pessoas sentiram-se de novo abandonadas, estabeleceram-se novas formas de repressão, desta vez com uma cara democrática. Não havia tortura, mas havia repressão económica... No Chile, as pessoas sentem-se abandonadas mas, ao mesmo tempo, resistem e organizam-se. As eleições presidenciais são em Novembro e, possivelmente, a situação vai mudar, porque há gente nova a aparecer.

 

Mas o empresário Sebastián Piñera pode voltar a ser Presidente, e a aliança entre democratas-cristãos e socialistas quebrou-se. As esquerdas estão desunidas.

Mas há jovens inteligentes e criativos que não estão de acordo com aquilo que se está a passar e estão a organizar-se. Não pode haver sociedades democráticas quando existem ditaduras económicas. Não pode existir uma sociedade democrática quando o Estado é insignificante. Os actuais governantes do Chile acreditam que a democracia consiste em votar a cada quatro anos e isso não chega para ser democracia. A Presidente Michelle Bachelet – filha de Alberto Bachelet, general da força aérea leal a Allende – é uma mulher honesta, conheço-a há muitos anos, mas o seu governo tem sido uma desilusão enorme. Não tem existido vontade política para mudar aquilo que os cidadãos querem que realmente mude.

 

Voltando aos homens que foram abandonados e à questão da memória histórica, o Luis Sepúlveda fala num "pacto de honra" para impedir que fossem encontrados os corpos de milhares de desaparecidos. Fala também numa cumplicidade entre governantes e sociedade civil para, de alguma forma, silenciar a História do Chile.

Sim, houve um pacto de silêncio muito forte, primeiro entre militares, depois entre militares e civis, que também foram responsáveis pelo golpe militar de 1973 e que enriqueceram com a ditadura. Houve um pacto de silêncio entre militares, civis e magistrados. São pactos que se vão rompendo muito levemente, pela pressão popular. Por exemplo, se não fosse o juiz espanhol Baltasar Garzón, os julgamentos dos militares no Chile nunca teriam começado. Agora temos altos oficiais condenados a muitos anos de prisão, mas não temos nenhum civil preso. Os civis estão na impunidade absoluta. Esse tal pacto de silêncio demora muito tempo a romper.

 

Um pacto que terá ido além-fronteiras. No livro, a sua personagem diz que, no fundo, a União Soviética nunca chegou a gostar de Allende…

Allende tinha uma ideia muito particular do socialismo, considerava-o como uma grande expressão de liberdade e que não poderia sustentar-se em nenhuma espécie de ditadura. Ele era muito claro quando dizia: aqui, no Chile, vamos caminhar para o socialismo, mas sem ditadura proletária, vamos fazer um caminho democrático, aberto. Assistimos às primeiras possibilidades (deste socialismo) nos três anos de governo de Allende, havia um entusiasmo popular em tudo aquilo que se fazia. Na União Soviética, não foram particularmente solidários connosco, mas Allende aguentou-se firme, fazendo o seu próprio caminho, sem tutela. Os chineses também tentaram que tivéssemos a influência do Presidente Mao Tsé-Tung, e Allende foi muito claro e disse que não, disse sempre que nós tínhamos um caminho próprio. Ele estava mais próximo de Tito, da Jugoslávia. Nós entendíamos que não poderia haver uma revolução sem liberdade de expressão, sem liberdade de imprensa. Não entendíamos uma sociedade que tinha um único jornal, um jornal do partido, isso parecia-nos algo grosseiro, grotesco.

 

Aquilo que hoje divide as esquerdas não é o mesmo que as dividia nos anos 70 e 80. Sobretudo porque agora quase não existem esquerdas.
Há excepções, como Portugal, onde as esquerdas foram inteligentes. 

 

Fala nos "gloriosos anos do socialismo desaparecidos na sarjeta da História". Foram mesmo gloriosos? Ou foram-no porque duraram pouco?

As esquerdas tiveram sempre divisões que são muito curiosas e muito especiais. E, no Chile, as esquerdas, inclusivamente os sectores da ultra-esquerda, uniram-se por um projecto próprio. Entendemos que tínhamos uma particularidade como país que permitia darmo-nos ao luxo de fazer uma mudança pacífica para o socialismo. Militei numa facção de ultra-esquerda – eu e os meus companheiros participámos nas guerrilhas da Nicarágua, por exemplo, porque achávamos que era a única forma de oposição à ditadura, mas no Chile a situação era diferente. Tínhamos uma História diferente, éramos um país diferente. No outro dia, falava com um jornalista que me dizia que o Chile dos anos 70 era como a Suíça da América Latina. E isso é verdade.

 

O socialismo é uma possibilidade real?

É uma possibilidade real. Evidentemente que o grande fundamento para a ideia de socialismo é uma utopia. Também é claro que a utopia tem uma mecânica muito própria, quando nos aproximamos da utopia, esta automaticamente propõe­-nos coisas mais ricas e afasta-se um pouco mais, e isso obriga-nos a ser mais dinâmicos. Nunca chegamos a alcançar a utopia, mas cada vez nos aproximamos mais… Mas aquilo que hoje divide as esquerdas não é o mesmo que as dividia  nos anos 70 e nos anos 80. Sobretudo porque agora quase não existem esquerdas.

 

E o que é ou deve ser a esquerda?

A esquerda tem de ser fundamentalmente muito inteligente para estabelecer alternativas reais, práticas. As esquerdas têm de ser sempre pragmáticas. As esquerdas têm de ter um perfil próprio, não podem ir à sombra, não podem ir atrás de outros perfis, e isso quase não existe, salvo honrosas excepções, como é o caso de Portugal. Aqui, as esquerdas são inteligentes. É evidente que existem grandes diferenças entre os socialistas e os comunistas portugueses e as pessoas do Bloco de Esquerda. Mas, num momento terrível da História contemporânea, conseguiram unir-se por um objectivo supremo, a vida dos portugueses.

 

Mas por quanto tempo?

Isso não importa.

 

Não importa?

Não. O importante é que hoje estão de acordo e possivelmente esse acordo renova-se ou aparece algo diferente, mas o fundamental é que um dia conseguiram chegar a um acordo. Acredito que este pragmatismo inteligente é um modelo a seguir na Europa e talvez em alguns países da América. Esta semana, o primeiro-ministro português vai estar no Chile e há gente jovem que espera ouvi-lo com grande interesse para perceber como foi possível esse entendimento. 

 

Se Salvador Allende fosse vivo, como olharia hoje para a América do Sul? Para o que se passa, por exemplo, em países como o Brasil, onde Lula da Silva foi visto como grande herói socialista e hoje responde em tribunal por crimes de corrupção? 

Depois da queda do muro de Berlim, impôs-se uma espécie de nova ordem internacional. Uma só ideia se impõe, a ideia do capitalismo, e logo que o capitalismo se renova a si próprio, e faz a revolução neoliberal, começa a gerar pobreza nos próprios países capitalistas. A esquerda mundial não teve resposta alguma, não teve tempo para gerar uma alternativa real. O Presidente Lula encetou uma série de medidas para reduzir a pobreza. Mas, ao mesmo tempo, o Brasil integrava as chamadas economias emergentes. Preocupar-se com o desenvolvimento dessa economia e, simultaneamente, não esquecer o objectivo político de reduzir a pobreza era uma contradição, que foi mal solucionada. O Brasil é mais do que um país, é quase um continente, onde coexiste a modernidade mais absoluta com gente que vive no século XV, e era muito difícil explicar à maioria dos brasileiros aquilo que estava a acontecer. Faltou esforço pedagógico. Evidentemente, nem Lula nem Dilma Rousseff tiveram tempo para esse esforço de pedagogia. Nem desejo. E as pessoas foram deixando de participar… Não há outra forma de justificar, senão pela apatia social, a destituição de Dilma e a substituição por corruptos que não foram eleitos democraticamente.

 

Mas a corrupção é transversal. E Lula e Dilma são parte do sistema. O poder e o dinheiro corrompem sempre? O ser humano, por essência, tende a deixar-se corromper?

Para que haja um corrupto ou alguém que se deixa corromper, primeiro tem de haver um corruptor, tem de haver alguém com a intenção de corromper os outros. A tendência natural do ser humano é viver em sociedades tranquilas, a sua propensão natural é dizer: quero um trabalho e quero que haja um Estado que me garanta que vou viver em harmonia e sei que, para manter esse Estado, tenho de pagar impostos e pago-os voluntariamente. Mas quando se impõe um modelo económico neoliberal, cuja base é a corrupção, os cidadãos vão adoptando atitudes como: quero viver tranquilo, mas não quero pagar impostos, ou quero pagar o menos possível. Porquê? Porque os ricos pagam menos. E, assim, a sociedade começa a corromper-se. O poder económico corrompe, o poder político não. O poder político, supõe-se, tem ética.

 

Trump é a demonstração mais palpável de que o capitalismo está a viver uma grande crise. 

 

Quais as suas grandes referências políticas, além de Salvador Allende?

Olof Palme é uma grande referência. Willy Brandt é outro grande referente. Alexander Dubcek é um grande exemplo. Tito, na Jugoslávia, é outro. E Che Guevara. São exemplos de homens políticos realmente honestos.

 

E hoje?

Na América Latina, temos Pepe Mujica, que foi Presidente do Uruguai, ou Rafael Correa, ex-presidente do Equador. Evo Morales? Sim, mas com nuances. Na Europa? É difícil encontrar. A Europa tem-se convertido, um pouco, num continente de diletantes da política, e eu não confio em diletantes. Mas evidentemente há, ou tem de haver, exemplos, mas não sei quais são.

 

Aos seus olhos, o projecto europeu, de uma união europeia, ainda está vivo?

O projecto da Europa unida, quando começou, era muito bonito, e conseguiu alcançar muitas coisas. Deveria ter havido uma grande celebração pelo facto de a Europa, pela primeira vez na sua História, cumprir 50 anos de paz, sem guerras – salvo a dos Balcãs, mas foi pequena. Ninguém celebrou este feito político e é, sobretudo, para isto que serve o projecto europeu, para assegurar a convivência pacífica entre os Estados. O sonho da União Europeia era muito belo e, lamentavelmente, quando chegou o momento da sua ampliação, os cidadãos não foram consultados, e hoje em dia temos na UE países como a Polónia e a República Checa, cujos primeiros-ministros são fascistas, algo que é contrário à ideia democrática da Europa... Os cidadãos não foram consultados e começou a debilitar-se a ideia de uma união europeia.

 

Mas agora estão a ser consultados e muitos querem sair da UE.

Não acredito que haja outro Brexit, acredito que existe uma inteligência suficiente para entender que temos de permanecer juntos porque somos um bloco muito forte. A União Europeia tem de ser a instância de organização política dos cidadãos europeus. De organização política! E, a partir daí, decidem­-se as resoluções económicas, as resoluções culturais comuns e, sobretudo, devem ser solucionados de uma forma política alguns problemas como a questão das fronteiras e a crise dos refugiados. Devemos ter uma resposta comum e vinculativa a todos os países.

 

O que não é fácil quando os atentados terroristas se sucedem e a xenofobia aumenta.

O sentimento de xenofobia e de ódio perante o que é diferente é algo que está sempre latente, mas que se tem conseguido controlar. Hoje em dia saiu de controlo. Quando é que saiu de controlo? Quando, precisamente por falta de uma vontade política, permitiram­-se governantes fascistas.

 

Sentimentos que estarão a ser apropriados por movimentos mais extremistas ou políticos ditos anti-sistema ou supostamente anti-sistema, como Trump – o "Tio Sam, a imagem caricatural do capitalismo", como diz.

Trump é a demonstração mais palpável de que o capitalismo está a viver uma grande crise. Trump não é um homem representativo do sistema capitalista clássico, é um representante do neoliberalismo, é um empresário falido, e encontrou na política a última solução para os seus problemas, rodeando-se daqueles que vêem no país não uma nação mas um negócio, do qual há que tirar a maior rentabilidade possível. Felizmente, uma parte da sociedade norte-americana é inteligente e começa a dar-se conta de que o maior erro que cometeu foi permitir que Trump chegasse a Presidente. Mas o pior que poderia acontecer agora nos Estados Unidos era um "impeachment" a Trump, porque seria o vice-presidente, Mike Pence, a assumir a governação, e ele ainda é pior. Pelo menos Trump pode ser controlado pelo Congresso, pelo Senado, pela justiça… Em relação à Europa, o descontentamento nos últimos anos foi muito legítimo. Foi o descontentamento dos indignados, dos indignados de que fala o escritor francês Stéphane Hessel, autor do livro "Indignai-vos!" – reage, participa. Essa indignação é uma forma de participação política e gera resultados. Da indignação política, houve uma síntese e nasceu, por exemplo, o Bloco de Esquerda, da indignação houve uma síntese e nasceu o Podemos, em Espanha, com uma orientação demasiado difusa para o meu gosto. Da indignação nasceu, em Itália, o MoVimento 5 Estrelas...

 

O sentimento de xenofobia está sempre latente e hoje em dia saiu de controlo. 

 

Da indignação política nascem os populismos e isso é perigoso.

É possível, mas há tantas formas de ver o populismo, o populismo realmente criticável é aquele que propõe coisas sem saber se aquilo que propõe é possível de alcançar, mas existem outras medidas chamadas de populistas que são, de facto, muito racionais, tais como impedir a privatização da saúde ou da educação. Isso é populismo? Não, é racionalidade pura. Mas, claro, a esquerda tradicional esqueceu-se disso e nasceram os novos movimentos.

 

A convivência pacífica na Europa está ameaçada?

Acho que não, acredito que existe a consciência de que essa convivência pacífica entre os europeus é um grande feito. Enquanto existir uma ideia de bloco comum para enfrentar os problemas, há uma garantia de paz. Nesse aspecto, Trump foi uma grande ajuda para estimular esse sentimento europeu.
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