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A Liderança de Henry Kissinger

“A liderança é sobremaneira essencial em períodos de transição, quando a relevância de valores e instituições está em perda, e os contornos de um futuro digno ainda são motivo de controvérsia. Em momentos assim, os líderes são chamados a pensar de forma criativa e analítica”, traça Henry Kissinger no livro “Liderança - Seis estudos sobre estratégia mundial”, lançado em Portugal pela Dom Quixote. Publicamos aqui um excerto desta obra que analisa as vidas de seis líderes: Konrad Adenauer, Charles de Gaulle, Richard Nixon, Anwar Sadat, Lee Kuan Yew e Margaret Thatcher.
27 de Maio de 2023 às 13:00

Qualquer sociedade, seja qual for o seu sistema político, está em trânsito perpétuo entre um passado que forma a sua memória e uma visão de futuro que motiva a sua evolução. Nesse percurso, a liderança é indispensável: é necessário tomar decisões, conquistar confiança, cumprir promessas, e propor vias de progresso. As instituições humanas – Estados, religiões, exércitos, empresas, escolas – necessitam de liderança que contribua para a condução das pessoas da realidade em que estão para uma outra em que nunca estiveram e que, por vezes, mal imaginavam alcançar. Sem liderança, as instituições desfalecem e as nações arriscam uma irrelevância crescente e, em última análise, o desastre.

 

Os líderes pensam e agem na interseção de dois eixos: o primeiro, entre o passado e o futuro; o segundo, entre os valores e aspirações perenes daqueles que lideram. A primeira dificuldade é a análise, que começa com uma avaliação realista da sociedade com base na sua história, costumes e capacidades. Depois, têm de sopesar aquilo que sabem, e que se baseia necessariamente no passado, com aquilo que intuem sobre o futuro – um processo intrinsecamente conjetural e contingente. É esta perceção intuitiva de um rumo que permite aos líderes definir objetivos e uma estratégia, tarefas essenciais, ambas.

 

Para que as estratégias mobilizem as sociedades, os líderes têm de agir como educadores – comunicando objetivos, apaziguando dúvidas, e conquistando apoios. Embora o Estado possua, por definição, o monopólio da força, o recurso à coerção é sintoma de má liderança; os bons líderes desencadeiam nas respetivas sociedades o desejo de os acompanhar. Têm, ainda, de inspirar um círculo próximo que seja capaz de traduzir o seu pensamento para que esteja em sintonia com as questões práticas do dia a dia. Essa equipa próxima e dinâmica é o complemento visível da íntima vitalidade do líder; ela garante os alicerces da ação do líder e atenua os dilemas da decisão. Os líderes podem ser engrandecidos – ou apoucados – pelas qualidades daqueles que os rodeiam.

 

Os atributos decisivos de um líder para o desempenho de tais tarefas, e a ponte entre passado e futuro, são a coragem e o caráter – coragem para escolher um rumo entre opções complexas e difíceis, que exigem a disponibilidade para transcender a rotina; e força de caráter para manter uma via de ação cujos benefícios e riscos não podem ser completamente avaliados no momento da escolha. A coragem convoca a virtude no momento da decisão; o caráter reforça a fidelidade aos valores ao longo de períodos mais longos.



A liderança é sobremaneira essencial em períodos de transição, quando a relevância de valores e instituições está em perda, e os contornos de um futuro digno ainda são motivo de controvérsia. Em momentos assim, os líderes são chamados a pensar de forma criativa e analítica enquanto sob pressão: quais são as fontes do bem-estar da sociedade? Ou do seu declínio? Quais os legados do passado que devemos preservar, e quais os que devemos adaptar ou descartar? Que objetivos valem o nosso esforço, e que expetativas devemos abandonar, por mais tentadoras que pareçam? E, em última análise, a sociedade em questão terá vitalidade e confiança bastantes para tolerar sacrifícios como etapa para um futuro melhor?

 

A natureza das decisões de liderança

 

Inevitavelmente, os líderes são travados por constrangimentos. Atuam num ambiente de escassez, pois todas as sociedades conhecem limites para as suas capacidades e alcance, ditados por demografia e economia. Atuam, ainda, em determinado tempo, pois cada época e cada cultura reflete os respetivos valores, hábitos e atitudes predominantes, que, em conjunto, definem os objetivos desejados. E os líderes atuam em ambiente de concorrência, pois têm de ter em consideração outros protagonistas – sejam aliados, parceiros potenciais ou adversários –, que não são estáticos, mas sim adaptativos, com suas diferentes capacidades e aspirações. Acresce que, muitas vezes, os acontecimentos evoluem depressa demais para permitir cálculos precisos; os líderes estão obrigados a fazer juízos com base em intuições e hipóteses que carecem de prova no momento da decisão. A gestão de risco é tão crucial para um líder quanto a capacidade analítica.

 

A palavra "estratégia" define a conclusão a que o líder chega sob tais condições de escassez, temporalidade, concorrência e fluidez. Na busca do rumo a tomar, a liderança estratégica pode ser comparada com a caminhada de um funâmbulo: assim como o acrobata pode cair por excesso de timidez ou de audácia, também o líder está obrigado a navegar entre estreitas margens, suspenso entre as certezas relativas do passado e as ambiguidades do futuro. A penalização por ambição excessiva – aquilo a que os gregos chamavam hubris – é a exaustão, enquanto o preço de descansar sobre os louros é a insignificância progressiva e, a seu tempo, a decadência. Passo a passo, os líderes terão que definir os meios para os fins, e os objetivos para as circunstâncias, se quiserem chegar a bom destino.

 

O líder enquanto estratega vê-se perante um paradoxo inescapável: em circunstâncias em que se exige ação, a mais ampla margem para a tomada de decisões coincide geralmente com a maior escassez de informação relevante. E chegado o momento em que há mais dados disponíveis, já a margem de manobra tenderá a ter-se reduzido. Por exemplo, nas fases iniciais de rearmamento estratégico de uma potência rival, ou aquando do súbito aparecimento de um novo vírus respiratório, existe a tentação de considerar o fenómeno emergente ou como temporário, ou como controlável segundo os padrões normais. Chegado o momento em que a ameaça já não pode ser negada ou desprezada, a margem de ação ter-se-á reduzido ou o custo para a enfrentar ter-se-á tornado exorbitante. E até as opções restantes serão de execução complexa, com escassa recompensa para o êxito e mais graves riscos em caso de insucesso.

 

É nesses momentos que o instinto e o discernimento do líder são essenciais. Bem o compreendeu Winston Churchill ao escrever The Gathering Storm (1948): "Os estadistas não são chamados apenas a resolver questões fáceis. Normalmente, estas resolvem-se por si. É quando o equilíbrio se torna instável, e as proporções surgem veladas por uma neblina, que a oportunidade de decisões capazes de salvar o mundo se apresenta."

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