Teolinda Gersão nasceu em 1940, começou a escrever regularmente aos 41 anos, quando a vida familiar lhe deu tréguas, e ainda assim carregava com ela uma certa culpa, aquela que muitas mulheres continuam a sentir. Acumula quatro décadas com muitos prémios e 19 livros. O último chama-se "O Regresso de Júlia Mann a Paraty". Escrito com o antigo acordo ortográfico - como a autora gosta de salientar -, cruza três novelas e, num misto de verdade e ficção, fala-nos sobre a mãe brasileira de Thomas Mann, sobre a Alemanha e o mundo dos anos 30 do século XX. Teolinda Gersão diz que a arte não se basta a si própria e que um escritor tem o dever de ser livre. É assim que se sente e é assim que se quer sentir, até mesmo quando chegar o fim.
Começa cada novo livro como se fosse o primeiro. Como mantém esse encanto?
Cada livro é uma nova viagem, uma nova história, que prefiro ir descobrindo à medida que vou avançando na escrita. Eu não sabia quase nada sobre a personagem real, a Júlia Mann, tinha visto referências nos livros dos filhos Thomas Mann e Heinrich Mann, sabia que era brasileira, mas desconhecia a sua história de vida. Tive curiosidade e fui procurar saber. O livro tem esse lado de investigação, a par do que é ficcionado. Fiquei a saber que Júlia Mann era muito dotada no campo das artes, era uma boa pianista, cantava bem e, na juventude, gostaria de ter sido atriz. Foi ela que passou aos filhos a vocação artística – os Mann eram empresários, socialmente considerados, mas convencionais e sem interesses artísticos. Nesse sentido, Júlia Mann foi o elemento disruptor.
Foi isso que a fascinou?
Sim, foi a sua diferença. Ela vinha do Brasil, de outra cultura, outra latitude, outra língua, e foi transplantada para a Alemanha. Tinha 7 anos e teve de se adaptar a um mundo que desconhecia. Conseguiu transmitir o gosto pelas artes à família, até porque esteve sempre muito presente na educação dos filhos, como era tradicional no século XIX. Há um livro publicado postumamente com os seus escritos, "Ich spreche so gern mit meinen Kindern" (Gosto tanto de falar com os meus filhos), e foi o ponto de partida para a minha investigação. Nada como ouvir a voz da narradora.
E com ela ouviu a voz das mulheres. Foi também por isso que agora escreveu este livro?
Também me interessou porque sou mulher, e porque assisti a uma viragem da condição da mulher em Portugal. A geração da minha avó era ainda a geração das senhoras que ficavam em casa, a quem nem ficaria bem ter uma profissão. Na família do meu pai, não era assim. As irmãs andaram na universidade, foram das primeiras mulheres a fazê-lo, deram aulas no ensino secundário. Do lado da minha mãe, a irmã mais velha licenciou-se em Farmácia e foi trabalhar – a minha família materna era rica e sofreu reveses de fortuna. As amigas da minha avó lamentavam e diziam: "Que pena ter de ir para a universidade, já não tem o mesmo valor das outras meninas." Já a minha mãe achava que a irmã tinha tido uma sorte fantástica e adoraria ter ido para a universidade também. Não foi, teve uma doença pulmonar e casou nova, mas nunca achou que o lugar das mulheres fosse em casa. Procurou sempre cultivar-se, era uma grande leitora, também por influência do meu pai, que tinha uma bela biblioteca – era médico e gostava muito de literatura. Havia muitos livros em casa, eu era uma privilegiada.
É uma história representativa da emancipação das mulheres?
O que aconteceu no século XIX e inícios do XX pela Europa fora aconteceu em Portugal bastante mais tarde, sobretudo após o 25 de Abril. É verdade que antes disso houve mulheres portuguesas que se emanciparam, que estudaram, e marcaram a vida pública. Mas eram exceções. Noutros países, a mudança começou antes, as mulheres começaram a afirmar-se, a trabalhar, a ganhar um salário, e isso deu-lhes liberdade, também para questionar temas como o adultério: enquanto o adultério masculino era socialmente aceite, o adultério feminino era absolutamente condenado. Estas questões começaram a ser abordadas de forma abrangente em romances como "Madame Bovary", de Flaubert, "Anna Karénina", de Tolstoi, ou "Effi Briest" de Fontane. A mulher era ostracizada e castigada nos romances e na vida, e, por vezes, até morria de culpa, como aconteceu com a Luísa, d’ "O Primo Basílio", de Eça de Queirós.
As mulheres continuam a carregar muitas culpas, e ainda chamam muito a si a educação e a gestão da casa, além do trabalho.
As mulheres são mais vulneráveis a sentimentos de culpa. Os homens acharam sempre que o essencial era assegurar o bem-estar económico, e desde que a família tivesse conforto, sentiam que cumpriam o seu papel. Hoje não é tanto assim, as mulheres mudaram e os homens tiveram de mudar também. Mas há um enorme caminho a fazer, a diferença salarial entre homens e mulheres continua a ser grande, e elas têm mais dificuldade em chegar a lugares de topo. A igualdade de género ainda não existe.
Começou a escrever regularmente aos 41 anos, quando a vida familiar lhe deu "tréguas". Sentia culpa também?
Sim, sentia por vezes uma certa culpabilidade, porque os filhos nos preocupam sempre. Quando as crianças são muito pequenas e lhes dizemos: "Não interrompas que a mãe está a trabalhar", elas traduzem: "Não gostas de mim"; se saímos para o trabalho e elas ficam a chorar, ficamos de coração partido. Não critico as mulheres que fazem uma pausa na vida profissional para cuidar dos filhos. Mas a sociedade não lhes oferece realmente essa possibilidade, porque depois, quando querem regressar ao mercado de trabalho, é-lhes dito que estão desatualizadas, preferem gente mais nova.
Existem outras lutas, histórias, outros medos, outras falhas. No seu livro, coloca Freud a pensar em Thomas Mann e a dizer: "… acreditou que a arte se bastava a si própria, e estava tão errado como eu"…
Na minha perspetiva, a arte não se basta a si própria. Reconheço que tenho uma atitude diferente de outros escritores, que nunca falam de política, pois isso cria inimizades e dissabores, mas eu não me importo nada com possíveis consequências, quando sinto que há coisas injustas, não hesito em escrever sobre elas. Sou politicamente muito incorreta, mas é inerente ao papel do escritor o dever de ser livre, porque a arte não é um adorno, nem um mero passatempo. Também não deve ser propaganda de uma ideologia ou de um partido – a arte é livre. Mas injustiças são injustiças, e os livros não podem ser um escape da realidade, devem fazer-nos pensar e refletir.
Tem sempre essa preocupação?
Não é preocupação, sai-me espontaneamente, as coisas aparecem nos livros, quer eu queira ou não. O que nos dói e incomoda transparece. Não deixo de ser cidadã por ser escritora. E acho que Thomas Mann, mas sobretudo Freud, vivia demasiado apoliticamente. Freud escreveu muito, mas não escreveu nada declaradamente contra o nazismo. No meu livro, coloquei-o a lamentar-se de não ter sido mais interventivo. Não sei se isso lhe passou pela cabeça, mas não só poderia, como deveria... As irmãs morreram em campos de concentração, e apenas "in extremis" é que ele acordou da bolha em que vivia, dentro daquele seu projeto de construir uma grande obra. A filha mais nova, Anna, foi interrogada pela Gestapo, e só nessa altura se sentiu acossado e resolveu emigrar. Fê-lo no limite, no final de 1938. Deixou-se ficar isolado do mundo demasiado tempo.
Muitas pessoas continuaram nas suas bolhas. No livro, escutamos Freud a perguntar: "Retiraremos lições do que aconteceu, do que permitimos que acontecesse?" Retirámos?
Os alemães ainda hoje têm uma razão especial para fazer essa pergunta e carregam o fardo de achar que não fizeram um ajuste de contas suficiente consigo próprios. Mas a acomodação acontece em todas as sociedades, há uma enorme passividade e uma grande incapacidade de querer ver o que se passa – é assim ainda hoje, em todo o lado. "O pior cego é quem não quer ver" e muitas pessoas preferem acomodar-se, o que, além de não ser correto, é perigoso. É um pouco a "banalidade do mal", de que falava Hannah Arendt: a mentalidade instaurada de cumprir ordens faz com que coloquemos a responsabilidade nos outros, ninguém quer assumir culpa de nada e afinal somos todos culpados. Mas claro que a grande culpa reside sempre no topo, onde, infelizmente, há "intocáveis".
Diz que o único progresso que interessa é o progresso ético. Como vê a sua evolução?
Pelo que vejo, tem piorado. O progresso ético é realmente aquele que importa. Sem isso, teremos sempre uma sociedade desigual, algo aliás que a pandemia pôs em maior evidência. Muitas pessoas perderam o emprego ou foram prejudicadas por estarem em teletrabalho com crianças em casa. Muita gente nem dinheiro tinha para pagar a eletricidade que gastava a mais. Mesmo nos países mais ricos do mundo, há fortes desigualdades. Em 2004, estive na Universidade de Califórnia, Berkeley, como escritora residente. O "campus" era lindíssimo, cheio de grandes relvados e de magnólias, mas não tinha bancos, como qualquer jardim, para não serem ocupados pelos sem-abrigo, que eram (e ainda são) escorraçados e abandonados. Os Estados Unidos têm o melhor do mundo para quem tem dinheiro. Os bons hospitais são brutalmente caros, as universidades também. E o ensino oficial é em geral bastante mau.
Como avalia a qualidade do ensino público em Portugal?
Acho a qualidade do ensino não satisfatória. Eu sou um produto da escola pública, andei sempre no liceu. Mas na altura o ensino público era incomparavelmente melhor e muito mais bem pago do que o privado. Só era professor na escola pública quem tinha as melhores classificações. E a escola pública, gratuita, embora longe de ser inclusiva, abarcava várias classes sociais, também de famílias muito desfavorecidas. Mais tarde houve a preocupação, obviamente correta, de massificar o ensino, mas penso que o processo foi mal conduzido. Vemos hoje jovens bastante competentes em determinadas áreas, mas muitíssimo ignorantes, porque não leem, não têm cultura geral, nem visão do mundo. E as melhores pessoas estão a ir-se embora. O país deveria dar-lhes outras oportunidades – os médicos do SNS, os professores, investigadores, etc., são mal pagos e trabalham muitíssimo, não se dá à função pública o valor que ela tem. O Estado não é um bom patrão para os seus servidores e, nos grandes negócios de interesse vital para o país, tem-se revelado um negociador desastroso.
Tem saudades de dar aulas?
Adorei ser professora, sobretudo dos cursos de mestrado e doutoramento. Aprendemos muito com os alunos e o contacto com diferentes gerações enriquece-nos, é importante perceber como é que os jovens veem o mundo, muitos estão insatisfeitos, quase todos os que conheço querem ir-se embora, sentem que o futuro lhes está a ser roubado. Não encontram situações profissionais aceitáveis, não querem ficar em casa dos pais eternamente, não têm dinheiro para ter filhos – é dramático. Estamos a tornar-nos num país sem perspetiva.
Não tem medo dos temas sensíveis. Assume-se publicamente a favor da eutanásia. No conto "Vizinhas", fala de duas mulheres idosas que não querem ir para um lar, preferem morrer.
Para mim, eu quero a eutanásia. Acho inútil um sofrimento prolongado e sem fim à vista, não acredito que o sofrimento tenha valor em si próprio, cada um deve ser dono do seu corpo e da sua vida, e livre de tomar a decisão de morrer quando não quiser viver mais. A pandemia tornou bem evidente que os lares são depósitos de idosos, o Governo ignorava – e ainda ignora – quantos lares existiam, quantos eram clandestinos e como funcionavam. Essa é a nossa realidade: horrível e desumana. Os idosos são insuficientemente acompanhados, e os lares em condições aceitáveis são caríssimos. As empregadas são poucas, fazem um trabalho duro e por turnos, e recebem um salário baixo. Não conseguem fazer muito mais do que os serviços mínimos.
Mas a eutanásia não deveria ser a resposta a um problema social…
Claro que não. É uma escolha que está muito para além dos problemas sociais. Tenho a noção de que é difícil legislar sobre essa matéria, pode dar origem a abusos, há muita gente que maltrata os idosos e quer livrar-se deles, poderá fazer tudo para os convencer a partir, só porque lhes são pesados, estamos longe de ter brandos costumes. Fui alguns anos voluntária numa linha de apoio telefónico, e uma vez atendi uma senhora idosa que se queixava de ser maltratada pela família, passava muita fome, depois disse "desculpe, não posso falar mais, porque vêm aí", e desligou de repente... Não pude perguntar-lhe nada, nem tentar localizá-la, e ela estava a pedir socorro. A verdade é que o envelhecimento não está protegido, e o idoso não tem voz ativa. Não é justo alguém ter de viver em condições inaceitáveis, onde é muito infeliz. Hoje já poucas famílias podem ter pais ou avós consigo, como nas gerações anteriores, quando as casas eram maiores e havia outro tipo de apoio. Agora, filhos e netos têm as suas vidas, mais complicadas do que noutros tempos. Na prática, teremos de contar apenas connosco, o Estado e a sociedade não oferecem respostas aceitáveis. Mas, mesmo que oferecessem, e mesmo que algum dia venham a oferecer, a última palavra deve ser sempre de cada um, numa decisão voluntária e inteiramente livre.
Depois de 40 anos de carreira literária, por onde quer seguir?
Já estou a escrever outro livro! Vergílio Ferreira dizia: escrevo porque não sei fazer mais nada; eu sei fazer outras coisas (e ele claro que também sabia!), mas um escritor é como um cientista, vai à procura de alguma coisa que lhe interessa profundamente e que de algum modo se apodera dele. Tento sempre dar o melhor de mim naquilo que faço e gostaria de ter ainda alguns bons anos de saúde, lucidez e dinamismo. Quando tudo isso desaparecer, estiver doente, diminuída, sem autonomia nem interesse em viver mais, então quero pôr um fim. A morte não me assusta, assusta-me a degradação e o sofrimento físico. Não sei se Deus existe, mas acredito que pode haver uma transcendência, um princípio ou lei universal a que não sei nem nunca saberei dar nome, não sou mais que um grão de poeira, um átomo, num universo imenso e desconhecido... Mas, se Deus existir, não poderá ser mau nem estúpido, portanto, compreenderá a minha atitude, e acho que teremos boas relações... (risos) Por isso, estou tranquila.