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Philip K. Dick: O homem duplo

Philip K. Dick morreu em Junho de 1982, poucos meses antes da estreia de "Blade Runner". Tudo na sua obra tem que ver com a tentativa de descobrir a verdade num universo em que a mentira comanda os acontecimentos.

06 de Outubro de 2017 às 12:46
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O verdadeiro título de "Blade Runner" era: "Sonham os andróides com ovelhas eléctricas?" E isso diz muito sobre o mundo criativo de Philip K. Dick, que volta a ser citado devido à estreia de "2049", sequela do filme épico de Ridley Scott. Tudo na obra de Dick (um dos mais influentes autores de ficção científica do século XX e verdadeira influência do que viríamos a conhecer como "cyberpunk") tem que ver com a natureza do real. Ou melhor, sobre a tentativa de descobrir a verdade num universo em que a mentira comanda sempre os acontecimentos. E, no meio deste labirinto sem saídas, como se há-de conseguir descobrir a verdade? Tudo isso também nos remete para Aldous Huxley. Philip K. Dick, talvez na sua obra maior, "Ubik", tenha conseguido partilhar connosco a sua visão da realidade que nos é oferecida e que, na verdade, é a simbiose de realidades virtuais. Como aquelas que hoje se vão sobrepondo, entre tecnologias, defronte dos nossos olhos. Talvez por isso as cidades devastadas, que queimam, como a que encontramos em "Blade Runner", simbolizem esse desconforto: nelas conjugam-se passado, presente e futuro, como se fossem ruas paralelas de um mesmo destino. Há quem chame a Dick o Dickes ou o Dostoiévski do século XX. E talvez seja. Muitas das personagens de Dick têm pouca ou nenhuma personalidade, são dóceis, sem vontade de se rebelarem. Acaba, por isso, por ser visionário. Para percebermos melhor o século XXI temos de o ler. Está lá muito do que temos defronte de nós.

"Blade Runner" fez com que as atenções se desviassem para a fulgurante obra de Philip K. Dick, que faleceu poucos meses antes da estreia do filme, em Junho de 1982. O cenário da história é empolgante: numa Terra devastada por uma guerra atómica, muita da população emigrou, fugindo da poeira radioactiva que extinguiu inúmeras espécies de animais e plantas. As criaturas vivas tornam-se então objectos de desejo para os que ficaram, já que a maioria não pode pagar para ter seres verdadeiros. As empresas criam assim réplicas electrónicas de homens, mulheres e animais. Aí surge Rick Deckard, caçador de recompensas, que tem como missão eliminar andróides que vivem ilegalmente na Terra. Ele tem um sonho: substituir a sua ovelha electrónica por um animal verdadeiro. Rick persegue então seis andróides fugidos de Marte, mas acaba por se defrontar com um paradoxo: aquilo que separa humanos e andróides não é assim tão grande. As emoções contaminaram também os andróides. Como dizia o próprio Dick, "quando acredito, sou louco. Quando não acredito, sofro de depressão psicótica."

Ele tornou-se uma figura de culto sobretudo após a sua morte, mas ao longo da vida legou-nos 45 novelas e mais de 120 contos. Muitos deles, para lá de "Blade Runner", acabaram por ir parar ao cinema: "Total Recall", "Relatório Minoritário", "A Scanner Darkçy" ou "The adjustment Bureau". E "Matrix" bebe muito do seu universo criativo e alucinado. A genialidade da sua obra tem sido muitas vezes confrontada com a sua vida pessoal. Muitos consideraram que ele vivia imerso num mundo de loucuras de onde tinha dificuldade de sair. As anfetaminas iam-no ajudando a conviver com o mundo social.
O livro de Philip K. Dick deu origem a um dos mais emblemáticos filmes de sempre de ficção científica, que 35 anos depois tem uma sequela. O mesmo aconteceu ao escritor, que após a sua morte, em 1982, se tornou numa figura de culto.
O livro de Philip K. Dick deu origem a um dos mais emblemáticos filmes de sempre de ficção científica, que 35 anos depois tem uma sequela. O mesmo aconteceu ao escritor, que após a sua morte, em 1982, se tornou numa figura de culto.
Dick cresceu na Califórnia, lendo revistas de aventuras e depois de ter deixado a Universidade de Berkeley começou a escrever para muitas delas. O seu mundo era distinto do mais científico de outros autores como Isaac Asimov ou Robert Heinlein e não parecia particularmente interessado na previsibilidade do futuro, que era sina da ficção científica. Ter-se-á ligado ao género porque este lhe dava suficiente liberdade para libertar a sua imaginação. De alguma maneira o futuro, nas obras de Dick, faz-nos lembrar o presente, só que de uma forma mais sombria e radical. É a decadência, o declínio da civilização, os sonhos por concretizar, que ecoam nas páginas que escreveu. Nascido em 1928, Philip Kindred Dick escreveu de forma militante ao longo dos seus 53 anos de vida. Pelo meio viveu obcecado por teorias da conspiração. E ele via-as em toda a parte.

E é assim que acabamos sempre por voltar a "Blade Runner", pólo central daquilo que conhecemos melhor de Dick. Nele, Rick vive de perseguir e matar andróides. Vê-se como uma máquina que depende da anatomia, enquanto os andróides dependem dos circuitos internos. No livro, o trabalho de Rick é monótono e repetitivo (no filme, o trabalho surge como excitante). Os andróides também temem a morte, como os humanos, numa dramatização muito curiosa. Eles lembram escravos fugitivos, como em outras eras do mundo, como se fossem não-pessoas. Rick pergunta: "Acha que os andróides têm alma?" É também por isto que esta obra é também sobre os verdadeiros sentimentos, sobre quando e como podemos confiar nas emoções. Criou um órgão de emoções, que funciona como os órgãos eléctricos que criam notas musicais. E é assim que caminhamos para a tragédia. Falharemos sempre, parece resignar-se o caçador de andróides.

As motivações das principais personagens de Philip K. Dick são simples (sobrevivência, dinheiro, sexo, adição, lealdade institucional), com vidas interiores muito transparentes. No fundo, as pessoas comportam-se como robôs ou andróides, programadas e incapazes de se questionar. Como, de resto, parece ser o destino do século XXI.


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