Notícia
Maria João: Eu estava “calhadinha” para o disparate
Ela é uma brava. Uma atleta de alta competição. A cantora Maria João Monteiro Grancha define-se assim. Em miúda, era mal comportada e foi expulsa de vários colégios. Valeu-lhe o desporto. “O aikido salvou-me a vida”. E depois veio o jazz.
Ali, as ondas são do tamanho de armários e o mar é só para bravos. Ela é uma brava. Uma atleta de alta competição. Maria João Monteiro Grancha define-se assim. O instrumento de um cantor está dentro do corpo. O instrumento de um cantor é o próprio corpo. E no corpo dela havia um frenesim quase louco que a levou a ser expulsa de vários colégios. Era uma miúda mal comportada quando ainda não havia diagnóstico de hiperactividade. "Minha pobre mãe, minha pobre mãe...". Desesperados, os pais inscreveram a filha na natação, no yoga, no karaté e, por fim, no aikido - "Salvou-me a vida". Depois, quase por acaso ou nem tanto assim, veio o jazz, a assentar bem na inquietude da miúda crescida. Fundou o Quinteto de Jazz, fez duo com Mário Laginha, cantou com a japonesa Aki Takase, canta com os brasileiros Guinga e Egberto Gismonti. Entrou na música electrónica com o projecto OGRE. "É outro caminho, adoro, sou louca por aquilo, não percebo nada, mas adoro". Maria João fez 60 anos em Junho. Continua a praticar aikido e vai à piscina todos os dias. Como praia, escolhe o Guincho, ali, onde o mar não é para nadar, é para saltar em cima das ondas.
Escolheu o Guincho como cenário de conversa. É a sua "beach", como diz.
Aqui, as ondas são do tamanho de armários, a areia entra em todo o lado, entra nos ouvidos, entra no pensamento, sobretudo quando há muito vento ou quando o mar está mais batido. Eu adoro e só concebo uma praia assim. Em miúda, ia para Carcavelos. Ou para África. Mais tarde, comecei a vir para este lugar ou para a Praia Grande. Costumava passar três semanas por ano num campo de férias da Shell em Colares – a minha mãe tratava do abastecimento dos navios da empresa –, era incrível. Mas esta é a minha praia de sonho, eu gosto do mar batido, acho que o mar não é propriamente para nadar, é para pular em cima das ondas e debaixo das ondas, é para apanhar carreirinhas. E a água fria obriga-nos a estar sempre despertos. É uma praia que puxa por nós, é uma praia para atletas de competição. E eu gosto muito de nadar, sempre nadei e continuo a nadar todos os dias, mesmo quando saio de Portugal. Levo sempre a touca, os óculos e o fato de banho. A natação é um dos meus desportos diários.
Até aprendeu a cantar praticando aikido. O desporto preparou-a para a música?
Na altura, não tive essa consciência, eu não era cantora nem nunca tinha pensado em cantar. Mas quando comecei a cantar percebi que já tinha aquilo que era preciso. Nunca tive um professor ou uma professora de canto, apenas visitei uma ou outra pontualmente, o professor que tive foi mesmo o meu mestre de aikido, Georges Stobbaerts. O meu instrumento é o sopro e eu aprendi a usá-lo praticando esta e outras artes marciais do budô. A técnica do cantar, de usar a voz, é muito simples, basta encontrarmos a postura justa. Temos de estar bem sentados na nossa cadeira interior, ter consciência do corpo, dos seus lugares, dos seus espaços e, depois, ter como convidada de honra a respiração. Era assim que o meu mestre dizia.
No Ocidente, alienámos um bocadinho o corpo, o corpo enquanto um todo. Desligámo-nos.
Sim, o corpo é só um. Penso que os atletas têm essa consciência desde sempre porque precisam do corpo, têm de o compreender para tirarem dele o maior partido possível. Uma vez, numa entrevista, perguntaram a várias cantoras como é que cada uma se via, e eu respondi, orgulhosamente: sou uma atleta de alta competição.
Mas porquê de alta competição?
Porque é muito duro ser cantor. Mesmo muito duro. Para já, o negócio da música é duríssimo. E fisicamente também é, com as viagens, com o andar de um lado para o outro. Como encontrar o equilíbrio? Afinal, saímos da nossa rotina, deixamos de tomar banho na mesma água, com o mesmo pH, as camas são diferentes, a comida é diferente. Isto requer uma certa adaptação e disciplina. Caso contrário, facilmente perdemos o foco, perdemos a energia, perdemos o fio condutor. No outro dia, fiz um "post" onde dizia que nós, as cantoras, somos umas chatarronas.
Como assim?
Somos! Eu nunca como antes de um concerto, não posso. É que nós puxamos pela barriga, não podemos estar de barriga cheia. Temos de ter espaço para que o corpo possa estar desperto e para que a música possa entrar e sair com fluência. O corpo não pode estar ocupado com a digestão. Quando o concerto acaba, só como coisas pequeninas. Emagreço quando faço uma "tournée". Somos chatarronas por causa destas coisas. No outro dia, fui cantar ao Funchal Jazz, a seguir havia uma "jam session" e eu não fui. Disciplinadamente, acabei o concerto e fui deitar-me. No dia a seguir, dei um "workshop", voltei para Lisboa e depois fui para Itália. A voz não aguenta tudo. Esta voz habita no meu corpo. Tenho mesmo de ter cuidado. É o que eu digo, sou uma chata! E, depois, eu falo pelos cotovelos. Acho que o problema não está tanto no deitar-me tarde, mas mais no não conseguir calar-me (risos).
Nunca chegou mesmo a ter aulas de voz, de canto?
Só tive quatro ou cinco aulas com uma professora e visitei também a Rosarinho, uma senhora deliciosa, mas rapidamente cheguei à conclusão que o meu caminho era outro, que ninguém o percebia melhor do que eu porque o instrumento estava dentro do meu corpo, era o meu corpo. Para mim, que comecei dessa forma, as aulas eram uma espécie de intrusão. E, naquela altura, não havia tanto a noção da importância do corpo, do esticar o corpo. Antes de fazer exercícios de aquecimento das cordas vocais, devemos aquecer o corpo. Primeiro, a pessoa tem de pôr o sangue a correr com toda a gana nas veias, e só depois de criar estes espaços todos é que arranja lugar para aquecer a voz.
Lá está, o corpo como um todo. Continua a praticar aikido?
Este ano, lesionei-me e tive de parar, não conseguia rebolar, não conseguia cair. O aikido é uma arte criada por Morihei Ueshiba e eu descobri-a através do meu mestre, ao qual a minha mãe recorreu, já desesperada por eu ser tão mal comportada. O aikido canalizou o meu excesso de energia. Quando eu era mais miúda, não havia o diagnóstico de crianças hiperactivas, eram "só" crianças esquisitas. E eu era mesmo hiperactiva. De maneira que a minha mãe achou por bem pôr-me a praticar outros desportos além da natação. Comecei com yoga, depois karaté, judo, e, finalmente, desaguei no aikido que é, claramente, a forma de expressão, em termos de budô, que mais se ajusta a mim. É redonda, harmoniosa, mas também poderosa. Cai, levanta, cai, levanta. Aliás, os meus joelhos estão todos lixados à conta disso (risos). Mas tive muita sorte. O meu mestre tinha um pequeno dojo em Cascais, numa garagem, um lugar maravilhoso, com o "ikebana", a arte das flores. Ele era muito engraçado, nunca perdeu aquele sotaque francês, e ainda bem, dava-lhe um charme incrível. Ele dizia: "Vocês estão a ver, esta pessoa que eu sou, o que é que eu faço? Eu torço pulsos. As pessoas devem achar que sou estranho. Eu compreendo." Tinha uma graça sublime. Que sorte que eu tive. Salvou-me a vida, porque eu estava "calhadinha" para o disparate.
Era assim tão mal comportada? Bem, eu sei que foi expulsa de alguns colégios.
Eu era uma adolescente hiperactiva e esse frenesim incomodava as pessoas. Mas eu também fazia disparates, também aprontava. Conto uma história. Eu andava num colégio em Tomar, que era um internato para miúdos cujos pais tinham algumas posses ou estavam em África. Era uma escola difícil. Havia a ala feminina e a ala masculina, e nós tínhamos aulas na ala masculina. Pronto, só aí havia logo asneira (risos). Usávamos umas batas horríveis pelo joelho, nunca menos disso, que nós arregaçávamos até cima. Como castigo, não íamos a casa ao fim-de-semana. E eu fugia. Arranjava sempre formas criativas de me pirar. E havia outra coisa horrível, só se podia tomar banho uma vez por semana. Pois eu tomava banho todos os dias! Foi nesta altura que comecei a fumar, quase vomitava mas, como era proibido, eu fumava. Uma vez, estava no estudo – numa sala a fazer trabalhos de casa – e disse que precisava de ir à casa de banho. E a professora: "Não vai nada, aguente aí, eu sei o que é que você quer, quer ir fumar para a casa de banho". Mas eu estava genuinamente aflita. Aguentei o mais possível e disse: "Ó stôra, tenho mesmo de ir à casa de banho". E ela: "Não vai nada". Eu continuava: "Mas estou muito aflita". Ela: "Está muito aflita? Então, faça aí". E eu fiz (risos). Ela teve um ataque de histeria, pôs-me na rua, fiquei de castigo e, claro, tive de fugir. Passados dois meses, fui expulsa. Havia ali muito disparate da minha parte.
E como se sentia depois de ser expulsa?
Tenho a certeza de que cada expulsão nestas escolas era, para mim, uma dor de alma. Não gostava que me expulsassem, estavam a dizer que não me queriam. Eu não gostava de lá estar, mas não queria que me expulsassem. A minha pobre mãe sofreu tanto. O meu pai era incrível. Uma vez, foi buscar-me ali ao colégio do Ramalhão, eu tinha aprontado qualquer coisa e a Madre Teresa queria falar com ele. Eu já sabia que ia ser horrível. Ele fez silêncio durante um minuto e perguntou: "Temos mesmo de estar à espera dela?" E eu: "Não pai, não". Fomos embora. Voltei depois, para ser expulsa, não me lembro da cronologia dos factos (risos), havia sempre muita asneira e, basicamente, eu não queria ser interna num colégio.
Mas isso era mesmo o desespero dos seus pais, não?
Era o desespero da minha mãe, minha pobre mãe. Eu acho que ela nunca me percebeu bem. A minha mãe era uma pessoa de África, Moçambique, do Norte. Quando veio para cá, devia ter uns 12 anos, passou o seu bocadinho. Apesar de ser clarinha, ela era uma cabrita. Diziam que Portugal não era racista, então não era?! A minha mãe tem uma história incrível, um dia ainda me vou pôr a escrever a história dela. O meu avô era uma pessoa de excelentíssimas famílias, e um mulherengo do pior, tinha a sua mulher legítima, que não conseguia ter filhos, arranjou uma outra, com quem teve dois. Como castigo, a família achou por bem correr com ele para África. E o meu avô fez a verdadeira penetração do português em África, foi tendo filhos e um deles era a minha mãe. Só que, aparentemente, a mãe dela apaixonou-se por outro senhor e teve mais filhos, então o meu avô foi lá tirar-lhe a minha mãe e criou-a. Ele andava num barco no Norte, no Chinde, e a minha mãe foi criada assim.
O que fazia o seu avô num barco no Chinde?
Ele era veterinário e transportava animais e coisas no rio lá em cima. A minha mãe foi criada assim, ela tinha uma cabrinha que dava leite e havia pessoas que também tomavam conta dela, mas andava quase sempre no barco com o meu avô. Ela contava-me que a única vez que se lembra de ter levado uma bronca do pai foi quando, um dia, resolveu tomar banho no rio, onde havia crocodilos. Levou uma surra daquelas... Depois, o meu avô deixou de ter condições para educar uma miúda, ela veio sozinha para Portugal e foi criada pela irmã mais velha, a minha tia Bebas, a legítima. Não foi fácil para a minha mãe. Chamavam-lhe a preta loura. Depois inscreveu-se na natação, foi atleta de competição no Algés, era a Etelvina Monteiro naquela altura. Sendo uma africana que veio morar para Portugal, tornou-se uma europeia, e estas pessoas têm de ter muita força de vontade, muita personalidade, e a minha mãe era muito "quero, posso e mando". Foi assim que ela se safou.
Estava a contar-me que, um dia, na Expo, descobriu que tinha várias primas.
Sim! Uma delas chegou ao pé de mim e disse: "És a Maria João, não és? Eu sou tua prima. A minha mãe e a tua mãe são irmãs. Tu não sabes, mas a nossa avó apaixonou-se por outro senhor e teve mais quatro filhos". E eu olhava, espantada. Ela até trazia a árvore genealógica com tudo escrito. Fiquei encantada. E eu só perguntava: mas a nossa avó era preta, não era? E ela: claro que era. Era bem escura. Eu fiquei tão contente, finalmente sabia, com a certeza absoluta. A minha mãe tinha renegado tudo. Cheguei a casa, furiosa, sentei-me, e a minha mãe "quero, posso e mando" olhou para mim, não disse nada e as lágrimas começaram a escorrer-lhe cara abaixo. E disse: "Durante a vida toda disseram-me que a minha mãe tinha morrido, ao fim destes anos aparecem umas pessoas a dizer que, afinal, a minha mãe me deixou ir, que teve outros filhos, filhos que criou. Achas que eu quero que essa seja a minha realidade? Não quero". Eu não tive argumento algum e respeitei. Não me dei mais com as primas até a minha mãe morrer, mas elas são umas jóias, são as minhas primas. E descobrimos coisas em comum, fomos todas operadas ao maxilar, precisámos todas de fazer uma cirurgia de correcção...
Que história. Mas, sim, não deve ter sido fácil para a sua mãe.
Não foi. E, por isso, ela foi sempre o "quero, posso e mando", foi assim que se safou e foi assim que ela era comigo, tentou sempre à bruta. E eu era tão fácil, bastava ela dizer: "Ó João…". Mas não. E eu continuava a portar-me mal. Também andei no St. Julian’s, os meus pais fizeram esse esforço. Como eu tinha o cabelo desta forma e era gorducha, arranjaram-me, lá no colégio, o cognome de Gungunhana, eu não achava graça nenhuma. Passei o meu bocado. Era toda a gente loura, magra, cabelo lisinho, e eu gorda, com óculos e montes de cabelo. Era um bocadinho martirizada. O que é que eu fazia? Portava-me bem? Chorava e punha-me num canto? Não! Eu batia neles, sobretudo nos rapazes. Havia imensas queixas e lembro-me de a minha pobre mãe dizer: "Não batas nos meninos…". A minha adolescência foi um rol de disparates.
E de histórias... Foi na natação, no balneário, que se apercebeu que tinha uma voz com grande volume. E que berrava mais alto que uma amiga…
A Cândida. Ela é uma cantora belíssima, cantava ópera. Nós tínhamos uns vinte anos e tirámos o curso de nadador salvador, que não serviu para nada porque, na altura, não davam emprego a mulheres. Nos balneários, ela começava a cantar, eu só sabia duas músicas, então comecei a berrar e a berrar, empolguei-me e berrava mais alto do que ela, sendo que ela era uma cantora a sério e eu só estava mesmo aos berros, mas percebi que tinha volume – "Eu berro mais alto que a Cândida". Mesmo nos balneários do aikido – pelos vistos, os balneários têm imensa importância na minha vida (risos) –, eu estava sempre a cantarolar qualquer coisa. "Eras tão chata", dizem-me as minhas amigas. Mas estava longe de pensar que iria ser cantora. Ocorreu-me fazer várias coisas com a minha vida, ser psicóloga, tirar Direito, dar aulas de natação, que dei, mas não isto.
Quando é que foi a primeira vez que pensou nisso?
No aikido, fazíamos estágios que acabam invariavelmente em fogueiras na praia. Havia uma guitarra e um violão e eu cantava sempre a mesma coisa, o "El Preso Numero Nueve", da Joan Baez, e o "Embuçado", e fazia imenso sucesso. Mas só comecei a cantar a sério mais tarde, com 26 anos, quando entrei na escola do Hot. Na altura, a piscina onde eu dava aulas fechou, fiquei seis meses num ócio aflitivo e um vizinho, guitarrista, perguntou-me: "Porque é que não cantas?". Ele andava na escola do Hot ou ia concorrer à escola. Foi assim que eu fui. Por acaso. Antes disso, o meu pai, em desespero, aconselhou-me a ser hospedeira de bordo. Ele trabalhava na TAP. Era uma coisa que eu faria bem, acho eu.
E nunca poderia fugir de um avião…
Pois. Aliás, sempre morei ao pé de aeródromos.
O seu pai tem uma história engraçada, quando pilotava um avião que ficou sem motor…
Essa história até veio no jornal. O meu pai era piloto-aviador, dava aulas de pilotagem no aeródromo de Tires, e houve uma altura em que também era o director do aeródromo. Estava então a dar aulas a um aluno e o avião ficou sem motor sobre a praia de Carcavelos, em pleno Verão. E ele, que era absolutamente craque nos planadores, conseguiu pairar o avião, atravessou a praia toda e aterrou no colégio inglês, numa faixa estreitinha do St. Julian’s. Fiquei muito orgulhosa, mas eu sabia, o meu pai era mesmo craque. Naquela altura, e se isso fosse uma opção, eu podia ter tirado um curso de piloto, nunca se me ocorreu, eram só homens a fazê-lo. Só pensei nisso posteriormente, quando já estava irremediavelmente apaixonada por música.
E essa paixão, descobriu-a, então, na escola do Hot Clube.
Fui descobrindo e fui percebendo que aquilo era o que eu iria fazer a vida toda até morrer. Tive muita sorte em ir parar a este tipo de música, que é tão inventiva e que me permite andar por todo o lado. A liberdade de fazer o que quero na música, de poder improvisar no momento, chame-se jazz ou o que quiserem, é, para mim, fundamental. Aquilo encaixava na perfeição na minha personalidade. Sempre gostei de inventar, de imaginar, de ser criativa. E de me servir da criatividade para tudo, estou sempre a dizer isso aos meus alunos. "Sirvam-se da imaginação".
Não gosto desta nossa coisa coitadinha, do destino, da resignação inerente. Apesar disso, temos esta brisa. Ou esta ventania.
A imaginação levou-a até à Alemanha, numa "tournée" frenética com o Quinteto de Jazz. Foi em 1986.
Foi uma "tournée" duríssima e, depois de um mês e uma semana, eu fiquei com menos seis quilos. Vinte e quatro concertos em cinco semanas. Viajávamos todos ao molho numa carrinha. Num concerto, ganhávamos o equivalente a 50 euros, e eu lembro-me de ir a Berlim e de comprar uma camisola que custou três concertos! Ainda tenho a camisola.
E conheceu a pianista japonesa Aki Takase, com quem passou a trabalhar.
Fizemos um concerto na ex-DDR e, nesse festival em Leipzig, estava a Aki Takase, ela era a estrela. Lembro-me de olhar para ela, disfarçadamente, e de pensar: "Isto é como uma artista deve parecer". Ela tinha um casaco de pele falsa, e ainda bem, uns saltos grandes, uma mini-saia por aqui, com meias de vidro, estava pintadíssima, boca vermelha, cabelo muito preto, um cigarro na mão. Ela viu o meu concerto, gostou e, mais tarde, andou à minha procura para fazermos um duo, e fizemos, entre 1987 e 90. Até eu ter o meu filho.
Foram os "loucos" anos 80.
Andámos por todo o mundo, foi incrível. Uma das críticas que saiu quando fui tocar ao Japão com a Aki dizia: "Aki Takase, concerto magnífico com rapariga forte que veio do país que nos trouxe as armas de fogo". Ela dizia: "It´s good, it’s good". E eu: "Are you sure?" Foi muito engraçado, e até aproveitei para fazer aikido. Descobri o Aikikai de Tóquio e fiz um brilharete!
Diz mesmo que foi o aikido que a "salvou".
Porque eu tinha uma energia descontrolada e uma fome de viver, um frenesim incrível. Depois descobri os rapazes, comecei a namorar imenso, e sofria, e fugia das escolas. Também estive no colégio da Bafureira, de onde fugia para ir ver o namorado. Só fazia disparates. Uma vez, num estágio em Tróia, fui ao supermercado, comecei a tirar chocolates e a distribuí-los: "Queres? Toma". E assim ganhava importância para os outros. Só que aquilo tinha câmaras e prenderam-me. Meu pobre mestre, o que ele passou connosco… Eu, descalça, com um cabelo enorme e toda suja de chocolate. Mas o chefe da polícia era uma delícia. Pôs o meu objecto de delito sobre a mesa. "Já que roubaste, come", disse-me. "E agora vais humildemente sair daqui com a cabeça baixa e dizer que levaste uma grandessíssima descompostura minha". Nesse mesmo estágio, tive um ataque de apendicite, fui para o hospital em Cascais, passou a crise, eu queria voltar para Tróia e fugi do hospital. Minha pobre mãe, minha pobre mãe. Eu só fazia asneiras quando era miúda.
Tudo isso num Portugal pré-25 de Abril ou com uma democracia ainda muito jovem. A Maria João fez 60 anos em Junho. Como olha para o país? Continua muito conservador?
Eu acho que este nosso país abriu, apesar de continuar aqui sentado no fundo da Europa, com tudo o que isso diz, e com esta pobreza que nos é característica e inerente. Desde que Portugal deixou de ter as colónias, passámos a reduzir-nos à nossa real condição, que é sermos um país pobre e pequeno. Mas, talvez por estarmos sentados à beira-mar, com novecentos e tal quilómetros de praia, temos um arejamento, apesar desse conservadorismo e dos brandos costumes, que é algo que não suporto. "Olha, é o que se tem…". Não gosto desta coisa coitadinha, do fado, do destino, da resignação inerente. Apesar disso, temos esta brisa. Ou esta ventania.
Portugal deveria ser mais jazz e menos fado?
Portugal é multicultural, misturámo-nos em todo o lado onde fomos, para o bem e para o mal – Eu sou uma prova. E isso poderia ter permitido um arejamento de ideias mas, durante muito tempo, tal não era possível. Depois do 25 de Abril, vieram muitas pessoas das ex-colónias e algo melhorou, essa coisa multicultural fez com que a sociedade passasse a mexer-se mais, apesar de alguma resistência. Esta nossa diversidade é magnífica. Adoro a diversidade da língua portuguesa, adoro a forma como nos encontramos nesta mesma língua que é tão diversa e tão versátil. No Brasil e em África há uma ginga que dá uma outra elasticidade à língua portuguesa e que é maravilhosa. Sou completamente contra o acordo ortográfico. Uniformizar uma língua não é retirar-lhe os recantos e os detalhes? A pessoa deve poder mexer na língua. O Mia (Couto), que é o meu escritor favorito, ele faz isso tão bem, ele liga as palavras, isso é musical, é música.
Está sempre atenta ao som das coisas, não está?
Há música em todo lado. E cada país tem um quotidiano e tem um som.
Portugal tem um som? Qual é?
[Maria João fica em silêncio, ouve pessoas a falar, talheres a bater nos pratos]. Isto é o som de Portugal, é o som da fala. Olha a melodia que há nas vozes, "da-da-di-da", há um ritmo em todo o lado. É incrível, como eu sou curiosa e atenta, estou sempre a sacar estas coisas todas e roubo-as. Roubo tudo o que eu oiço. Roubo tudo para a música. E depois faço a minha sopa.
Numa entrevista, Mário Laginha dizia: "Fomos vendidos durante 48 anos como se tivéssemos apenas fado e folclore. Ponto. Não havia mais nada". E agora?
Já não é assim mas, há muitos músicos de jazz mas, desde que o fado foi considerado Património Imaterial da Humanidade, continuamos a ser, sobretudo, vendidos como fado. Apesar de tudo o que fervilha aqui, o país continua a ser vendido nesses termos. Eu tenho sorte, eu e o Mário temos tido muita sorte, mas, normalmente, é o fado que vai para fora.
O português é mais fado que jazz, é mais melancolia que improvisação? Generalizando tudo, claro.
Sim, em termos de personalidade, somos mais "brandos costumes". Só isso pode justificar estes fogos todos, sem se fazer nada, sem haver coragem política para mudar, de facto, alguma coisa.
O que é que a aborrece mais em Portugal?
Isso! Essa mesmice! Padecemos de sermos pequenos, de nos conhecermos quase todos uns aos outros. Há uma tendência para a coscuvilhice, eu perdoou a coscuvilhice, até porque sou um bocado coscuvilheira, mas não perdoou a resignação. É que isso pega-se. Esta coisa de nos sentarmos e de dizermos "pois, é assim…". Isso pega-se, e não pode ser.
Tenta transmitir essa "não resignação" ao seu filho? Ele também é atleta, não é?
Quando era miúdo, ele era atleta de competição de natação, mas foi para a faculdade e esteve parado muito tempo. Agora voltou, já tem 26 anos, mas juntou-se a grupos de ex-nadadores que fazem provas. No outro dia, foi a Paris e ganhou duas medalhas de ouro!
A competição parece estar presente em toda a família.
Está. A minha mãe, lá está, era nadadora. O meu pai? Eh lá, nunca pensei nele dessa forma! Mas sim, ele fazia provas de aterragem de precisão e eu tenho um armário grande cheio de taças que ele ganhou em "rallys aterragens". A competição é uma coisa boa, o que não é bom é humilhar os outros, competir é bom. Eu sempre fui assim e acho que isso me ajudou muito. Se fulano fazia tal, eu também queria saber fazer. Há uma frase que se pode encaixar muito bem em mim e que é, precisamente: "Ai, eu também quero!".