Durante 25 anos, Luís Lavrador foi o chef da Seleção Portuguesa de Futebol. Na mesa dos jogadores, há dois pratos que não podem faltar. O bacalhau e o arroz-doce. A sobremesa foi introduzida no menu no Mundial de 2006, na Alemanha, a pedido de Figo, um fã incondicional deste doce. É o espírito de equipa que ajuda os craques da bola a ultrapassarem as derrotas, garante. A culpa nunca é só de um, é partilhada. Isso foi uma lição que aprendeu no mundo da alta competição. A fome pelo saber levou-o à universidade. Tornou-se o primeiro chef doutorado em Portugal. Desde 2008 que estuda a Bíblia, à procura das nossas raízes culturais gastronómicas. Concluiu que "a mesa é o espaço onde as pessoas são capazes do melhor e do pior". E isso é válido ainda hoje. Falámos horas antes do jogo Portugal-França.
* Entrevista publicada originalmente a 12 de julho de 2024
Estamos a conversar no dia em que Portugal vai defrontar a França no Europeu de Futebol. Há um jogo histórico com a seleção gaulesa que ficou na história, que foi quando ganhámos o Euro 2016. Que memórias guarda desse dia?
Eu fui ver o jogo no estádio, junto com ex-jogadores da Seleção e com membros do ‘staff’. Estávamos na bancada, mesmo por trás do banco de Portugal. No fim do jogo, eles saltaram, saltaram... e foram todos para o relvado festejar. Eu fiquei sentado no lugar. Passado um bocado, eles vieram dizer-me: então, não vens para a festa? Eu respondi: eh pá, deixem-me estar só mais um bocadinho, porque não estou a acreditar nisto. Foi uma coisa inacreditável! Fiquei tão estarrecido com aquilo que achei que não podia ser verdade. Depois, lá fui também para o relvado festejar com os jogadores, andar com a taça nas mãos, tirar fotografias... A festa continuou nos balneários. Houve uma cena engraçada. Antes do jogo começar, eu passei junto ao balneário e um elemento do "staff" francês passou com um carrinho que tinha uma arca enorme, cheia de garrafas de champanhe abafadas com gelo. Antes do jogo, eles já estavam a preparar a festa.
Estavam convencidos de que iam ganhar.
Tão convencidos como nós estávamos no Euro 2004. Bem, aquilo passou. Regressámos ao balneário no final do jogo com aquela festa toda. E, quando já estávamos fartos de festejar, passa o mesmo senhor, agora com um semblante muito carregado, a empurrar a mesma arca das bebidas, ainda cheia de gelo, intacta. Guardo essa imagem de desolação e de tristeza para a vida. O engraçado é que nós não tínhamos champanhe para festejar. Tivemos de arranjar à última hora daquele champanhe de deitar fora, que só serve para fazer ‘pum’. O jeito que nos tinha feito aquele baú de garrafas de champanhe. Estive quase para ir lá perguntar-lhe se nos queria deixar o carrinho, mas não tive coragem porque ele até podia interpretar como se fosse uma afronta. [Risos] Ninguém gosta de perder, mas aos franceses custou-lhes um bocado digerir tudo aquilo. Ficaram com azia.
Nem se acenderam as luzes da Torre Eiffel com as cores da bandeira portuguesa, como estava previsto.
François Hollande, que era o Presidente francês na altura, no dia do jogo fez uma comunicação ao país, alertando que aquilo não era só um jogo de futebol, era muito mais do que isso. Estava em causa a imagem, a identidade francesa. Ele exacerbou e acho que esteve mal. Não passava de um jogo de futebol. Aquela final foi altamente politizada pelo poder francês. Não deve ser assim, porque isso depois eleva a adrenalina dos adeptos e pode criar problemas. Um Presidente a dizer que isto é mais do que um jogo de futebol é como dizer que é quase um caso de guerra. Foi um bocadinho extemporâneo. Mas, já lá vai.
Os jogadores dão a volta rápido depois de uma derrota?
Sim. Apesar de ficarem afetados por uma derrota, não lhes passa pela cabeça ficarem a penar para a vida, cabisbaixos. É muito interessante ouvirmos os discursos deles nessas ocasiões em que dizem: isto hoje não correu bem, estivemos aquém, mas vamos já pensar no próximo jogo e vamos trabalhar para darmos o nosso melhor. Há sempre uma atitude positiva. E é um discurso sempre no plural – nós, a equipa. Desse ponto de vista, acho que é uma lição de vida para muita gente. Todos nós trabalhamos em equipas. Aprendi muito a ouvir os jogadores. Uma derrota nunca é canalizada para um jogador porque falhou. A equipa falhou. Esse espírito que está latente neles também os ajuda a superar mais rapidamente as derrotas. Foi muita gente a falhar ao mesmo tempo. Isso faz com que a minha culpa seja só um bocadinho porque está diluída naquele grupo todo.
Como é que começou a trabalhar com a Seleção?
Foi em 1996, após o Europeu em Inglaterra. Nessa altura, o então presidente da Federação Portuguesa de Futebol, Gilberto Madail, veio desafiar-me para ser o chef da Seleção. Eu já o conhecia porque ele foi Governador Civil de Aveiro e teve outros cargos políticos na região. Trabalhei num restaurante chamado A Cozinha do Rei, no Hotel Afonso V, e ele era um cliente assíduo, conhecíamo-nos muito bem. Ele disse-me que a Federação estava a tentar profissionalizar mais os vários departamentos e precisavam de alguém na alimentação. E perguntou-me se estava disposto a colaborar. Eu disse que sim, mas que não tinha condições de assegurar por inteiro essa responsabilidade porque tinha o meu trabalho. Quando me chegou esse convite, eu já não estava em Aveiro, já estava a dar aulas na Escola de Hotelaria e Turismo de Coimbra. Acabámos por ficar eu e o chef Hélio Loureiro. Quando um não podia ir, ia o outro. Mas devo dizer que a minha primeira experiência foi muito má. Não gostei nada daquilo.
Porquê?
Eu gostava de ver futebol, enquanto espetáculo. Mas não conhecia os bastidores. Estava habituado a trabalhar com um determinado tipo de cliente, com outro tipo de público. Não com um público num ambiente fechado, com dinâmicas muito próprias. Sinceramente, não gostei. Mas o Carlos Godinho, o diretor desportivo, e o treinador na altura, o Artur Jorge, falaram comigo e convenceram-me a ficar. Porque eu fiquei com a ideia de que os jogadores não gostaram [da comida]. O Carlos Godinho disse-me que era mesmo assim, que tinha sido a primeira vez e que eu tinha de me habituar. O problema se calhar nem estava do lado de lá, se calhar estava em mim. A verdade é que fiquei lá durante 25 anos com uma alegria enorme de ter participado em todas as fases finais dos europeus e mundiais. É engraçado porque depois Portugal começou sempre a apurar-se.
Acha que a sua comida ajudou?
Muita gente me faz essa pergunta. Na alta competição, todos os detalhes são importantes. Na verdade, a alimentação, sendo um detalhe, também é importante para eles. A própria Federação Portuguesa de Futebol apostou muito em ter essa parte cuidada. Foi um trabalho que se foi fazendo ao longo dos últimos anos. Hoje, a alimentação junto de uma seleção de futebol está altamente profissionalizada. Até porque neste momento a equipa tem nutricionistas especializados na área do desporto que trabalham com a equipa da cozinha.
Que autonomia tem o chef da Seleção? Tem de respeitar um caderno de encargos? Trabalha em equipa com nutricionistas?
Sim, é um trabalho de equipa. Tanto quanto sei, o trabalho nos clubes é um trabalho muito idêntico, embora seja mais apertado em termos de distribuição alimentar. Isto é, cada jogador tem uma dose própria, quase pesada. Hoje vais comer tantas gramas de batata, tantas gramas de massa, tantas gramas de carne, tantas gramas de alface e por aí fora. Chega a esse rigor. No caso da Seleção, não é assim. Passa muito, obviamente, por um trabalho anterior, que é o de planear. Neste caso do Europeu de futebol, o trabalho de planeamento foi feito há meses. Os menus são todos previstos antecipadamente, até porque os hotéis onde a Seleção fica têm necessidade de saber com muito tempo o que é que a Seleção vai comer, para fazerem a aquisição dos géneros alimentares.
Mas quem define os menus?
No plano técnico da cozinha, o chef é autónomo. Prepara os alimentos, cozinha-os, coloca-os à disposição dos atletas, acompanha a refeição dos atletas. A Federação entendeu, há alguns anos, ter também na equipa um nutricionista, que faz a análise alimentar personalizada e também das necessidades do grupo. É preciso suprir as necessidades dos atletas, mas que isso não fuja muito do dia a dia do ‘staff’, porque o menu é o mesmo. O senhor presidente da Federação come o mesmo que Cristiano Ronaldo. E o treinador Martínez também come o mesmo que o Pepe. Tem de haver aqui um equilíbrio. O que acontece é que enquanto que o ‘staff’ come quanto quer e lhe apetece, o jogador é aconselhado a não o fazer. O nutricionista está por ali, mas o jogador é que se serve daquilo que entender, respeitando a quantidade que lhe foi aconselhada. É importante que a alimentação seja muito variada, que não se torne monótona, que seja apelativa e agradável, principalmente nas fases em que os jogadores estão imenso tempo juntos. O ato de comer é biológico mas, na minha ótica, tem muito mais de emocional, de psicológico.
Houve jogadores a pedirem pratos específicos?
No início, sim. Há vinte e tal anos, isso era uma prática instalada. Havia jogadores que não gostavam do que estava no menu e diziam: eu quero um bife, não me apetece comer isso. Os tempos eram outros. Hoje isso não existe. Comem o que há, de uma forma natural. Faz parte de uma nova escola. Estes jovens que são os nossos jogadores da Seleção já foram formados com esta ideia de que a refeição é aquela, é importante para eles, porque foi estudada para grandes atletas e para eles terem todas as performances de grandes atletas. Eles já inculcaram dentro da cabeça que é mesmo assim. Mesmo os mais velhos, o Pepe e o Cristiano Ronaldo, são um exemplo. Para o Cristiano Ronaldo, aos 40 anos, estar com aquele vigor físico todo, implica muito cuidado alimentar e não só. A alta competição no futebol é uma indústria em que envolve milhões. Cada dedo dos pés ou cada perna vale milhões. Para poderem aspirar a ser grandes atletas e a ser cobiçados por grandes clubes, os jogadores têm de ter um desempenho acima da média e muita disciplina.
O bacalhau tem de ir sempre à mesa da Seleção?
Sempre. O bacalhau faz parte do campeonato. Se estivermos no estrangeiro dois ou três dias e o bacalhau não chega, eles começam logo a perguntar quando é que há bacalhau. A Seleção é composta na sua maioria por jogadores que estão a jogar fora do país – Inglaterra, Alemanha, França –, e eles lá não comem bacalhau. Podem comer em casa, mas se calhar não com a mesma qualidade. Então esperam pela Seleção para comerem um bom bacalhau. E o bom bacalhau também é feito de uma maneira muito simples. É cozido com grão, couves, ovo, batata, cenouras. Para eles, o bacalhau com todos é uma coisa extraordinária, é um manjar. Depois temos um doce que foi instituído na Seleção, na Alemanha em 2006 – arroz-doce.
Depois esteve com ele na Seleção. Ele acompanhava a equipa muitas vezes.
Sim. Quem diria! Então, viver isto por dentro é qualquer coisa! Mas, desta experiência profissional, o mais importante que retirei foi conhecer várias culturas. Foi na Seleção que tive a possibilidade de viajar para muitos países. Lidar com outro tipo de pessoas, com outras culturas gastronómicas, foi de um enriquecimento extraordinário. Muito daquilo que hoje sei devo a essa interação. Os estágios da Seleção, normalmente, são feitos em centros de estágios ou em hotéis de cinco estrelas. Nós vamos privar com a elite da cozinha a nível europeu e não só. Estive na África do Sul, no Brasil, na Coreia... Privamos com chefs de grande valor, de grande qualidade e grande saber. E convivemos com equipas, com formas de trabalhar diferentes, manuseamos equipamentos que muitas vezes não temos cá. Há uma riqueza na transferência de conhecimento que se estabelece neste tipo de relações de trabalho. Pelo facto de ter tido esta oportunidade, comecei a aperceber-me de que, afinal, não sei nada. Foi no rescaldo de viajar muito, de ter tido muitas experiências no estrangeiro, que decidi ir para a universidade.
Hoje, os chefs de cozinha também são estrelas, tal como os craques do futebol. Como vê esta mediatização da profissão?
Há realmente muita mediatização. Mas também tem a ver com um trabalho feito dentro da própria profissão. No caso português, os profissionais redescobriram-se, renovaram-se por dentro e já começa a haver gente formada. Temos pessoas licenciadas e com mestrados em várias cozinhas deste país. Isso é importante porque acaba por trazer conhecimento. Esses chefs têm outros horizontes.
Tornou-se moda ser chef?
É uma realidade. Mas este reconhecimento da profissão começou por dentro. Foi uma revolução interna. Há 50 anos, a grande profissão da hotelaria não era o cozinheiro, era o empregado de mesa. O "maître d’hôtel" todo muito bem engalanado, com punhos de renda, luvas brancas e botões dourados, que levava as pessoas à mesa com todo esse glamour. Na cozinha, estava aquele cozinheiro barrigudo e até com uma imagem um bocado de alcoólico. Isso ficou para trás. Começou-se a criar uma nova imagem de um chef jovem, magro, muito estilizado, com uma indumentária muito para a frente, e depois o chef começou a aparecer na sala. Não foi coisa nova porque já Auguste Escoffier [1846-1935] o fez. O primeiro chefe a aparecer na sala foi ele, que vinha falar com os clientes e dedicava-lhes pratos. Este exercício de aparição na sala foi retomado. Esta nova geração aproveitou muito bem isto e relaciona-se de uma forma mais próxima com o cliente.
Tal como no futebol, também é muito fácil passar de bestial a besta no mundo da gastronomia?
É. Temos alguns casos, não só em Portugal, mas também no estrangeiro. Principalmente quando o chef se coloca naquela ‘onda’ das estrelas Michelin, se não consegue a estrela, é uma frustração enorme. Conheço casos de pessoas que já tiveram estrela e que a perderam e depois perderam um bocadinho o norte à vida. Às vezes chegar lá acima é muito fácil. Manter-se lá em cima, é que é muito complicado. Mas isso acontece em qualquer área de trabalho. A verdade é que os jovens reveem-se muito nessas estrelas. Na escola de hotelaria, numa primeira fase, temos de desmontar um bocadinho esse mundo das estrelas. Nem toda a gente é o Cristiano Ronaldo. Mesmo na cozinha, nem toda a gente pode aspirar a ter uma estrela Michelin. Há muito mais cozinha para além da estrela.
É professor na Escola de Hotelaria e Turismo de Coimbra. Sente que os seus alunos têm mesmo uma paixão pela gastronomia ou procuram a fama?
Neste momento, estou a trabalhar mais com alunos do ensino superior, na licenciatura de gastronomia. Mas acompanho os cursos de formação profissional. O que me parece é que se vive hoje uma grande efervescência, digamos assim, por essa questão da estrela. O jovem hoje, quando entra numa escola em formação profissional, já está praticamente a exigir ser chef. Não há curso nenhum de chef! Há cursos de formação de cozinheiros, cursos de formação de empregados de mesa, etc. O chef é um título que se adquire ao fim de algum tempo, pode demorar um ano, pode demorar 10. Depende muito da carreira que cada um faz. Quando digo isto, as pessoas ficam um bocadinho surpreendidas. Mas há essa febre de ser chef.
A cozinha portuguesa é uma das melhores do mundo?
Não vale a pena termos ilusões. Ainda não é. Os turistas que chegam cá acham a nossa cozinha fantástica. Isso tem muito a ver com essa nova leva de cozinheiros e de chefs que temos, que fazem uma cozinha portuguesa de autor, uma cozinha renovada, inovada. A formação da nossa escola passa muito por aí, por pegar na cozinha portuguesa e atualizá-la. Este trabalho está a ser feito e é por isso que a nossa inovação, esta nova abordagem da cozinha portuguesa, se tornou um atrativo. É muito comum hoje ouvir os turistas dizerem que uma das coisas que os atrai em Portugal é a nossa amabilidade, a segurança e a nossa gastronomia.
Temos sabido tirar partido desse património?
Acho que estamos a saber tirar. Mas temos um caminho pela frente. Temos de tornar a nossa gastronomia mais diplomática.
De que forma?
Tornando a cozinha portuguesa um caso nacional. Sermos nacionalistas nesse aspeto. Levarmos as nossas receitas e os nossos produtos para a ribalta e focarmo-nos no nosso tecido produtivo – na agricultura e nas pescas –, que têm de ter incentivos para produzir. O grande problema é que nós falamos muito na gastronomia portuguesa, com produtos de produção local, com produtos de economia circular. Mas depois esbarramos com um problema – temos muito pouca produção. Há todo um trabalho de incentivo à produção local a fazer, porque senão andamos todos a mentir uns aos outros. Quando alguns atores políticos começam a falar da nossa gastronomia e de produtos endógenos..., há uma politização da gastronomia. Temos de ter como arma de arremesso o nacionalismo gastronómico. E quem é que tem de pelejar pelo nacionalismo gastronómico? Os chefs. Têm de exigir isso aos políticos, não só em Portugal mas também a nível europeu. As políticas comuns da agricultura têm de obrigar a que cada país seja sustentável. Eu não posso dizer que estou a fazer um cabrito à volta da cultura gastronómica de Coimbra e o cabrito vir da Nova Zelândia! Há aqui qualquer coisa que não bate certo. Isso não é nada fácil de resolver, mas tem de se começar por algum lado.
É o primeiro chef português com doutoramento. É doutorado em Turismo, Lazer e Cultura pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Escolheu estudar a importância dos alimentos na Bíblia. Porquê esse tema?
Isso decorre de uma outra paixão que tenho, que é perceber a nossa matriz, a nossa raiz. Conhecer o passado foi sempre uma paixão enorme para mim. Foi isso que me levou ao mundo antigo. Na universidade, quando estava a preparar o mestrado, houve uma professora de história medieval, a Dr.ª Maria Helena Coelho, que me disse assim: se gosta disso, então vai ter de ler a Bíblia. Eu fiquei assustadíssimo porque é um calhamaço.
Mas porquê a Bíblia?
Porque há poucas fontes escritas sobre a alimentação. Há o livro de Apício, que é um livro de receitas do tempo do Império Romano, o historiador grego Heródoto tem algumas referências também sobre a cozinha no mundo antigo, a própria Ilíada e a Odisseia de Homero também têm algumas referências gastronómicas e alimentares à época... Mas uma compilação num compêndio só, a única que existia era a Bíblia. Então eu peguei na Bíblia e li-a toda. Comecei no capítulo um do Génesis e fui até ao capítulo 21 do Apocalipse. A minha tese de mestrado foi tratar a Bíblia de forma estatística para saber a variedade de alimentos que existem na Bíblia.
Mais tarde fez o doutoramento já na perspetiva da comensalidade também na Bíblia.
Fui desafiado novamente pela Dr.ª Maria Helena Coelho a fazer o doutoramento, mas agora para estudar os banquetes e as comidas à mesa... a comensalidade. O que fiz foi a partir da alimentação bíblica, da gastronomia bíblica, criar um produto gastronómico, um produto turístico.
Criou ementas com base nas descrições bíblicas?
Exatamente. Foi criar um enquadramento bíblico, que no fundo acaba por ser a nossa raiz alimentar e cultural. As refeições bíblicas, todas elas, têm o aspeto real, porque aconteceram, mas depois também nos transportam para o simbolismo da refeição. Era assim há 2000 e 3000 anos e continua a ser exatamente a mesma coisa. As motivações para a refeição não evoluíram rigorosamente nada desde há milhares de anos.
A mesa não está só associada ao prazer. É também lá que se fazem muitos negócios.
A mesa é o espaço onde as pessoas são capazes do melhor e do pior. Encontramos na Bíblia banquetes de terror, que acabam em guerra e mortes. Só para lhe dar um exemplo, no banquete de Herodes, ele recebe numa bandeja a cabeça de João Batista. Nem todos os banquetes são banquetes de partilha, de amizade. Muitas vezes, é um lugar de vileza. Hoje a mesa é vista sempre pelo lado positivo, e ainda bem que é. Envolve sã convivialidade, hospitalidade, estabelecimento de laços. Mas a parte negativa também existe. A refeição pode funcionar como subterfúgio, como espaço de suborno, de usurpação de poderes: eu vou-te oferecer isso para poder ficar com aquilo.
Qual foi a melhor refeição que encontrou na Bíblia?
Acho que a melhor refeição é a que está descrita no capítulo 21 do Evangelho de São João. É uma refeição que é preparada por Jesus Cristo na praia, ao largo do mar Tiberíades, para os seus amigos mais próximos. A refeição é muito simples, é peixe assado na brasa com pão.
E depois desta relação com a Bíblia, como é que se considera hoje? É um homem de fé?
Sempre tive fé. Acredito vivamente num Deus, numa força que está para lá de nós. Pratico, dentro do possível, a religião católica. Ler a Bíblia foi até uma forma de eu despertar mais para esta realidade. Porque os católicos, de um modo geral, são muito pouco elucidados. Não leem a Bíblia, são muito rotineiros, têm muitos rituais, mas ficam-se muito pouco pela leitura, pela reflexão. Penso que me tornei mais católico depois de estudar a Bíblia, porque me despertou para determinadas questões muito importantes. E, se calhar, isso deu-me uma fé mais esclarecida do que tinha anteriormente.