Notícia
Afonso Pais: Com a competição extrema, as pessoas tornam-se cópias umas das outras
O músico de Jazz Afonso Pais estudou na New School for Social Research, em Nova Iorque. Encantou-se com a vida da cidade, desencantou-se com a sua competição extrema, regressou a Portugal e lançou agora, com a cantora Rita Maria, o seu sexto disco, “Além das Horas”.
Todos desejamos que aquilo que fazemos não tenha de caber num tempo. Todos sonhamos estar além do tempo. "Além das Horas" é um disco que junta os músicos de jazz Afonso Pais e Rita Maria. Ele na guitarra e na composição, ela na voz. Afonso Pais nasceu em 1979, cedo aprendeu a tocar piano, bateria e guitarra, estudou na Escola de Jazz do Hot Clube de Portugal, tocou com a "Big Villas Band" e, aos 18 anos, foi estudar na New School for Social Research, em Nova Iorque, no programa de Jazz and Contemporary Music. Conheceu as caves e os clubes nova-iorquinos, encantou-se pela cidade, desencantou-se e voltou a Portugal. Dá aulas na escola do Hot Clube, tem colaborado com cantautores como Edu Lobo, Ivan Lins, Rui Veloso ou JP Simões e vai construindo os seus discos. "Além das Horas" é o seu sexto álbum e segue-se a trabalhos como "Terra Concreta", gravado em reservas naturais. "Gosto de pensar, gosto de compor e gosto de gravar os CD, gosto de todo o processo."
Comecei a estudar música através do contacto com instrumentos. Lá em casa havia um piano e uma guitarra, e uma das minhas memórias mais antigas é tocar numa tecla e tentar perceber o som que produzia. Eu queria saber para o que é que servia o instrumento. Fui tendo professores particulares e, aos 15 anos, iniciei um estudo mais estruturado na Escola de Jazz do Hot Clube. Quem quer estudar música, geralmente tem de escolher entre música clássica e jazz. Sempre gostei muito da improvisação e, por outro lado, não queria estudar música clássica. Se calhar não sou suficientemente paciente e disciplinado. Na música clássica, a execução está antes de tudo o resto e eu nunca me identifiquei com a ideia do perfeccionismo da execução. Na clássica, ou se é um pianista exímio ou se é um compositor muito dedicado. Ou uma coisa ou outra. Sinto-me mais livre tendo seguido jazz. O jazz é muito abrangente. Um músico não fica preparado apenas para o estilo de música que o preparou, fica com preparação para se adaptar a várias situações.
Fiz o curso de jazz da New School, em Nova Iorque, uma licenciatura de quatro anos, e depois fiquei mais dois anos a viver nos Estados Unidos com o visto artístico. Hoje, não sei se conseguiria… Diria que a minha grande escola foi o contacto que tive com grandes músicos de jazz que vão viver para Nova Iorque ou que passam por lá. O jazz é um muito "underground", acontece nos clubes, nas caves, e acontece até muito tarde. Eu queria conhecer tudo, e aquela minha estadia em Nova Iorque foi, num primeiro momento, muito atribulada e desorganizada, eu dormia pouco ou não dormia de todo.
Há sempre um período de encantamento em relação aos Estados Unidos, achamos que tudo pode acontecer. E, por vezes, não acontece nada. O sonho americano deve existir para algumas pessoas, mas a percentagem será mais pequena do que julgamos. Depois do meu encantamento, veio algum desencanto e foi nesse momento que decidi regressar a Portugal. Nova Iorque é uma cidade de tal forma competitiva que as pessoas estão mais focadas em ser melhores do que as outras do que em permanecer fiéis àquilo em que acreditam. E a competição extrema entre as pessoas acaba por criar cópias umas das outras. Senti que, ali, eu não iria ter o espaço que precisava para desenvolver o meu próprio trabalho.
Não foi com tristeza que voltei para Portugal, voltei com vontade de voltar. Não há nenhum sítio onde eu achasse que poderia ser mais feliz. Gosto de viajar, gosto de ficar fora algum tempo, e gosto muito de voltar. Por outro lado, tenho quase a certeza de que, se tivesse ficado a viver em Nova Iorque, não me teria dedicado da mesma forma à concepção dos meus álbuns. Podia ser um músico de palco ou de estúdio, e não ter a preocupação de fazer os discos, mas eu gosto de pensar, gosto de compor e gosto de gravar o CD, gosto de todo o processo.
"Além das Horas" é o nome do meu último disco e também o nome de uma das músicas. A letra chegou-me do poeta brasileiro Thiago Amud. Gostei muito do poema, que fala de um amor entre uma pessoa que está viva e uma pessoa que já morreu, é uma espécie de discurso da pessoa que já morreu a lamentar não conseguir descansar a pessoa que está viva. A ideia do "Além das Horas" surge um pouco daquilo que não carece da referência do tempo, de uma coisa que existe, atemporal, que é aquilo com que todos sonhamos: que as coisas que fazemos não tenham de caber num tempo, numa época ou numa tendência. Os compositores que estão fora do seu tempo tendem a ser compositores de músicas que não têm tempo. Existe a possibilidade de a música, e das artes em geral, transportarem o objecto artístico e o seu autor pelo tempo.
Satisfaz-me que as pessoas identifiquem uma certa portugalidade neste disco porque eu também a sinto, ainda que o álbum não tenha sido feito com esse propósito.
Acho que existe um jazz português mas, mais do que isso português, existem músicos de jazz cuja música que fazem soa a música portuguesa. Há parcerias fantásticas entre músicos de jazz e músicos de fora do jazz. Por exemplo, o Mário Laginha tocou com o José Mário Branco, o João Paulo Esteves da Silva tem um disco com o Vitorino e foi director musical do Sérgio Godinho. Infelizmente, essas parcerias não são mais comuns porque as editoras receiam investir em discos mais difíceis de categorizar e definir. Por exemplo, o Vitorino tem um disco excepcional, "Eu Que Me Comovo Por Tudo E Por Nada", com letra de António Lobo Antunes e direcção musical de João Paulo Esteves da Silva. O disco é lindo mas foi muito pouco promovido.
Uma das minhas inspirações é e sempre foi a natureza. É um porto seguro. Cada um de nós tem um lugar para o qual é remetido quando as coisas estão a correr bem ou menos bem, um lugar que pode estar relacionado com uma memória feliz de infância, e a natureza é um desses pontos para mim. Os meus pais sempre gostaram de natureza e tive a sorte de viajar e visitar lugares que conhecia dos livros. Guardo imagens fortes da Tanzânia, por exemplo, e todos os anos tento fazer uma viagem assim. Gosto muito da Indonésia, pelo tipo de natureza que tem. Como é formada por milhares de ilhas, a fauna tende a ser uma mistura entre a fauna do sudeste do continente asiático e a fauna australiana e, à medida que caminhamos de oeste para este, as espécies vão mudando. A Indonésia é um caleidoscópio de espécies.
O disco "Terra Concreta" até começou na ilha de Bornéu. Nessa viagem, compus algumas músicas e gravei uma delas na floresta. A experiência correu bem, vim para Portugal e fiz um itinerário por reservas naturais com vários convidados. Chegámos a levar um piano para o Gerês, estivemos no Tejo Internacional, no Guadiana… Gravámos o disco com um gravador de campo, daqueles que a BBC usa para os documentários sobre a vida selvagem.
No aspecto da produção, um músico hoje tem mais autonomia, mas controlar o processo de promoção é complicado, temos de estar muito informados sobre a forma de chegar às pessoas e isso consome muita energia ou custa muito dinheiro... Consigo viver da música porque também dou aulas em sítios como a Escola de Jazz do Hot Clube. O resto é irregular. Quando regressei a Portugal, em 2004, as câmaras municipais faziam imensos concertos, o Governo comparticipava, toda a gente apoiava a cultura e isso era um pouco irrealista. Deve existir um meio-termo. A minha experiência na América ensinou-me que não pode haver uma dependência total da arte em relação ao Estado, a arte tem de ser viável como um negócio. A palavra [negócio] não me assusta, só me assusta se eu quiser perceber muito sobre o assunto, e eu não quero perceber imenso, quero perceber o suficiente para sentir que existe uma viabilidade naquilo que faço.
Comecei a estudar música através do contacto com instrumentos. Lá em casa havia um piano e uma guitarra, e uma das minhas memórias mais antigas é tocar numa tecla e tentar perceber o som que produzia. Eu queria saber para o que é que servia o instrumento. Fui tendo professores particulares e, aos 15 anos, iniciei um estudo mais estruturado na Escola de Jazz do Hot Clube. Quem quer estudar música, geralmente tem de escolher entre música clássica e jazz. Sempre gostei muito da improvisação e, por outro lado, não queria estudar música clássica. Se calhar não sou suficientemente paciente e disciplinado. Na música clássica, a execução está antes de tudo o resto e eu nunca me identifiquei com a ideia do perfeccionismo da execução. Na clássica, ou se é um pianista exímio ou se é um compositor muito dedicado. Ou uma coisa ou outra. Sinto-me mais livre tendo seguido jazz. O jazz é muito abrangente. Um músico não fica preparado apenas para o estilo de música que o preparou, fica com preparação para se adaptar a várias situações.
Há sempre um período de encantamento em relação aos Estados Unidos, achamos que tudo pode acontecer. E, por vezes, não acontece nada. O sonho americano deve existir para algumas pessoas, mas a percentagem será mais pequena do que julgamos. Depois do meu encantamento, veio algum desencanto e foi nesse momento que decidi regressar a Portugal. Nova Iorque é uma cidade de tal forma competitiva que as pessoas estão mais focadas em ser melhores do que as outras do que em permanecer fiéis àquilo em que acreditam. E a competição extrema entre as pessoas acaba por criar cópias umas das outras. Senti que, ali, eu não iria ter o espaço que precisava para desenvolver o meu próprio trabalho.
Não foi com tristeza que voltei para Portugal, voltei com vontade de voltar. Não há nenhum sítio onde eu achasse que poderia ser mais feliz. Gosto de viajar, gosto de ficar fora algum tempo, e gosto muito de voltar. Por outro lado, tenho quase a certeza de que, se tivesse ficado a viver em Nova Iorque, não me teria dedicado da mesma forma à concepção dos meus álbuns. Podia ser um músico de palco ou de estúdio, e não ter a preocupação de fazer os discos, mas eu gosto de pensar, gosto de compor e gosto de gravar o CD, gosto de todo o processo.
"Além das Horas" é o nome do meu último disco e também o nome de uma das músicas. A letra chegou-me do poeta brasileiro Thiago Amud. Gostei muito do poema, que fala de um amor entre uma pessoa que está viva e uma pessoa que já morreu, é uma espécie de discurso da pessoa que já morreu a lamentar não conseguir descansar a pessoa que está viva. A ideia do "Além das Horas" surge um pouco daquilo que não carece da referência do tempo, de uma coisa que existe, atemporal, que é aquilo com que todos sonhamos: que as coisas que fazemos não tenham de caber num tempo, numa época ou numa tendência. Os compositores que estão fora do seu tempo tendem a ser compositores de músicas que não têm tempo. Existe a possibilidade de a música, e das artes em geral, transportarem o objecto artístico e o seu autor pelo tempo.
Satisfaz-me que as pessoas identifiquem uma certa portugalidade neste disco porque eu também a sinto, ainda que o álbum não tenha sido feito com esse propósito.
Acho que existe um jazz português mas, mais do que isso português, existem músicos de jazz cuja música que fazem soa a música portuguesa. Há parcerias fantásticas entre músicos de jazz e músicos de fora do jazz. Por exemplo, o Mário Laginha tocou com o José Mário Branco, o João Paulo Esteves da Silva tem um disco com o Vitorino e foi director musical do Sérgio Godinho. Infelizmente, essas parcerias não são mais comuns porque as editoras receiam investir em discos mais difíceis de categorizar e definir. Por exemplo, o Vitorino tem um disco excepcional, "Eu Que Me Comovo Por Tudo E Por Nada", com letra de António Lobo Antunes e direcção musical de João Paulo Esteves da Silva. O disco é lindo mas foi muito pouco promovido.
Uma das minhas inspirações é e sempre foi a natureza. É um porto seguro. Cada um de nós tem um lugar para o qual é remetido quando as coisas estão a correr bem ou menos bem, um lugar que pode estar relacionado com uma memória feliz de infância, e a natureza é um desses pontos para mim. Os meus pais sempre gostaram de natureza e tive a sorte de viajar e visitar lugares que conhecia dos livros. Guardo imagens fortes da Tanzânia, por exemplo, e todos os anos tento fazer uma viagem assim. Gosto muito da Indonésia, pelo tipo de natureza que tem. Como é formada por milhares de ilhas, a fauna tende a ser uma mistura entre a fauna do sudeste do continente asiático e a fauna australiana e, à medida que caminhamos de oeste para este, as espécies vão mudando. A Indonésia é um caleidoscópio de espécies.
O disco "Terra Concreta" até começou na ilha de Bornéu. Nessa viagem, compus algumas músicas e gravei uma delas na floresta. A experiência correu bem, vim para Portugal e fiz um itinerário por reservas naturais com vários convidados. Chegámos a levar um piano para o Gerês, estivemos no Tejo Internacional, no Guadiana… Gravámos o disco com um gravador de campo, daqueles que a BBC usa para os documentários sobre a vida selvagem.
No aspecto da produção, um músico hoje tem mais autonomia, mas controlar o processo de promoção é complicado, temos de estar muito informados sobre a forma de chegar às pessoas e isso consome muita energia ou custa muito dinheiro... Consigo viver da música porque também dou aulas em sítios como a Escola de Jazz do Hot Clube. O resto é irregular. Quando regressei a Portugal, em 2004, as câmaras municipais faziam imensos concertos, o Governo comparticipava, toda a gente apoiava a cultura e isso era um pouco irrealista. Deve existir um meio-termo. A minha experiência na América ensinou-me que não pode haver uma dependência total da arte em relação ao Estado, a arte tem de ser viável como um negócio. A palavra [negócio] não me assusta, só me assusta se eu quiser perceber muito sobre o assunto, e eu não quero perceber imenso, quero perceber o suficiente para sentir que existe uma viabilidade naquilo que faço.