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Folha de assentos

Uma Europa decadente anda entretida em exibições de força. Regra geral, escondem fraquezas. Ressurgem medos e culpas, pecados de um passado sem redenção. Tentada de novo pelo restauro dos seus muros, desvaloriza o muito que construiu em comum. Não há milagres.

10 de Março de 2017 às 13:00
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versalhes. O palácio onde o presidente francês se reuniu esta semana com a chanceler alemã e os primeiros-ministros da Itália e da Espanha, para discutirem o futuro da Europa, não podia ser mais simbólico. Simbólico de um certo fim de regime ou, paradoxalmente, de uma nova era de governo europeu mais absoluto e mais estratificado. Simbólico também de uma decadência francesa, que precisa da opulência passada para se dissimular. A poucos meses de perder o poder, quem sabe se para um inimigo do projecto europeu, François Hollande tem ideias para reforçar a linha da frente. Não são ideias para mobilizar os europeus, para um zelo maior na defesa dos valores da liberdade e da solidariedade ou para completar a arquitectura do euro. É apenas a promessa de mais directório e menos coesão. Hollande quer convencer-nos de que a Europa a duas velocidades evitará a explosão. Esquece que as duas velocidades já existem, seja na livre circulação de pessoas ou no euro, e nem por isso evitaram a desilusão europeia. Quando faltam ideias e convicções, sobram assomos de Luís XIV...

panamá. É um lugar geográfico entre as Américas do Norte e do Sul. Tem 75 km2, um canal que liga o Atlântico ao Pacífico e uma zona de livre comércio offshore. Por aí passa muito dinheiro longe dos holofotes, dos impostos, tantas vezes à margem de qualquer lei. Também dinheiro português, habitualmente sem grande (ou nenhum) controlo. Foi o que aconteceu durante os anos da troika e do designado ajustamento. Sabe-se pouco dessa corrente de milhares de milhões de euros que desaguaram no paraíso do Panamá. Sabe-se que muito do dinheiro foi do BES (pós-resolução). E sabe-se que não motivou atenção, muito menos preocupação, por parte das autoridades portuguesas. No dicionário Houaiss detenho-me no substantivo "panamá". Entre outros significados: "gestão desastrosa de empresa pública ou privada, em que os dirigentes visam enriquecer lesando os demais accionistas; roubalheira em empresa ou repartição governamental"… Em nome da decência e do respeito pelas vítimas do ajustamento, convém sabermos algo mais do que as costumeiras responsabilidades do sistema… informático.

milagre. Quem se dedica a fazer previsões, tem tudo a seu desfavor para errar. Não é de hoje, em que a incerteza estará mais viva do que nunca. É de sempre. Prever é antecipar e o antecipar tem demasiadas variáveis indomáveis. Acontece em muitas disciplinas, por maioria de razão na economia em que a matemática não é mais do que instrumental. Vem isto a propósito do "milagre" do défice orçamental português de 2016. Milagre, até certo ponto, disse a presidente do Conselho de Finanças Públicas, Teodora Cardoso. Milagre, só em Fátima, e para os crentes, disse o Presidente da República. Milagre? Não se invoque em vão o nome de Deus, disse o primeiro-ministro. Parece que Teodora Cardoso não é crente e os milagres não serão da ordem da economia, embora se fale de alguns milagres económicos. Prever é difícil como difícil é cumprir uma previsão. Não é linear. Exige política e empenho. O milagre é da ordem do inexplicável pelas leis naturais. Não será um fim. Como dizia Millôr Fernandes, que não era especialista em finanças públicas: "No princípio era o milagre, todo o mal começou com as explicações."

praxe. Um estudo elaborado por investigadores da Universidade do Porto e do ISCTE de Lisboa conclui que a maioria das praxes se realizam nas instalações do ensino superior, que os dirigentes das instituições se reúnem com as comissões de praxe e que há dinheiro público a subsidiar praxes. O termo praxe remete para costume, norma, procedimento correcto. A praxe a que nos referimos tem pouco, ou nada, de correcto. É um ritual com poucas décadas, se exceptuarmos Coimbra, que se confunde com humilhação pura, violenta algumas vezes. Estes rituais são responsáveis por maus tratos gratuitos, suportados por iniciados, que os reproduzem anos depois. A Universidade não pode confundir-se com um campo de humilhação. É pressuposto ser um espaço de conhecimento e valorização. Que a Universidade seja cúmplice com práticas prepotentes e violentas, as legitime, e até as subsidie, ultrapassa a racionalidade. Que a humilhação se torne praxe, costume, é um paradoxo inadmissível num centro de saber.

pecado. Miguel Real tem um novo livro. Depois da Nova Teoria do Mal, da Nova Teoria da Felicidade e da Nova Teoria do Sebastianismo, o escritor e filósofo lança agora a Nova Teoria do Pecado. É um exercício muito interessante sobre as origens do dito pecado, sobre o medo e a mentira, a culpa, a moral, a transgressão, a virtude e a religião. Sabemos que vimos moralmente do Cristianismo, diz Miguel Real, sabemos que nos situamos contemporaneamente na Modernidade, no Iluminismo, no Racionalismo, na dominância da Ciência e Tecnologia, mas desconhecemos para onde vamos. Estamos naquilo que designa por "Intervalo Civilizacional", um momento histórico ambíguo que desaguará numa sociedade dominada por um espírito tecnológico. História e prospectiva que nos ajudam a perceber como o pecado, o medo e a culpa edificaram o poder na Europa cristã, hoje tão decadente como perdida. 

rtp. A história da televisão em Portugal confunde-se em boa parte com a história da RTP. É ela o melhor espelho do Portugal contemporâneo. Por ela passaram e passam homens e mulheres construtores de mundo. Por ela nos vimos e revimos. Por ela ganhámos consciência de opressões e liberdades. Por ela vislumbramos outros horizontes. Esta semana completou 60 anos. Como cidadão, espectador e trabalhador da RTP é natural que sinta orgulho na sua história. Julgo que o sentimento é comum ao comum dos portugueses. Nem tudo foi exemplar, nem sempre resistiu aos condicionamentos do tempo, mas foi sempre imprescindível. Sê-lo-á cada vez mais se souber continuar à altura do serviço público que lhe incumbe. 


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