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Folha de assentos

Pairam medo, cobardia e morte. Amoleceram as convicções ao mesmo ritmo que enrijeceram as dissimulações. A falência da política abriu espaço ao atrevimento da esperteza. Os dias vão carregados de frustração.

03 de Fevereiro de 2017 às 13:00
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eutanásia. Maria Filomena Mónica começa um ensaio sobre a morte com a constatação de que uma das questões mais controversas do nosso tempo é a de saber se poderemos escolher o momento da nossa morte. O tema atravessa há muito a sociedade ao confrontar-nos com a última fronteira. Não deveria ser uma questão partidária, antes de tudo é uma questão individual e filosófica. Também política e jurídica, no sentido em que o Estado se justificou pela necessidade de protecção da vida. O direito inviolável à vida é parte fundadora do direito constitucional moderno. Não o dever irrenunciável, como argumenta a petição com que um conjunto de cidadãos desafiou a Assembleia da República a debater a despenalização da morte assistida. É o começo de uma discussão que interessa a todos e que só vale a pena se for serena e consciente dos riscos. A lei que poderá resultar deste debate não pode impor a ninguém o que quer que seja. Porventura, poderá permitir - como diz Filomena Mónica - uma escolha para os que desejem encarar a morte de frente.

carris. A Companhia de Carris de Ferro de Lisboa, mais conhecida como Carris, foi fundada em 1872, no Rio de Janeiro. Enfrentou peripécias várias: capital privado e capital público; capital estrangeiro e capital nacional; concessão municipal e empresa estatal; tracção animal, eléctrica e híbrida; verdes, laranjas e amarelos; um e dois andares… Evoluções tecnológicas e de serviço público que tornaram a Carris emblemática e decisiva para os que precisam de atravessar Lisboa. Decisiva também para o bom funcionamento das parcerias da esquerda parlamentar. A Carris é hoje uma nova areia na engrenagem. O Governo decidiu entregar a empresa à Câmara de Lisboa sem acautelar as observações dos seus parceiros. Quando o PCP chama o decreto ao Parlamento paira de novo o fantasma da TSU. Até porque o PSD está à espreita. Não é fácil colocar a geringonça nos carris...

cobardia. Uma das causas do populismo tem que ver com a frouxidão das convicções. Políticos disponíveis para todas as flexibilidades, vacilantes ao sopro das sondagens, moles de ideias e valores, treinados no eufemismo ao ponto de se tornarem eles próprios um eufemismo. As convicções mais básicas, fundadoras da civilização, não resistem à contabilidade da previsão de danos ou vantagens eleitorais. O que levou ao Brexit foi essa plasticidade moldável àquilo que pressupostamente o eleitorado gostará de ouvir. Assumir o risco da verdade quando se falava de imigração ou de contributo para a UE não pareceu conveniente. Conveniente pareceu manipular a estatística, difundir erros, mentir. Foi o que aconteceu no Reino Unido na campanha do Brexit. Muitos dos que pugnaram pela saída não acreditavam nela. Pensavam que podiam apelar ao sim que o não ganharia. Não queriam votar a saída no Parlamento para não serem obrigados a renegar-se de novo. Vão fazê-lo. Theresa May é uma das grandes intérpretes da dissimulação. A visita aos EUA e o que aí disse representam uma notória cobardia política. A necessidade britânica pós-Brexit não justifica tudo. Cumplicidades e entusiasmos com os atentados de Trump aos direitos humanos, aos refugiados, ao direito internacional, à civilidade e a tudo a que costumávamos identificar como a decência, é indesculpável. Quem tem medo de assumir convicções só pode considerar-se um cobarde.

violência. Talvez seja um sinal dos tempos. Multiplicam-se os exemplos de regressão civilizacional. Na Rússia, a violência doméstica passou a ser tolerada. Bater na mulher ou nos filhos vai deixar de ser crime, desde que não haja lesões graves e que a agressão não seja repetida. Assim aprovou a Duma. Uma emenda legislativa que mereceu a concordância de 368 deputados, contra dois. Os autores da lei defendem o direito dos pais a disciplinar os filhos. Parece que havia o perigo de "destruição da família", considera a Igreja Ortodoxa, que se envolveu na emenda. Há dois anos, a violência podia ser punível com dois anos de prisão, agora só em casos extremos haverá punição leve. Na Rússia, pelo menos 14 mil mulheres e duas mil crianças, morrem vítimas de violência familiar. Outras duas mil crianças suicidam-se perante a violência dos pais.

relógio. Não será uma surpresa, mas até os cientistas ficaram mais preocupados com a presidência de Donald Trump. Dois anos depois do final da II Guerra Mundial, os editores do Bulletin of the Atomic Scientists da Universidade de Chicago resolveram criar um relógio que ajudasse a perceber a dimensão dos riscos para a Humanidade. A hora apareceu assim como a medida do perigo, sobretudo climático e da ameaça nuclear. Quanto mais próximo da meia-noite, mais perigoso. Em 1947, os ponteiros do Doomsday Clock ficaram a sete minutos da meia-noite. Com Donald Trump no poder, o apocalipse fica mais perto. Isto é, os cientistas adiantaram os ponteiros 30 segundos. Estamos a dois minutos e meio do desfecho fatal. O tempo é revisto em função do risco detectado por vários especialistas, entre os quais se contam 15 prémios Nobel. Até ver, o relógio é apenas uma metáfora.

zweig. Recordar o escritor e humanista Stefan Zweig quando recomeçam a levantar-se os demónios da intolerância é urgente e útil. Não que a História se repita necessariamente. O que se repete são as mais sombrias fraquezas humanas. Daí que o contraste da vida de Zweig, o da cosmopolita Viena e da Europa antes de 1914 e o das Guerras Mundiais, nos ajude a perceber como o progresso civilizacional pode ceder facilmente à vertigem da irracionalidade. Judeu, viveu em Viena e Salzburgo, emigrou para Londres em 1934 e depois para o Brasil, onde viria a suicidar-se em 1942. "Adeus Europa", de Maria Schrader, é um filme sobre Stefan Zweig que retrata os últimos anos do escritor. Estreia no final deste mês, quando se completam 75 sobre a sua morte. Um bom pretexto para também o lermos nestes tempos carregados.


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