Outros sites Medialivre
Notícia

Vítor Santos: “Na microgeração deve apostar-se tudo no autoconsumo”

A nova fase da transição energética passa pela produção descentralizada que ajudará também a ultrapassar a rejeição das comunidades aos grandes parques solares, defende o antigo presidente da ERSE.

17 de Julho de 2024 às 12:30
  • Partilhar artigo
  • ...
Video Player is loading.
Current Time 0:00
Duration 53:01
Loaded: 0.31%
Stream Type LIVE
Remaining Time 53:01
 
1x
    • Chapters
    • descriptions off, selected
    • subtitles off, selected
    • en (Main), selected

     

    Bilhete de identidade Idade: 69 anosCargo: Professor no ISEG, Lisbon School of Economic & Management (desde 1986); secretário de Estado da Indústria e Energia (1999-2001); presidente da ERSE - Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (2006-17);Formação: Doutorado em Economia pela Universidade de Lisboa (1989)

    Especialista em energia e presidente da Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE) entre 2006 e 2017, acompanhou toda a transformação do setor elétrico durante as últimas quase três décadas. Vítor Santos é o convidado desta semana das "Conversas com CEO", integradas na iniciativa Negócios Sustentabilidade 20|30. Durante mais de meia hora, numa entrevista que pode ser ouvida na íntegra em podcast, faz-se o balanço do caminho feito até agora e olha-se para o futuro. Depois da fase em que se descarbonizou substituindo a produção centralizada de base fóssil pela renovável, a nova era vai ser marcada pela descentralização, aproveitando basicamente os telhados do país. Será preciso mobilizar as pessoas para esta nova etapa, diz, e recomenda que quem investe em microgeração aposte no autoconsumo, comprando até baterias. Apesar disso, é ainda preciso que quer a REN como a E-Redes invistam na infraestrutura de redes.

     

    Acompanhou toda a mudança do setor elétrico em Portugal. Do que se lembra como mais marcante?

    Muito antes de ter sido nomeado para a ERSE, quando estava no Ministério da Economia, participei na reunião em que foi aprovada a primeira diretiva da liberalização do setor elétrico, em 1996. Já vamos na quarta. Era bastante intrusiva, com uma separação do setor em quatro segmentos: produção, transporte, distribuição e a comercialização. Procurava-se separar os monopólios naturais das atividades potencialmente competitivas. Antecipei que íamos assistir a grandes transformações. E na Europa, e em particular em Portugal, as coisas acabaram por correr muito bem.

     

    Olha para trás e fica espantado?

    Se olharmos para trás ficamos, de facto, espantados. Como é que foi possível introduzir, por exemplo, leilões como aquele que aconteceu recentemente em alternativa a processos administrativos, contratos a longo prazo negociados administrativamente entre o Estado e os operadores?

    A descarbonização reduz a dependência energética.

    O objetivo era gerar concorrência. Esse objetivo foi atingido?

    Na comercialização foi atingido, temos uma forte concorrência. Aconteceu outra coisa muito importante: a criação do MIBEL, que permitiu integrar os dois mercados, Espanha e Portugal. Na sequência disso, as empresas espanholas passaram a ter uma grande atividade em Portugal. E o que aconteceu em relação à descarbonização do setor elétrico em Portugal é verdadeiramente impressionante. Por exemplo, 61% da eletricidade consumida foi de origem renovável em 2023 e as emissões de CO2 [do setor elétrico] diminuíram 67% quando comparamos com 2005. Além disso, a dependência energética desceu de cerca de 88% em 2005 para 67,3% agora. Isto significa que a descarbonização reduz a dependência energética.

     

    E isso também teve a ver com a reengenharia do setor e a liberalização?

    Claro. A transição energética seria possível, mas não com este dinamismo. A liberalização criou um quadro de incentivos que alterou o processo de tomada de decisões no setor energético. Também houve uma postura proativa dos decisores políticos e elencava apenas quatro: a hídrica, já com um peso muito expressivo e que hoje representa 42% da eletricidade de base renovável; depois as eólicas, que emergiram na transição do milénio; a partir de 2020 tivemos a solar, que corresponde hoje a cerca de 24%; e, finalmente, a produção descentralizada que cresceu 5 vezes entre 21 e 23, tendo hoje um peso de 11%. E estamos a falar de um período de 25 anos.

     

    Na descentralizada falamos de aproveitar os telhados de Portugal para produzir energia. Este é um dos desafios que temos pela frente e em que estamos atrasados?

    No Plano Nacional de Energia e Clima a meta é duplicar a capacidade instalada de eólica e quadruplicar a de solar até 2030. É um desafio enorme. Optámos por fazer a descarbonização mantendo o paradigma, ou seja, substituindo produção centralizada de base fóssil por produção centralizada de base renovável. A questão que se põe agora é porque não se avançou mais rapidamente [na descentralizada]. Porque foi necessário fazer a mudança de paradigma do centralizado para o descentralizado, o que obrigou à criação de novos atores no setor elétrico.

     

    Que novos atores?

    As chamadas unidades de produção para o autoconsumo que podem consumir, produzir, injetar na rede e armazenar eletricidade. Há soluções individuais e há as chamadas comunidades de energia. E é preciso quebrar barreiras, mobilizar as pessoas, mostrar o que está a ser feito para que percebam que há entidades, muitas delas privadas, que estão a fazer esses projetos. Há também um problema de iliteracia financeira e energética. Muitas vezes os investimentos não são muito expressivos à cabeça e o período de recuperação é em geral muito baixo, estamos a falar de 6 ou 7 anos.

     

    Sendo a produção descentralizada a prioridade há um problema com o excesso de produção. Na prática, as pessoas, o que estão a fazer é entregar na rede energia à borla...

    Sim, é isso que acontece. Há um outro agente muito importante [na produção descentralizada] que são os agregadores, que ligam o autoconsumo e o mercado, ou seja, estão disponíveis para comprar a eletricidade aos microprodutores e vendê-la no mercado.

     

    Problema: os microprodutores para venderem têm quase de ser uma superempresa.

    Temos de olhar para o descentralizado de uma outra forma. Quem queira fazer investimento no descentralizado, na microgeração, deve escolher uma dimensão ajustável ao nível de consumo e apostar tudo no autoconsumo. Tem de comprar baterias, cujo custo decresceu nos últimos anos para 90% e vai diminuir mais. Depois têm de procurar acomodar o seu consumo ao longo do dia. Se fizerem isso, apenas pagam a potência contratada por terem contador. Eventualmente os excedentes podem ser injetados na rede. Acredito que, com o desenvolvimento do mercado, os agregadores se interessem cada vez mais. A maior parte das empresas de energia está apostada no desenvolvimento do descentralizado.

     

    Quem quer investir na descentralizada tem de saber primeiro qual o seu consumo para determinar a dimensão adequada?

    As pessoas utilizam o vendedor da tecnologia como consultor e não devem fazer isso. Devem consultar uma pessoa que saiba do assunto.

     

    A ADENE, por exemplo?

    Exato, a ADENE está disponível para dar algumas informações.

     

    Os projetos de energia renovável estão a tornar-se menos rentáveis, com a redução do preço e o fim da subsidiação. Antecipa uma redução do interesse em investir neste setor?

    Não me parece que seja isso que está a acontecer. O investimento tem sido brutal, sobretudo em solar. Tive o privilégio de ser presidente do júri dos três recentes leilões solares e deram resultados inacreditáveis. No primeiro leilão participaram 64 empresas globais. Confesso que fiquei surpreendido. O sistema admitia a possibilidade de haver prémios e, em muitos casos, o preço da licitação ficou em metade. 

     

    Mas como há mais oferta de renovável, o preço da energia diminui. E isso torna os projetos menos rentáveis.

    Isso é outro problema e tem de ser resolvido. Os preços no mercado estão muito baixos desde o início do ano. De qualquer maneira, nunca chegaremos ao ponto, numa perspetiva de longo prazo, de os preços não permitirem recuperar os custos dos investidores. A Comissão Europeia, por causa da guerra da Ucrânia e dos preços elevados, acabou por fazer uma reforma do modelo de organização do mercado da eletricidade. E as linhas de orientação respondem também um pouco à necessidade de criar condições propícias ao investimento no solar, nas eólicas e até em algumas tecnologias que não sejam maduras. Uma coisa que resulta desta reforma é que os investidores que apostam em indústrias que não sejam maduras ou em que seja necessário dar um incentivo ao investimento, poderão beneficiar.

     

    Mas essa regulamentação vai fazer subir o preço da energia?

    Não. Vai permitir que a remuneração dos investidores seja eficiente através de mecanismos de mercado. O que aconteceu transitoriamente é que os preços desceram muito, com dias ou horas com preços negativos. Isso não é sustentável. A nova reforma do mercado propõe intervenções, assentes em mecanismos de mercado, que permitem identificar o preço eficiente para o estabilizar e permitir que haja investimento. Sendo certo que os preços vão descer, porque as tecnologias assim o permitem.

    Tem de se fazer um investimento em redes.

    As redes em Portugal – é outra crítica que também ouvimos muito – são um constrangimento para a expansão da renovável?

    Sim, são um pouco. Tem de se fazer um investimento em redes, quer de transporte, quer de distribuição, para permitir que a energia resultante do investimento, que está a ser feito e que vai continuar a ritmo crescente, seja injetada na rede.

     

    A crítica é dirigida à REN e à E-Redes? As duas empresas não estão a acompanhar o dinamismo do mercado? Especialmente a E-Redes?

    Sim, admito que sim. E isso tem de ser resolvido. Mas também não podemos cair na posição contrária. O regulador não pode dar um sinal às empresas de que é preciso investir, investir, investir em rede.

     

    Porque vamos entrar na fase da descentralização?

    Exato. Tem de haver planeamento. Porque uma parte do investimento da E-Redes vai ser cada vez menos utilizado. 

     

    Os grandes parques solares têm impacto nas comunidades e em Espanha e até em Portugal criaram alguma revolta nas comunidades. É um problema? Não corremos o risco transformar o Alentejo num parque solar?

    Estou absolutamente de acordo consigo. Há uma certa rejeição das comunidades. Não vale a pena pôr a cabeça na areia porque isso existe. E tem de se fazer várias intervenções. Uma delas é a produção descentralizada em que se ganha em dois domínios: menos redes e vantagens do ponto de vista paisagístico, da biodiversidade e da utilização de solos agrícolas. A produção descentralizada vai ajudar a resolver o problema. E no caso da eólica, quando chegar ao fim do tempo de vida útil, os equipamentos devem ser instalados exatamente no mesmo sítio porque o impacto já lá está. Outro exemplo é melhorar a inserção na paisagem do centralizado, se é que isso é possível. O pasto solar pode ter um efeito positivo. As ovelhas quase que trabalham na manutenção dos parques.

     

    Empresários e gestores criticam cada vez mais a regulação. Há hoje regulação a mais nesta área? Valia a pena olhar para a legislação e ver qual é que faz sentido?

    É uma coisa que faz sempre sentido. Não necessariamente regulação, é excesso de regulamentação.

     

    Existe um excesso de regulamentação?

    Admito que sim. Tenho um pouco essa perceção. Fazia sentido haver uma reflexão em termos muito abrangentes, não só no caso da energia que é bastante regulamentada por causa das suas características. Conheço bem os estudos académicos sobre o impacto negativo do excesso de regulamentação num processo de crescimento económico. Penso que um estudo muito orientado para as soluções podia ter efeitos.  

    Mais notícias