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Será o princípio do fim das políticas de diversidade nas empresas?

Os programas de diversidade, inclusão e equidade (DEI) enfrentam ameaças existenciais nos EUA com as mudanças no quadro político e legal a fazerem recuar uma série de empresas. Europa parece “blindada” a um potencial contágio, embora o escudo também tenha fragilidades.

O ativismo anti-DEI ganhou tração com a decisão do Supremo Tribunal dos EUA, em 2023, que pôs fim aos programas de discriminação positiva nas universidades. Kevin Lamarque/Reuters
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Foto em cima: O ativismo anti-DEI ganhou tração com a decisão do Supremo Tribunal dos EUA, em 2023, que pôs fim aos programas de discriminação positiva nas universidades.

Um dia depois de chegar à Casa Branca, Donald Trump assinou uma ordem executiva para "acabar com a discriminação ilegal e restaurar a oportunidade baseada no mérito", podendo colocar em xeque anos de avanços no combate a desigualdades não só na esfera pública, com o desmantelar de iniciativas ou corte de verbas, mas também no setor privado. Será o princípio do fim da DEI nas empresas? Eis a pergunta de um milhão de dólares.

"O ecossistema de DEI [Diversidade. Equidade, Inclusão] é tão mais vulnerável quanto as principais motivações das empresas para o adotarem residirem sobretudo no ‘business case’ e não em motivações intrínsecas de reconhecimento das questões de justiça social. Quando deixa de ‘ser bom para o negócio’ a retirada e ‘backlash’ [reação popular] são mais rápidas", diz Rosa Monteiro, investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. A antiga secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade (2017-2022) nota, aliás, que é isso que, de resto, tem acontecido no setor das tecnológicas.

A Meta e a Amazon figuram entre as gigantes que deram um passo atrás, com a dona do Facebook, WhatsApp e Instagram a justificar a revogação de programas, com "a mudança do paradigma legal e político", sendo que a Google também está a rever todas as iniciativas DEI. Wallmart, McDonald’s, Disney, Ford, Boeing, Citigroup ou Goldman Sachs são outros exemplos que ilustram a transversalidade setorial do processo de recuo em curso. Isto indepentemente da forma: há casos de reversão (parcial e total) de práticas ou metas, de extinção de departamentos ou cargos dedicados à DEI e outros em que há uma nova "roupagem" ou mudanças de semântica.

"Vivemos um momento de anomia moral do sistema neoliberal criado por radicais populistas e antidemocráticos" que "ao atacarem as práticas de DEI, atacam o último reduto, as empresas e organizações", observa Rosa Monteiro.

Focos de "resistência"

Também há, no entanto, movimentos de "resistência". A Microsoft, por exemplo, foi uma das que reafirmou compromissos, enquanto Apple remou contra a maré, depois de os seus acionistas rejeitarem uma proposta para acabar com as políticas de diversidade. Isto apesarr de, após a votação, o CEO, Tim Cook, ter admitido que a tecnológica pode ter de fazer mudanças para cumprir com o novo quadro jurídico. Essa proposta foi apoiada pelo National Center for Public Policy Research que fez investidas idênticas noutras firmas. A Costco foi uma delas, mas os acionistas alinharam-se com o "board" que também recomendou o chumbo. O mesmo sucedeu na John Deere, que anunciou, no verão, que iria cortar nos esforços de DEI.

O efeito dominó é sempre algo que temos de ter em cima da mesa, mesmo tendo uma perspetiva otimista.Mónica Canário
Associação Portuguesa para a Diversidade e Inclusão

Um inquérito junto de 350 altos quadros (C-level) de empresas dos EUA, realizado pela sociedade de advogados Littler, após a tomada de posse de Trump, aponta que muitas parecem estar a adotar uma abordagem mais comedida, numa lógica de esperar para ver, já que seis em cada dez executivos dizem estar a aguardar mais detalhes relativos às prioridades da nova administração - incluindo os mecanismos de execução - antes de avançar com mexidas.

O ativismo anti-DEI ganhou tração com a decisão do Supremo Tribunal dos EUA, em 2023, que pôs fim aos programas de discriminação positiva nas universidades, muitas das quais introduziram critérios raciais e étnicos na admissão para corrigir desigualdades do passado segregacionista dos EUA, capitalizada pela ala conservadora que a "esticou" ao mundo corporativo.

Claire Karlsson, chefe de estratégia e investigação de diversidade e inclusão na Mitt Liv, consultora europeia especializada em inclusão no trabalho, reconhece que os tempos que grassam não são fáceis: "Quando a DEI se torna um tema politicamente carregado há o risco de uma polarização crescente (...), tornando o diálogo construtivo e o progresso mais desafiantes". No entanto, afasta razões para alarme. "O que estamos a assistir é a uma reformulação em vez de um retrocesso. A maioria das empresas que estão a ajustar as suas políticas estão a cumprir novas regulamentações removendo as metas e os relatórios explícitos de DEI, mas continuam, ao mesmo tempo, os esforços para garantir o acesso justo a oportunidades e avaliações baseadas no mérito, bem como um sentimento de pertença". "Do ponto de vista das empresas, é importante lembrar que a DEI não é uma questão política", complementa.

Quando uma empresa é autêntica no trabalho DEI, isto não é algo que possa simplesmente abandonar de um dia para o outro.Claire Karlsson
Especialista em DEI na Mitt Liv

"Quando uma empresa é autêntica no trabalho DEI, isto não é algo que possa simplesmente abandonar de um dia para o outro - está incorporado nos seus valores", sustenta, embora admita que "a forma como a DEI é descrita pode evoluir, como tem acontecido ao longo dos anos": "Podemos ver alterações na terminologia, tal como o ‘controlo da gravidez’ passou a ‘planeamento familiar’".

Europa blindada ou "non troppo"?

Mónica Canário, coordenadora de projetos na Associação Portuguesa para a Diversidade e Inclusão (APPDI), fala de um momento "preocupante" para grupos subrepresentados, mas antecipa uma "estagnação" em vez de retrocesso sem precedentes, enquanto afasta um eventual contágio na Europa face "ao posicionamento diferente". "O efeito dominó é sempre algo que temos de ter em cima da mesa, mesmo tendo uma perspetiva otimista, mas realmente quero acreditar que a União Europeia (UE) e Portugal têm um compromisso muito específico com a DEI e que não vão alinhar nesta narrativa", frisa, embora advogando que mais tem de ser feito.

A responsável alude "a uma espécie de cordão sanitário", suportado, desde logo, por legislação. E é a isso - aponta - que multinacionais com sede nos EUA "se podem agarrar". Claire Karlsson subscreve, apontando para as "fortes leis e diretrizes antidiscriminação, que fornecem expectativas claras de conformidade para as empresas que operam na região", citando a ESRS [Normas Europeias de Relato de Sustentabilidade] e a CSRD [diretiva europeia de reporte corporativo de sustentabilidade]".

"É totalmente viável que as multinacionais americanas mantenham fortes compromissos de DEI na Europa, mesmo que ajustem a sua abordagem nos EUA. Já estamos a assistir a isso com empresas como Deloitte e Accenture, que reforçaram as estratégias de DEI no Reino Unido e na Suécia, respetivamente", reforça. Rosa Monteiro concede que estar na Europa "pode servir para suavizar as decisões restritivas que as empresas-mãe têm de tomar nos EUA", mas adverte que "não podemos, porém, também subestimar a influência de grupos de interesse conservadores nessas empresas e nas suas cadeias de negócio".

Muitas entidades advogam que legislação será a forma de blindar os esforços de DEI, mas na verdade esta também não está imune. Rosa Monteiro
Investigadora e ex secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade

Além disso, a ex-secretária de Estado para a Cidadania e Igualdade identifica fragilidades no suposto "escudo" da arquitetura legal no bloco dos 27: "Muitas entidades advogam que o cumprimento da legislação em matéria de não discriminação e de inclusão será a forma de blindar os esforços de DEI, mas na verdade esta também não está imune ao ‘backlash’".

"E isto não acontece apenas em países governados pela direita radical como Itália, Hungria e Polónia - que já há vários anos são fortes opositores dos direitos das mulheres, da igualdade de género, e dos direitos LGBTQ na União Europeia -, mas também em países como a Bélgica, onde o orçamento do organismo oficial para a a igualdade, o UNIA, levou um corte de 25% em 2025", elenca, apontando que tal fica também patente na própria decisão da UE de limitar a força e alcance de diretivas precisamente como a CSRD.

"De qualquer modo, o efeito dominó parece inevitável, tentando as empresas equilibrar os benefícios das práticas de DEI com as pressões para os cortes", vaticina.

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