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Renaturalizar para conservar

Das florestas urbanas de Leipzig às ribeiras do concelho de Cascais, a renaturalização das paisagens como forma de conservação e promoção da biodiversidade tem vindo a ganhar popularidade e é aplicada tanto em reservas naturais como em meio urbano.

11 de Março de 2022 às 14:45
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Criado na década de 1990 nos Estados Unidos da América, num contexto que incluía a criação de grandes espaços para a reintrodução de carnívoros, o conceito de renaturalização ("rewilding", no original) atravessou o Atlântico e tornou-se popular na Europa, onde ganhou um sentido mais amplo. Das florestas urbanas de Leipzig às ribeiras do concelho de Cascais, passando pelas escarpas do Côa ou pelo projeto com que o Reino Unido se propõe requalificar 300 mil hectares de terreno, a renaturalização como forma de conservação da natureza e gestão da paisagem veio para ficar.

Em 2019, um grupo de cientistas - que incluiu o investigador português Henrique Miguel Pereira, da Universidade de Leipzig - publicou um artigo na revista Science no qual defendia a renaturalização como estratégia preferencial para a conservação. Depois de analisarem diferentes casos, concluíram que esta técnica é eficaz na recuperação de sistemas complexos, além de ser mais barata e de garantir melhores resultados na biodiversidade no longo prazo. Um dos casos em análise foi o da floresta urbana da cidade alemã de Leipzig, cujo ciclo de inundações anuais tinha sido interrompido durante quase um século, tendo como consequência o crescente empobrecimento da biodiversidade. Depois das ações de restauro, que incluíram a reposição da possibilidade de inundações cíclicas, o ecossistema readquiriu parte da biodiversidade perdida.

Como Henrique Miguel Pereira explicou na altura ao Diário de Notícias, a abordagem da renaturalização dos ecossistemas é eficaz, uma vez que se baseia em três aspetos fundamentais: a reposição da complexidade da cadeia alimentar, o reforço da conectividade entre os territórios e a possibilidade de permitir que ocorram as perturbações naturais de cada ecossistema.


Em Portugal, a Associação Transumância e Natureza (ATN), proprietária da Reserva da Faia Brava, conta já com duas décadas de trabalho em prol da regeneração ambiental da região do Vale do Côa.


Além disso, a estratégia pode ser aplicada em escalas muito diferentes. Na última década, a autarquia de Cascais tem vindo a apostar na renaturalização das margens das ribeiras do concelho, com vista a aumentar a permeabilização dos solos - uma forma de minorar os efeitos das cheias - e de alargar os espaços verdes.

Numa dimensão totalmente diversa, já este ano, o governo britânico anunciou a criação de subsídios para os agricultores que queiram renaturalizar os seus terrenos. O Reino Unido, que alberga 33 milhões de ovelhas, é dos países europeus com a paisagem mais alterada - desde a época vitoriana que boa parte dos bosques foram reconvertidos em pastagens - e tem registado perdas notáveis de biodiversidade. Com a nova política de subsídios, o governo pretende chegar a 2042 com mais 300 mil hectares renaturalizados, aumentando a área de espaço silvestre, que atualmente não vai além de 12% do território.

O renascer de um corredor ecológico

Em Portugal, a Associação Transumância e Natureza (ATN) conta já com duas décadas de trabalho em prol da regeneração ambiental da região do Vale do Côa. Proprietária da Reserva da Faia Brava, a ATN realiza o seu trabalho quer nos cerca de mil hectares da Faia Brava como nos restantes 700 hectares de que também é proprietária, e também nos terrenos privados que gere. A associação de Figueira de Castelo Rodrigo integra ainda dois projetos transregionais de renaturalização de habitats. A Renaturalização do Grande Vale do Côa tem como objetivo reforçar um corredor de vida selvagem em 120 mil hectares e melhorar a conectividade na paisagem entre o Vale do Douro e a cadeia montanhosa da Malcata. Já o Life WolFlux, cofinanciado pela Comissão Europeia, tem o intuito de potenciar e melhorar as condições de vida do lobo ibérico a sul do Douro.

"Após os incêndios de 2003, que destruíram boa parte da reserva, o foco da ATN passou da proteção e conservação das espécies para a recuperação também dos ecossistemas", explica Vanda Brás, diretora executiva da ATN. A restauração da floresta autóctone mediterrânica é um dos pilares estratégicos da associação que, desde 2004, tem apostado na plantação de árvores e dispersão de sementes, a par com trabalhos de desmatação e podas de formação, que visam garantir que a reserva e as áreas envolventes fiquem menos suscetíveis aos fogos.


"As pessoas têm a ideia da renaturalização como a natureza selvagem. No futuro, oxalá conseguíssemos isso, mas infelizmente tem de haver alguma intervenção da nossa parte. Fazemos uma intervenção mínima para sustentar o projeto, e queremos que este trabalho seja um legado para gerações futuras", explica Vanda Brás. Até ao fim do ano, a ATN tem o plano ambicioso de plantar 10 mil árvores de 21 espécies autóctones. O objetivo é não só reflorestar a reserva como criar um banco de sementes interno numa região caracterizada por solos muito pobres, resultado de anos de pastorícia intensiva, de incêndios e de mudanças decorrentes da crise climática.

A ATN recolhe sementes e bolotas ao longo do ano, que depois são tratadas em viveiro e plantadas no terreno quando atingem o tamanho indicado. "Queremos criar um banco de sementes interno que, de uma maneira natural, irá ser espalhado pelos animais, pelas aves e pela chuva, não só pela Faia Brava como por todo o Vale do Côa. Isto permitirá renaturalizar todo o vale, que foi aquilo com que sempre sonhámos", explica Vanda Brás.

Para já, o trabalho de plantação exige cuidados extras, uma vez que, na Faia Brava, parte do trabalho de gestão da carga combustível é feito por garranos e vacas maronesas que, além de destroçarem mato e abrirem clareiras, contribuem para o enriquecimento do solo. "Para evitar que as vacas e os garranos destruam as plantações recentes, estamos a criar parcelas de um quarto de hectare que se mantêm vedadas por um período de cinco a 10 anos", explica a responsável.

Estas "ilhas florestais" estão a ser criadas por toda a reserva e devem ter resultados visíveis nas próximas décadas. "Acredito que dentro de cinco a 10 anos já se comece a notar alguma diferença. Mas, no que toca à criação do banco de sementes, estamos a falar em 15 ou 20 anos. Com o tempo, vamos ter uma renaturalização e uma regeneração da flora no Vale do Côa de uma forma muito mais natural e, aí sim, com muito pouca intervenção humana."


O crescimento de árvores de grande porte acabará por beneficiar a fauna, como é o caso do abutre-negro, que já se alimenta na reserva, mas não nidifica. A ATN tem vindo a construir plataformas artificiais para fomentar a nidificação da espécie, uma vez que, a par com a águia-de-bonelli, a cegonha-preta, o abutre-do-egito e do grifo, o abutre-negro é um dos ex-líbris da avifauna da Faia Brava.

Para beneficiar o habitat das diferentes espécies, são tomadas ainda outras medidas, como a recuperação e povoamento de pombais tradicionais (que aumentam a quantidade de alimento para as águias), o repovoamento com coelho-bravo ou a criação e o melhoramento de charcas. Estas duas últimas medidas beneficiam não apenas as aves rupícolas, sobretudo a águia-de-bonelli (que tem dois casais presentes na reserva, um dos quais nidificante), mas garantem melhores condições para um eventual regresso do lobo-ibérico ao território, uma vez que favorecem espécies-presa como o coelho e o corço. "No âmbito do projeto Life WolFlux, as ações para o corço e outras espécies-presa consistem em evitar que haja falta de água e numa monitorização mais apertada." Regressadas as espécies que são presas naturais do lobo, "no futuro, este acabará por regressar ao território de uma forma natural", explica Vanda Brás.

Preservar a mata atlântica em Coimbra

A poucos quilómetros de Coimbra, a Bio-Reserva da Senhora da Alegria, em Almalaguês, é outro exemplo de preservação e esforço de renaturalização da paisagem. Propriedade da associação MilVoz, que adquiriu o terreno em 2019, a reserva fica numa encosta virada a norte e é um exemplo bem preservado de bosque atlântico, muito raro na zona. "Houve uma redução grande da Mata Atlântica, mas nesta encosta temos uma mancha preservada que inclui castanheiros, carvalho alvarinho e olmos, por exemplo", explica Manuel Malva, um dos fundadores da MilVoz.

O objetivo da associação, que recorreu ao "crowdfunding" para adquirir a reserva, é criar na região uma rede de biorreservas que permita preservar "habitats reliquiais". Na Senhora da Alegria, além de ações de promoção da biodiversidade, como a colocação de ninhos artificiais ou o controlo de espécies infestantes, foi também feito um trabalho de recuperação do bosque envolvente do ribeiro dos Polomos, que corre no fundo do vale.
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