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Pedro Santa Clara: “Está a começar uma revolução tecnológica na educação”

O conhecimento está hoje livremente disponível. Para a escola fica construir a experiência de aprendizagem, levar as pessoas a quererem aprender, defende Pedro Santa Clara.

Helena Garrido | Pedro Catarino - Fotografia 27 de Março de 2024 às 12:30
Pedro Catarino
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    Bilhete de identidade Idade: 58 anosCargos: Tumo Portugal, "founder" (desde 2023), 42 Lisboa e Porto, "founder" (desde 2020), presidente da Fundação Alfredo de Sousa (2015-18), professor catedrático de Finanças da Nova SBE (desde 2008) e "assistant, associate e full professor" de Finance, da UCLA, EUA (1996-2009)Formação: Licenciado em Economia pela Nova SBE (1988), Doutorado em Finanças pelo INSEAD (1996)

    Fundador da Escola 42, que forma programadores, e da Tumo em Coimbra, complementar da educação tradicional, Pedro Santa Clara considera que estamos a viver o princípio de uma revolução na educação. Em 2023, diz, foram investidos 28 mil milhões de dólares em startups de tecnologia de educação e as grandes empresas tecnológicas estão a investir muitos biliões neste setor. Convidado desta semana das "Conversas com CEO", integradas na iniciativa Negócios Sustentabilidade 20|30, numa entrevista de mais de meia hora que pode ser ouvida na íntegra em podcast, Pedro Santa Clara é muito critico do que se está a passar no país em geral e na educação em particular considerando que "o modelo está à beira da falência". A falta de professores podia ser uma oportunidade para apanharmos a revolução que se está a iniciar na educação. Mas para isso era preciso dar mais autonomia às escolas.

     

    Está envolvido em vários projetos. Como é que tem tempo para tanta coisa? É um especialista em gestão do tempo?

    Não, até sou uma pessoa bastante desorganizada e sinto-me sempre um bocadinho preguiçoso. Acabo por fazer muita coisa porque tenho uma enorme dificuldade em dizer não. E o segredo é que não sou eu a fazer estas coisas todas. É uma equipa muito grande e muito boa, com quem trabalho há muitos anos e que tem competência, experiência, visão e capacidade de execução. 

     

    Falemos da Escola 42 em Lisboa e no Porto que forma pessoas na área digital. Querem expandir-se para além de Lisboa e Porto?

    Mais campus não, mas ainda vamos crescer bastante em Lisboa e no Porto. Hoje temos cerca de mil alunos. Somos já a segunda maior escola de engenharia de software e acho que vamos ultrapassar este ano o Técnico em Engenharia Informática. Vamos chegar aos 1.500 alunos. Trazer para o mercado cerca de 400 a 500 novos profissionais de desenvolvimento de software por ano, talvez ainda não chegue para as necessidades do país, mas é uma contribuição significativa.

     

    Porque se lembrou desta área?

    Havia uma falta muito grande deste tipo de profissionais em Portugal, o que é um bloqueio muito grande à economia. É uma preocupação nossa tentar contribuir para a sociedade, mas também pelo modelo pedagógico. Estamos convencidos de que a educação vai mudar muito nos próximos anos. Na Escola 42 não há aulas, há uma plataforma digital que conduz os alunos, através de uma série de desafios, cabendo-lhes pesquisar o conhecimento para os resolver por si e uns com os outros. A essência da escola é usar a tecnologia para aplicar os princípios fundamentais da pedagogia: aprender fazendo e uns com os outros. O "dirty secret" desta indústria é que há inúmeros estudos que mostram que a taxa de retenção de conhecimento de assistir a uma aula é da ordem dos 5%. É porventura das atividades humanas mais ineficientes, da maior perda de tempo.

     

    Tem um outro projeto nascido em 2023, a Tumo, que liga a arte à tecnologia. Porque é que o lançaram?

    Este é diferente. Os alunos têm dos 12 aos 18 anos e é complementar da educação tradicional, mas mais uma vez muito inovador do ponto de vista pedagógico. Neste momento temos mil alunos em Coimbra, vamos crescer para os 1.500. Os alunos escolhem as áreas que lhes interessam, como música, fotografia, cinema, animação, programação, robótica, desenvolvimento de jogos, design gráfico. E evoluem ao seu próprio ritmo, com uma mistura de autoaprendizagem e workshops. Tal como na 42, estão a aprender a aprender.

    A nossa escola pública tornou-se muito ‘guetizada’.

    E como selecionam os alunos?

    Por ordem de candidatura, com uma exceção em que damos prioridade aos alunos que vêm de meios mais carenciados. Orgulhamo-nos de ter quase todos os alunos institucionalizados de Coimbra. Uma das grandes preocupações da Tumo é que seja um ambiente em que se mistura gente de vários meios sociais. Portugal tem um problema muito grande de falta de mobilidade social. A nossa escola pública tornou-se muito "guetizada", com o abandono de uma parte substancial da população que foi para as escolas privadas.

     

    É possível contagiar o sistema educativo com esse modelo?

    Tenho esperança de que contagie, mas não tenho nenhuma ilusão de exportar este modelo, nem tenho certezas de que este seja o modelo. Está a começar uma revolução tecnológica na educação e estamos no princípio, o que exige que se experimente.

     

    Onde é que identifica essa revolução?

    No ano passado foram investidos 28 mil milhões de dólares em startups de tecnologia de educação. As grandes empresas tecnológicas, como a Microsoft e a Google, estão a investir muitos biliões em educação. E depois há muitas outras coisas nos passam quase despercebidas. Hoje, quem queira aprender qualquer tema, cozinha, fazer o nó da gravata ou astrofísica, a primeira iniciativa é ir ao YouTube. Até há pouco tempo, era na escola que estava o conhecimento, nas bibliotecas, na cabeça dos professores. Hoje o conhecimento é uma "commodity", está disponível, muitas vezes de forma extraordinariamente bem produzida, muito melhor do que 95% das aulas a que assisti na minha vida. A educação deixou de ser conteúdos. O importante é construir uma experiência de aprendizagem aliciante, levar as pessoas a quererem aprender. E a nossa escola está a fazer um papel relativamente mau. Portugal tem níveis de assimetria chocantes. Aos 15 anos de idade, os jovens que vêm dos 25% mais pobres da população têm em média dois anos letivos de atraso relativamente aos que vêm dos 25% mais ricos.

     

    E como é que corrigimos isso?

    O modelo está à beira da falência. A falta de professores é talvez o sintoma mais chocante. Mas há outros: a queda de resultados nos testes de PISA; a enorme assimetria no acesso à educação; o facto de gastarmos muito dinheiro –  custa 100 mil euros educar um aluno até ao 12.º ano na escola pública, cerca de oito mil euros mais caro do que nas mais caras escolas privadas. E mesmo assim temos o segundo desemprego jovem mais alto da União Europeia e salários baixíssimos. Não estou a dizer que é tudo culpa da educação. O nosso país tem uma longa tradição de não querer enfrentar os problemas, perdemos ambição e ousadia. Tendemos a encontrar remendos como "vou aceitar professores que não sejam formados"... É uma pena, porque à beira de uma revolução tecnológica no setor, podíamos ter a ambição de ser um dos melhores países do mundo em termos de educação.

     

    Por onde é que começaria para sermos um dos melhores países do mundo?

    Sou um liberal. Acredito pouco nos iluminados que sabem qual a solução para tudo. Precisamos de ter muito mais autonomia das escolas e acabar com esta loucura de planeamento central à moda soviética, em que temos o Ministério da Educação a alocar 135 mil professores a 5.000 e tal escolas, em que os diretores não podem recrutar, promover ou despedir. Nenhuma organização, nenhuma empresa no mundo funcionaria com esta regras. E talvez aquilo que mais me preocupa é que parece ter havido um esforço intencional de acabar com a meritocracia. Já não fazemos avaliações de professores, o que é impensável. Acabar com uma grande parte das avaliações dos alunos se calhar até é bem-intencionado pensando que "se não os avaliarmos, não se nota que uns estão mais mal preparados ou são mais pobrezinhos". Mas que, na prática, é quem acaba mais prejudicado, porque não tem forma de sinalizar a sua competência. Quem pode foge para escolas privadas mais exigentes. Parece quase uma corrida para o fundo numa espiral negativa.
     

    A inteligência artificial vai mudar profundamente a educação.

    Levando em conta o que se perspetiva, daqui para a frente nem um "canudo" pode ser necessário?

    Em certas profissões, é obviamente necessário, é quase imposto por lei. Noutras áreas está a diminuir. Algumas das empresas mais sofisticadas do mundo, a Apple, a Amazon, a Google ou a Microsoft, deixaram de pedir graus académicos na contratação. Têm plataformas de recrutamento capazes de medir as competências, não precisam do carimbo de uma universidade. Vamos ter cada vez mais empresas assim. E é claramente uma ameaça às universidades que durante muitos anos viveram no conforto de serem o carimbo de acesso a uma profissão. Estou convencido que nos próximos anos vamos ver muitos modelos alternativos de aprender. A inteligência artificial vai mudar profundamente a educação. É como se tivéssemos o nosso tutor pessoal, infinitamente paciente, que nos pode ensinar qualquer assunto.

     

    Esta transição corre o risco de aprofundar as desigualdades?

    Certamente. Embora a inteligência artificial seja um grande nivelador com potencial de corrigir muitas das desigualdades, no princípio é ao contrário. No curto prazo há os que têm acesso a essas ferramentas e os outros não, e isso cava o fosso. Daí a importância de projetos como a Tumo e temos a ambição de abrir centros destes em várias cidades.

     

    Qual é o próximo?

    Abrir em Lisboa este ano e vamos precisar de muito apoio, desde já da câmara. Queremos abrir também no Porto e em Braga e estamos a falar com as câmaras, empresas e a procurar espaços. A grande esperança é de que isto seja um exemplo. Na Tumo chegam grupos de 150 alunos de cada vez e passam lá duas horas. Vão buscar um tablet e escolhem o sítio onde querem trabalhar. Isto é impensável em 99% das nossas escolas com computadores em caixas, com medo que os alunos os estraguem. Até agora não tivemos problema nenhum. As pessoas queixam-se dos telemóveis nas escolas. Acho graça à questão, porque de certa maneira é um reconhecimento do falhanço. Estamos a proporcionar uma experiência tão medíocre aos nossos alunos que a tentação de abrir o telemóvel para ver o TikTok é grande. Nós não ficamos com os telemóveis, simplesmente não os usam porque estão entusiasmados com o que estão a fazer.

     

    Mas como é que se resolve o problema da captura política no caso da descentralização? O medo que as autarquias passem a ser também uma agência de emprego na escola?

    Há muitas coisas que se podem fazer. Esta gigantesca falta de professores é uma oportunidade. E há modelos de países como os EUA ou Inglaterra de escolas geridas privadamente, mas que prestam serviço público. Não lhes vou chamar PPP, porque é um termo carregadíssimo em Portugal e não tem de ser isso. O problema transcende muito a educação. Estamos num país que tem tido uma performance medíocre nos últimos 25 anos. O que me espanta é que mesmo assim haja toda esta vontade pública de estabilidade. Estabilidade na mediocridade? Quando chegamos a um ponto destes, temos de querer a mudança, não a estabilidade. Obviamente, dentro de uma rede de proteção, não estou a propor a anarquia ou o caos. Estou a propor injetar um pouco de ambição, de ousadia, de pensarmos fora do status quo que em muitos casos, não é ótimo, simplesmente aconteceu, é um acidente histórico. Porque é que nós temos o Ministério da Educação organizado desta maneira? Não é porque esta seja a maneira ótima.

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