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João Portugal Ramos: “Vai assistir-se no Alentejo a um repensar do setor da viticultura”

Quem produz pouco não tem hipótese de subsistir, defende João Portugal Ramos. Por causa das alterações climáticas em geral e a falta de água em particular.

Helena Garrido | Sérgio Lemos - Fotografia 24 de Abril de 2024 às 12:30
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    Bilhete de identidade Idade: 70 anosCargo: CEO, João Portugal Ramos - Vila Santa (1997); Consulvinus (1988); Enólogo, desde 1980; Centro de Estudos da Estação Vitivinícola Nacional de Dois PortosFormação: Licenciado em Agronomia

    Foi a partir de Estremoz que se expandiu para o Douro, as Beiras, o Vinho Verde e o Tejo, vendendo hoje para mais de 40 países. João Portugal Ramos, que é igualmente uma marca construída pelo próprio durante 40 anos, é o convidado desta semana de "Conversas com CEO" integradas na iniciativa Negócios Sustentabilidade 20|30. Numa entrevista de mais de meia hora, que pode ser ouvida na íntegra em podcast, falamos dos efeitos das alterações climáticas na viticultura e como as explorações se estão a adaptar às ondas de calor e à falta de água, mas também às restrições no uso de químicos, com o desafio maior a colocar-se na produção de vinhos biológicos. Na sua perspetiva, é inevitável fazerem-se mais barragens para retermos a água de que precisamos. Na viticultura várias medidas de adaptação às alterações climáticas já estão a ser adotadas e, nas suas explorações, até há algum tempo. E alguns dos efeitos podem ser o fim dos pequenos produtores.

     

    As alterações climáticas vão obrigar a que, principalmente, os pequenos produtores desistam de produzir vinho?

    Acho que sim. Os pequenos produtores principalmente, porque não têm escala. Tem sido muito discutido se se deve limitar as produções, mas penso que não. Tem de se deixar o mercado trabalhar por si. As pessoas que recebem uvas e que fazem vinho é que vão decidir se as querem ou não. E se conseguem vender o vinho é bom sinal.

     

    Nestes 40 anos, em que construiu o seu grupo um pouco por todo o país e foi um dos protagonistas da mudança no setor dos vinhos, qual o projeto mais interessante?

    Todos tiveram a sua especificidade. O mais entusiasmante e gratificante acaba por ser o meu. Mas, na década de 90 cheguei a ter 25 consultorias. A missão, como consultor, era entender o desejo do produtor enquanto dono da marca e tentar, com essa visão, incutir o nosso estilo, uma simbiose entre o perfil do produtor e o cunho do enólogo.

     

    É o enólogo do seu projeto?

    Sou, mas tal como na atividade de consultor não é um ‘one man show’. E hoje também tenho uma equipa, consoante a região onde estamos a operar. No centro da nossa operação, no Alentejo, somos três enólogos. As provas saem sempre de uma discussão entre nós. Claro que o meu cunho continua, por enquanto, a liderar, embora respeite muito as opiniões da enóloga que trabalha comigo há quase 27 anos e do meu filho João Maria, que está desde 2014 e também é enólogo.

     

    É raro haver mulheres enólogas?

    Cada vez há mais. Quando comecei, há 40 anos, havia uma enóloga, a Ana Maria, do Instituto da Vinha e do Vinho, na altura Junta Nacional do Vinho. As mulheres têm muita sensibilidade para os sentidos, para os aromas, e hoje há enólogas muito reconhecidas.

     

    É no campo que vemos os maiores impactos das alterações climáticas e os efeitos na biodiversidade. Foi vendo isso?

    Quando se começou a falar muito na sustentabilidade e a definir o que deveria ser feito já nós o fazíamos. As vindimas são cada vez mais cedo, fruto das vagas de calor, se quiser, das alterações climáticas. Pouca gente tem estudos para se pronunciar se é uma alteração que está para ficar. Mas temos de nos adaptar. Já tínhamos esta prática de respeito pela terra, pelas plantas, pelas gerações vindouras ou os enrelvamentos da vinha para evitar desperdícios de água. Com o Duorum, em Vila Nova de Foz Coa, em 2015 fomos reconhecidos com o melhor prémio europeu de Business and Biodiversity, o Anders Wall Award. Fomos os primeiros no setor a ganhar um prémio europeu de empresa sustentável. Foi há nove anos e não se falava tanto disto, mas já estávamos conscientes.

     

    Como é que estas alterações climáticas podem afetar a produção de vinho?

    As regiões quentes são as mais afetadas pelas vagas de calor. Uma das coisas mais importantes é a proteção das uvas da chapa do sol. Há mais de 20 anos que temos uma ligação com o maior especialista de vinhas em clima quente, o professor catedrático da Universidade de Madrid, José Ramon Lissarrague, e ele sempre nos levou nesse caminho.

     

    Já está a preparar as vinhas para este aquecimento?

    Sim, e cada vez mais, só que não se pode mudar uma vinha de um momento para o outro. Lembro-me de se desparrarem as videiras, para as uvas receberem mais sol, mesmo no Alentejo. Hoje é impensável. Querem pôr as uvas à sombra. Nas novas plantações procuramos muito o ensombramento. Curiosamente, antes da mecanização, nas videiras no Alentejo e no sul de Espanha havia a formação da planta em taça, como se fosse um chapéu de chuva de folhas a tapar as uvas. E antigamente a fruta estava muito perto do solo. Como se sabe, a pedra absorve o calor e durante a noite há irradiação. Quanto mais perto a fruta estiver do chão mais sofre. Hoje a tendência é pôr a fruta mais alta, para refrescar. E nós temos as nossas vinhas todas relvadas. Por vezes até semeamos gramíneas para fazer mais retenção de água, o que ajuda a combater o calor.

    Hoje conheço muito poucas vinhas sem irrigação.

    E também a poupar água. Como é que têm gerido essa escassez de água no Alentejo?

    Em 1981, assisti à primeira rega gota a gota no Alentejo e achava-se um crime regar a vinha. Hoje conheço muito poucas vinhas sem irrigação. Algumas das muito velhas adaptaram-se, têm raízes muito lá para o fundo. Diria que que 98% das vinhas do Alentejo têm rega gota a gota. Mas uma coisa é instalar o sistema de rega, outra é ter água.

     

    E como é que tem feito para conseguir essa água?

    Há dois Alentejos, o do Alqueva, que tem muita água para regar. E o nosso caso, em que temos muita dificuldade. Em Estremoz, tivemos uma média de 4 toneladas por hectare nos últimos três anos, exceto no ano passado, que tivemos 5 a 6. Os grandes vinhos da Borgonha têm essa produção, muito pequena, mas o quilo de uvas se calhar custa 10 euros e aqui custa 50 cêntimos. Uma produção dessas, por dificuldades de ter água, não é rentável. Vai assistir-se no Alentejo, e não só, a um repensar do setor da viticultura. Tem de se privilegiar quem faz bem. Quem produz pouco e vende as uvas no mercado não tem hipótese de subsistir.

     

    As alterações climáticas vão obrigar a que, principalmente, os pequenos produtores desistam de produzir vinho?

    Acho que sim. Os pequenos produtores principalmente, porque não têm escala. Tem sido muito discutido se se deve limitar as produções, mas penso que não. Tem de se deixar o mercado trabalhar por si. As pessoas que recebem uvas e  fazem vinho é que vão decidir se as querem ou não. E se conseguem vender o vinho é bom sinal.

     

    Um dos problemas na cultura intensiva de vinha é o efeito na biodiversidade?

    O prémio que referi demonstra a nossa sensibilidade para esse tema. Mas fazemos, por exemplo, o pastoreio de ovelhas nas vinhas, pequenas caixas para a nidificação de morcegos. As nossas vinhas estão em modo de produção integrada o que significa mexer o menos possível. Temos também 70 hectares de produção em modo biológico, o que é mais radical, não podemos usar nada, como pesticidas e herbicidas. Esta produção de vinhos biológicos cai para metade nos primeiros anos, depois recupera um pouco. O problema é que essa perda de rendimento por hectare ainda não é devidamente recompensada pelo preço dos vinhos biológicos, não acompanha o custo. Mas acho que no futuro vai acontecer.

     

    As pessoas falam, mas ainda não estão a pôr a carteira no que dizem que acreditam?

    É isso mesmo. Não valorizam o prejuízo do agricultor e a vontade de fazer vinhos melhores. Na qualidade da uva há uma melhoria nítida, os vinhos biológicos são melhores. Quando começámos do ponto de vista de enologia não estava perfeitamente garantida a qualidade, tinha normalmente defeitos, mas hoje há vinhos biológicos muito bons. Temos a nossa gama, o Quinta da Viçosa é biológico e tudo o que é monocastas.

     

    Mas não se estragam mais facilmente?

    Não. É uma vinificação mais cuidada e todo o processo é mais exigente. Não podemos estar uma semana sem olhar para as uvas, para não dizer todos os dias, porque os produtos que se podem usar para tratamento são muito mais restritos e é muito mais difícil combater uma praga.

     

    Já é possível fazer tratamentos de forma mais biológica?

    A necessidade aguça o engenho. Um fator tão ou mais grave que a [falta de] água é uma doença chamada cigarrinha verde, um mosquito verde muito pequeno, terrível, porque é muito difícil de combater com produtos convencionais, quanto mais se não se pode utilizar nada. Come as folhas, as uvas ficam despidas de parras e temos de as apanhar às vezes com 10 a 11 graus porque não amadurecem. Penso que os vendedores de produtos para vinhas biológicas vão com certeza encontrar um que combata esta infestante.

    Cerca de 5% da água da chuva fica na terra e os outros 95% vão para o mar.

    A diferença é que as vinhas não biológicas podem ser tratadas com produtos que ainda são autorizados?

    Mas cada vez menos. Por exemplo, a doença do lenho, que afeta a madeira da videira. Antigamente havia produtos que hoje estão proibidos. E nós assistimos, impávidos e serenos, à morte das cepas. Todos nós, com vinhas velhas, assistimos a isto, o que é uma pena. Gostamos tanto de vinhas velhas, mas às vezes começam a não ter plantas.

     

    E como têm enfrentado o problema da água. Ir buscar água ao Alqueva seria uma solução?

    O Alqueva é uma hipótese, mas podem-se fazer mais pequenos ‘Alquevas’. Em 1940 e 1950 havia um estudo de transvase que começava por Foz Coa, Guarda e por aí abaixo até ao Alqueva. Não percebo porque se é tão avesso às barragens. Vai ter de haver barragens, as pessoas têm de ter água, quanto mais não seja para beber e se lavarem. Em Vila Nova de Foz Coa os alicerces da barragem estão lá e a obra foi suspensa. É uma pena porque cerca de 5% da água da chuva fica na terra e os outros 95% vão para o mar.

     

    O Alentejo continua a ser uma região muito pobre.

    Como é que projetos como este podem contribuir para o aumento do rendimento?

    Esta empresa começou com uma pessoa, depois duas, e agora são 150. As pessoas que prepararam as vides para plantar a primeira vinha em 1989 ainda estão todas na adega. E tenho uma responsabilidade social acrescida, porque são muitas famílias. Somos a segunda maior empregadora do concelho de Estremoz. Desde 2009, distribuímos resultados, do diretor de departamento à pessoa que poda a vinha. Fiz uma cantina, que está lá para toda a gente. Adorava pagar mais se não me cobrassem tantos impostos. Não podem é ‘obrigar’ uma empresa a pagar salários cada vez mais altos e, por outro lado, esmagarem-nos cada vez mais com impostos. Porque as empresas deixam de ser viáveis. Mas não pago ordenados mínimos e dou, por exemplo, seguros de vida e de saúde.

     

    Como perspetiva o futuro, até porque pode vir a aproveitar o mercado de carbono e da biodiversidade?

    Acabámos de plantar uma regeneração de montado de zinho com 150 hectares ao lado da adega, exatamente por causa disso. E também para sermos mais sustentáveis. Já tenho dois filhos a trabalhar comigo, estou à espera que venha o terceiro e provavelmente também um quarto. O João Maria tem um percurso académico como o meu, fez Agronomia, depois o Master Vine em Montpellier, Bordéus, Universidade de Viticultura de Madrid, vindimas na África do Sul e no Chile. Acho piada ver um miúdo, com menos 40 anos do que eu, com uma formação de enologia e viticultura que, comparado com o que eu tinha na idade dele, não tem nada a ver. É outro campeonato.

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